A ONG carioca Rio, Eu Amo, Eu Cuido lançou nesta semana uma
campanha de conscientização em relação ao destino das “bitucas”, para fazer com
que os fumantes não joguem os restos de cigarro em vias públicas. Até aí, tudo
bem, se não fosse o modelo de campanha adotado, que faz uma alusão à bunda,
retratando parte do corpo de uma mulher.
Assim que a campanha foi divulgada, causou revolta nas redes
sociais, principalmente entre as feministas, que consideraram a campanha
machista. Por que não se utilizou uma bunda masculina? A bunda feminina é um
espaço abjeto? A pesquisadora do departamento de psicologia da UniCeub
(Centro Universitário de Brasília) do Tatiana Lionço considera o mote
da campanha um “equívoco” e diz que é necessário ter ciência se há verba
pública envolvida. A respeito do uso da bunda de uma mulher, ela diz que isso
reforça o “status quomachista”
em que vivemos e completa dizendo que a campanha reduz a mulher a um mero
objeto de desejo.
Fórum – Qual a tua opinião a respeito da campanha da ONG
Rio, Eu Amo, Eu Cuido que insinua a bunda ser o lixo para a bituca do
cigarro?
Tatiana Lionço – A campanha é um
equívoco, e sequer levanta o debate crucial que seria a responsabilidade de
todas as pessoas sobre a cidade e sobre o grave problema de escoamento que o
Rio de Janeiro vem enfrentando. Ainda, a tradução literal do inglês para o
português do termo “cigarret butt” não é diretamente compreensível já que aqui
no Brasil ninguém se refere à guimba do cigarro como bunda. Acredito que foi
bastante relevante a nota emitida pela SPM (Secretaria de Políticas para
Mulheres) do RJ, embora a ONG que propôs a campanha seja muito provavelmente
financiada com verba pública. É necessário tomar ciência a respeito disso, pois
se houver recurso público envolvido, a prefeitura do RJ é corresponsável pela
campanha.
Fórum – Em outro banner a campanha diz que é hora de mudar
o nome da bituca/ guimba/ bagana para bunda. O desenho é a bunda de uma mulher
e não de um homem. Na sua opinião, por que colocaram a bunda de uma
mulher?
Lionço – Sobre a tradução, é curioso
que uma campanha de conscientização imponha a necessidade de adotarmos gírias e
expressões de linguagem do hemisfério norte. Soa bastante colonizador e uma
campanha dessas não teria a potencialidade de alterar as expressões
idiomáticas, que brotam do cotidiano, e não de recomendações em campanha. Sobre
a bunda, evidentemente o uso da bunda da Mulher Melancia denota o apelo da
equipe publicitária a um dos mais fortes padrões adotados pela própria mídia: a
sexualização do corpo feminino como fator para chamar a atenção. Parece-me
apelativo e desnecessário, uma estratégia eficiente do ponto de vista da
manutenção do status quo mas absolutamente ineficiente se o
objetivo for de fato de gerar consciência de cidadania.
Fórum – O corpo da mulher ainda é tratado como um espaço
público, que pertence a todos?
Lionço – Sim. A objetificação do corpo
da mulher, ou seja, sua redução a objeto de manipulação e usufruto por parte do
outro é um dos principais pontos de luta do feminismo. A objetificação denota a
redução da mulher à dimensão de objeto manipulável, minando sua dimensão
subjetiva e de autonomia sobre si e sobre o modo como quer se apresentar ao
mundo. Alguns alegam que as mulheres escolhem se colocar nesse lugar. Sim, em
parte, principalmente quando não estão empenhadas em refletir sobre as relações
de gênero, mas estão buscando encontrar espaços de pertencimento no próprio
sistema de opressão de gênero machista.
Fórum – Em outro momento a campanha diz: “Vamos falar de
uma cosa muito feia. Vamos falar da bunda”. A bunda é o espaço abjeto do corpo?
Lionço – A bunda é um significante do
corpo que remete a diferentes significados. Um deles seria o erotismo, embora
apenas a bunda da mulher seja usada massivamente nessa construção de sentido.
Bunda caída é uma representação de norma sobre o corpo feminino, não se escuta
falar de homens com a bunda caída, embora muitos possam não estar empenhados em
mantê-la rígida com exercícios físicos. Nesse sentido do erotismo, a bunda se
divide entre objeto de desejo e objeto de abjeção, já que a caída remeteria à
condição indesejável da mulher. Em outro sentido, a bunda remete à abjeção
diretamente, no que se refere à analidade e a defecação como atividade
vergonhosa, embora cotidiana e banal. Podemos dizer que a bunda é tabu a não
ser na sua apresentação conformada ao objeto de desejo masculino, tanto para homens
heterossexuais como homossexuais.
Fórum – Sendo a bunda o ícone dessa campanha, acredita que
podemos fazer a seguinte relação: o sexo anal/ passivo ainda é tabu em nossa
sociedade. Homens e ou mulheres que praticam sexo anal são sempre destratados,
logo, quem pratica sexo anal, levando em conta a campanha, mantém relação com o
lixo?
Lionço – Acredito que a analogia da
bunda caída com o lixo seja um malabarismo impressionante realizado pela equipe
de publicidade. De qualquer forma, o significante lixo associado à bunda nos
deslocou para longe do lixo como problema real da cidade. Nos remeteu à
dimensão moral da vergonha e da inadequação. Talvez a campanha já esteja nos
dando uma direção de aonde o Rio de Janeiro vai parar com a tal lei da moral e
dos bons costumes. Nesse sentido, concordo que o significante lixo poderá vir a
ser adotado para atividades sexuais e modos de vida que não reiteram o status
quo, e considero isso muito perigoso. A campanha deveria tratar do
lixo como lixo, e não operar esse deslocamento que não se presta de modo algum
ao cumprimento de conscientização sobre cidadania na cidade, mas apenas reforça
estereótipos sobre o que seria adequado ou não.
Reportagem de
Marcelo Hailer
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