A iraniana Sakineh Mohamadi Ashtiani (foto), condenada à morte por adultério e cumplicidade na morte do marido, teria sido libertada, de acordo com informação divulgada na última quinta-feira (9) pelo Comitê Internacional contra Execuções e ainda não confirmada pelo governo iraniano.
Diante deste novo fato penso ser pertinente a publicação de um artigo que fiz sobre o Papel da Mídia na Aplicação do Direito tendo em vista que o apelo em defesa de Sakineh feito pelo presidente Lula só ocorreu após uma campanha desencadeada no You Tube. Os direitos autorais deste artigo pertencem a Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina, o qual foi feito para a disciplina Direito Constitucional Latino-Americano cujo titular é o mestre doutor Raúl Gustavo Ferreyra.
O Papel da Mídia na Aplicação do Direito
Da mihi factum et dabo tibi jus (dá-me o fato e te darei o direito)
A Constituição brasileira proíbe de forma expressa a execução de penas cruéis ou consideradas dolorosas. O artigo 5º, inciso XLVII dispõe que:
Não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada;
b) de caráter perpétuo;
c) de banimento;
d) cruéis
O segundo protocolo adicional ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ratificado pelo Brasil em 1992) com vista à abolição da pena de morte – ato considerado como uma contribuição para a promoção da dignidade humana e para o desenvolvimento progressivo dos direitos do homem -, adotado e proclamado pela resolução n.º 44/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 15 de Dezembro de 1989, prevê em seu artigo 1º: 1. Nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado Parte no presente Protocolo será executado.
2. Os Estados Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição.
Já o artigo 6º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos diz o seguinte:
1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser protegido pela lei: ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida.
2. Nos países em que a pena de morte não foi abolida, uma sentença de morte só pode ser pronunciada para os crimes mais graves, em conformidade com a legislação em vigor, no momento em que o crime foi cometido e que não deve estar em contradição com as disposições do presente Pacto nem com a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Esta pena não pode ser aplicada senão em virtude de um juízo definitivo pronunciado por um tribunal competente.
A Declaração Universal dos Humanos - adotada e proclamada pela Resolução n. 217A, da III Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data -, dispõe em seus artigos III e V:
Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo V.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
E ainda segundo a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 da Organização das Nações Unidas – ratificada pelo Brasil em 1989 - cada Estado deverá tomar medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura sob sua jurisdição. De acordo com a Convenção tortura é definida como sendo qualquer ato pelo qual “dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido”.
No entanto, apesar do respaldo da Carta Magna brasileira e da ratificação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, o que fez o governo do Brasil tomar uma atitude em defesa da iraniana Sakineh Mohammadi-Ashtiani, condenada pelo regime dos aiatolás do Irã à morte por lapidação foi uma campanha veiculada no site You Tube. A campanha Liga Lula (para assistir o vídeo da campanha: http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/governo/ligalula/) visava sensibilizar o presidente brasileiro para que intercedesse junto ao presidente do Irã, com quem mantém boas relações, em favor de Sakineh. Antes da divulgação deste vídeo na internet – assim como da assinatura de várias figuras de destaque no cenário brasileiro, como do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em um abaixo-assinado internacional – a reação do brasileiro foi a seguinte:
"Um presidente da República não pode ficar na internet atendendo todo o pedido que alguém pede de outro país (...) É preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes daqui a pouco vira uma avacalhação".
Após a pressão popular via internet, o presidente Lula voltou atrás e ofereceu asilo à iraniana condenada à morte por apedrejamento. A oferta do presidente – embora não tenha sido aceita pelo Irã – teve algumas conseqüências. Primeiramente, colocou um fim ao silêncio da imprensa iraniana sobre o caso e também provocou alguma reação do governo dos aiatolás que suspenderam a condenação à morte por lapidação, embora o destino da mulher ainda seja incerto.
O que se observa é que a mídia eletrônica, neste caso específico, ofereceu os fatos para que o governo brasileiro desse o direito. Se não fosse a repercussão que o caso teve na imprensa, especialmente a eletrônica, talvez o presidente do Brasil e o Ministério do Exterior tivessem optado por mais uma vez não cumprir as regras dos tratados que o país ratifica a correr o risco de macular suas relações diplomáticas (e comerciais) com o governo do Irã.
Além do que foi citado anteriormente, ainda é importante lembrar que o Brasil também é signatário do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o qual em seu artigo 7º qualifica como crime contra a humanidade o homicídio, a prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional, e a tortura, cometidos de modo sistemático. O que significa que a atitude presidencial antes da intervenção da rede de computadores demonstrou desrespeito pelos direitos humanos e pelos tratados internacionais, o que não é a tônica dos Estados de Direito. Na definição de MALBERG (2001):
Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram. (MALBERG, 2001, pág. 449).
Quanto aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo país, MAZZUOLI (2000) afirma que:
Mais do que vigorar como lei interna, os direitos e garantias fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil, , passam a ter, por vontade da própria Carta Magna, o status de "norma constitucional". (MAZZUOLI, 2000, pág. 145).
Com relação a autodeterminação dos povos, um dos princípios do Direito Internacional – e uma das alegações iniciais do presidente Lula para não tomar uma atitude neste caso – é relevante o que dizem SILVA e ACCIOLY (2002, pág. 131). Para os autores, de acordo com este princípio nenhum país pode intervir na soberania de outro, na sua cultura, costumes e religião, entre outros aspectos. No entanto, quando existe um perigo eminente não apenas para o país – como o enriquecimento de urânio no Irã -, ou para toda a humanidade ou em casos de comprovado desrespeito aos direitos humanos fundamentais, não pode ser tratado como algo absoluto.
Sobre o princípio da soberania dos povos, para MATINS (1998):
É fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. (MATINS, 1998, pág. 165).
Ou seja, respeitar a soberania de um povo não significa tolerar (ou fazer de conta que não vê) o desrespeito aos direitos humanos Embora, no caso no Brasil o caso da mulher iraniana não seja uma exceção. Em visita à Cuba este ano, o presidente comparou os presos políticos deste país com os presos comuns do Brasil e disse: “acredito que a greve de fome não pode ser usada como pretexto de direitos humanos para libertar as pessoas. Imagine se todos os presos de São Paulo entrassem em greve de fome e pedissem liberdade”. Lula esqueceu que os presos de Cubas não foram detidos por crimes de roubo, assalto ou homicídio, mas por divergirem da política ditatorial que impera na ilha.
BIBLIOGRAFIA
HABERMAS, Júrgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
MALBERG, R. Carré de. Teoría general del Estado. 2. reimpressão. México : Facultad de Derecho/UNAM/Fondo de Cultura Económica, 2001.
MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos Humanos & Relações Internacionais. 1. ed., Campinas: Agá Juris, 2000.
SEITENFUS, Ricardo. Legislação Internacional. São Paulo: Manole, 2009.
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando. Direito Internacional. 15. ed. São Paulo:Saraiva, 2002.
Notas
MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.