08/02/2014

Campanha contra bitucas usa sexualização do corpo feminino no RJ

A ONG carioca Rio, Eu Amo, Eu Cuido lançou nesta semana uma campanha de conscientização em relação ao destino das “bitucas”, para fazer com que os fumantes não joguem os restos de cigarro em vias públicas. Até aí, tudo bem, se não fosse o modelo de campanha adotado, que faz uma alusão à bunda, retratando parte do corpo de uma mulher.

Assim que a campanha foi divulgada, causou revolta nas redes sociais, principalmente entre as feministas, que consideraram a campanha machista. Por que não se utilizou uma bunda masculina? A bunda feminina é um espaço abjeto? A pesquisadora do departamento de psicologia da UniCeub (Centro Universitário de Brasília) do  Tatiana Lionço considera o mote da campanha um “equívoco” e diz que é necessário ter ciência se há verba pública envolvida. A respeito do uso da bunda de uma mulher, ela diz que isso reforça o “status quomachista” em que vivemos e completa dizendo que a campanha reduz a mulher a um mero objeto de desejo.
Fórum –  Qual a tua opinião a respeito da campanha da ONG Rio, Eu Amo, Eu Cuido que insinua a bunda ser o lixo para a bituca do cigarro? 
Tatiana Lionço – A campanha é um equívoco, e sequer levanta o debate crucial que seria a responsabilidade de todas as pessoas sobre a cidade e sobre o grave problema de escoamento que o Rio de Janeiro vem enfrentando. Ainda, a tradução literal do inglês para o português do termo “cigarret butt” não é diretamente compreensível já que aqui no Brasil ninguém se refere à guimba do cigarro como bunda. Acredito que foi bastante relevante a nota emitida pela SPM (Secretaria de Políticas para Mulheres) do RJ, embora a ONG que propôs a campanha seja muito provavelmente financiada com verba pública. É necessário tomar ciência a respeito disso, pois se houver recurso público envolvido, a prefeitura do RJ é corresponsável pela campanha.
Fórum –  Em outro banner a campanha diz que é hora de mudar o nome da bituca/ guimba/ bagana para bunda. O desenho é a bunda de uma mulher e não de um homem. Na sua opinião, por que colocaram a bunda de uma mulher? 
Lionço – Sobre a tradução, é curioso que uma campanha de conscientização imponha a necessidade de adotarmos gírias e expressões de linguagem do hemisfério norte. Soa bastante colonizador e uma campanha dessas não teria a potencialidade de alterar as expressões idiomáticas, que brotam do cotidiano, e não de recomendações em campanha. Sobre a bunda, evidentemente o uso da bunda da Mulher Melancia denota o apelo da equipe publicitária a um dos mais fortes padrões adotados pela própria mídia: a sexualização do corpo feminino como fator para chamar a atenção. Parece-me apelativo e desnecessário, uma estratégia eficiente do ponto de vista da manutenção do status quo mas absolutamente ineficiente se o objetivo for de fato de gerar consciência de cidadania.
Fórum – O corpo da mulher ainda é tratado como um espaço público, que pertence a todos? 
Lionço – Sim. A objetificação do corpo da mulher, ou seja, sua redução a objeto de manipulação e usufruto por parte do outro é um dos principais pontos de luta do feminismo. A objetificação denota a redução da mulher à dimensão de objeto manipulável, minando sua dimensão subjetiva e de autonomia sobre si e sobre o modo como quer se apresentar ao mundo. Alguns alegam que as mulheres escolhem se colocar nesse lugar. Sim, em parte, principalmente quando não estão empenhadas em refletir sobre as relações de gênero, mas estão buscando encontrar espaços de pertencimento no próprio sistema de opressão de gênero machista.
Fórum – Em outro momento a campanha diz: “Vamos falar de uma cosa muito feia. Vamos falar da bunda”. A bunda é o espaço abjeto do corpo?
Lionço – A bunda é um significante do corpo que remete a diferentes significados. Um deles seria o erotismo, embora apenas a bunda da mulher seja usada massivamente nessa construção de sentido. Bunda caída é uma representação de norma sobre o corpo feminino, não se escuta falar de homens com a bunda caída, embora muitos possam não estar empenhados em mantê-la rígida com exercícios físicos. Nesse sentido do erotismo, a bunda se divide entre objeto de desejo e objeto de abjeção, já que a caída remeteria à condição indesejável da mulher. Em outro sentido, a bunda remete à abjeção diretamente, no que se refere à analidade e a defecação como atividade vergonhosa, embora cotidiana e banal. Podemos dizer que a bunda é tabu a não ser na sua apresentação conformada ao objeto de desejo masculino, tanto para homens heterossexuais como homossexuais.
Fórum – Sendo a bunda o ícone dessa campanha, acredita que podemos fazer a seguinte relação: o sexo anal/ passivo ainda é tabu em nossa sociedade. Homens e ou mulheres que praticam sexo anal são sempre destratados, logo, quem pratica sexo anal, levando em conta a campanha, mantém relação com o lixo? 

Lionço – Acredito que a analogia da bunda caída com o lixo seja um malabarismo impressionante realizado pela equipe de publicidade. De qualquer forma, o significante lixo associado à bunda nos deslocou para longe do lixo como problema real da cidade. Nos remeteu à dimensão moral da vergonha e da inadequação. Talvez a campanha já esteja nos dando uma direção de aonde o Rio de Janeiro vai parar com a tal lei da moral e dos bons costumes. Nesse sentido, concordo que o significante lixo poderá vir a ser adotado para atividades sexuais e modos de vida que não reiteram o status quo, e considero isso muito perigoso. A campanha deveria tratar do lixo como lixo, e não operar esse deslocamento que não se presta de modo algum ao cumprimento de conscientização sobre cidadania na cidade, mas apenas reforça estereótipos sobre o que seria adequado ou não.

Reportagem de Marcelo Hailer

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