11/12/2010

O Papel da Mídia na Aplicação do Direito

A iraniana Sakineh Mohamadi Ashtiani (foto), condenada à morte por adultério e cumplicidade na morte do marido, teria sido libertada, de acordo com informação divulgada na última quinta-feira (9) pelo Comitê Internacional contra Execuções e ainda não confirmada pelo governo iraniano. 
Diante deste novo fato penso ser pertinente a publicação de um artigo que fiz sobre o Papel da Mídia na Aplicação do Direito tendo em vista que o apelo em defesa de Sakineh feito pelo presidente Lula só ocorreu após uma campanha desencadeada no You Tube. Os direitos autorais deste artigo pertencem a Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina, o qual foi feito para a disciplina Direito Constitucional Latino-Americano cujo titular é o mestre doutor Raúl   Gustavo Ferreyra. 


O Papel da Mídia na Aplicação do Direito


Da mihi factum et dabo tibi jus (dá-me o fato e te darei o direito)

A Constituição brasileira proíbe de forma expressa a execução de penas cruéis ou consideradas dolorosas. O artigo 5º, inciso XLVII dispõe que[1]:

Não haverá penas:
a)         de morte, salvo em caso de guerra declarada;
b)         de caráter perpétuo;
c)         de banimento;
d)         cruéis


O segundo protocolo adicional ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ratificado pelo Brasil em 1992) com vista à abolição da pena de morte – ato considerado como uma contribuição para a promoção da dignidade humana e para o desenvolvimento progressivo dos direitos do homem -, adotado e proclamado pela resolução n.º 44/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 15 de Dezembro de 1989, prevê em seu artigo 1º[2]:
1. Nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado Parte no presente Protocolo será executado.
2. Os Estados Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição.

Já o artigo 6º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos diz o seguinte[3]:

1.          O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser protegido pela lei: ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida.
2.          Nos países em que a pena de morte não foi abolida, uma sentença de morte só pode ser pronunciada para os crimes mais graves, em conformidade com a legislação em vigor, no momento em que o crime foi cometido e que não deve estar em contradição com as disposições do presente Pacto nem com a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Esta pena não pode ser aplicada senão em virtude de um juízo definitivo pronunciado por um tribunal competente.

A Declaração Universal dos Humanos[4] - adotada e proclamada pela Resolução n. 217A, da III Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data -, dispõe em seus artigos III e V:

Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo V.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

E ainda segundo a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 da Organização das Nações Unidas – ratificada pelo Brasil em 1989 - cada Estado deverá tomar medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura sob sua jurisdição. De acordo com a Convenção tortura é definida como sendo qualquer ato pelo qual “dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido”.
No entanto, apesar do respaldo da Carta Magna brasileira e da ratificação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, o que fez o governo do Brasil tomar uma atitude em defesa da iraniana Sakineh Mohammadi-Ashtiani, condenada pelo regime dos aiatolás do Irã à morte por lapidação foi uma campanha veiculada no site You Tube. A campanha Liga Lula (para assistir o vídeo da campanha: http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/governo/ligalula/) visava sensibilizar o presidente brasileiro para que intercedesse junto ao presidente do Irã, com quem mantém boas relações, em favor de Sakineh.
Antes da divulgação deste vídeo na internet – assim como da assinatura de várias figuras de destaque no cenário brasileiro, como do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em um abaixo-assinado internacional – a reação do brasileiro foi a seguinte[5]:

"Um presidente da República não pode ficar na internet atendendo todo o pedido que alguém pede de outro país (...) É preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes daqui a pouco vira uma avacalhação".


Após a pressão popular via internet, o presidente Lula voltou atrás e ofereceu asilo à iraniana condenada à morte por apedrejamento. A oferta do presidente – embora não tenha sido aceita pelo Irã – teve algumas conseqüências. Primeiramente, colocou um fim ao silêncio da imprensa iraniana sobre o caso e também provocou alguma reação do governo dos aiatolás que suspenderam a condenação à morte por lapidação, embora o destino da mulher ainda seja incerto.
O que se observa é que a mídia eletrônica, neste caso específico, ofereceu os fatos para que o governo brasileiro desse o direito. Se não fosse a repercussão que o caso teve na imprensa, especialmente a eletrônica, talvez o presidente do Brasil e o Ministério do Exterior tivessem optado por mais uma vez não cumprir as regras dos tratados que o país ratifica a correr o risco de macular suas relações diplomáticas (e comerciais) com o governo do Irã.
Além do que foi citado anteriormente, ainda é importante lembrar que o Brasil também é signatário do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional[6], o qual em seu artigo 7º qualifica como crime contra a humanidade o homicídio, a prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional, e a tortura, cometidos de modo sistemático.  O que significa que a atitude presidencial antes da intervenção da rede de computadores demonstrou desrespeito pelos direitos humanos e pelos tratados internacionais, o que não é a tônica dos Estados de Direito.
Na definição de MALBERG (2001):

Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram. (MALBERG, 2001, pág. 449).


Quanto aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo país, MAZZUOLI (2000) afirma que:

Mais do que vigorar como lei interna, os direitos e garantias fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil, , passam a ter, por vontade da própria Carta Magna, o status de "norma constitucional". (MAZZUOLI, 2000, pág. 145).

Com relação a autodeterminação dos povos, um dos princípios do Direito Internacional – e uma das alegações iniciais do presidente Lula para não tomar uma atitude neste caso – é relevante o que dizem SILVA e ACCIOLY (2002, pág. 131). Para os autores, de acordo com este princípio nenhum país pode intervir na soberania de outro, na sua cultura, costumes e religião, entre outros aspectos. No entanto, quando existe um perigo eminente não apenas para o país – como o enriquecimento de urânio no Irã -, ou para toda a humanidade ou em casos de comprovado desrespeito aos direitos humanos fundamentais, não pode ser tratado como algo absoluto.
Sobre o princípio da soberania dos povos, para MATINS (1998)[7]:

É fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. (MATINS, 1998, pág. 165).


Ou seja, respeitar a soberania de um povo não significa tolerar (ou fazer de conta que não vê) o desrespeito aos direitos humanos Embora, no caso no Brasil o caso da mulher iraniana não seja uma exceção. Em visita à Cuba este ano, o presidente comparou os presos políticos deste país com os presos comuns do Brasil e disse: “acredito que a greve de fome não pode ser usada como pretexto de direitos humanos para libertar as pessoas. Imagine se todos os presos de São Paulo entrassem em greve de fome e pedissem liberdade”. Lula esqueceu que os presos de Cubas não foram detidos por crimes de roubo, assalto ou homicídio, mas por divergirem da política ditatorial que impera na ilha.


BIBLIOGRAFIA

A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1988.

AMARAL JÚNIOR, Alberto. Direito Internacional e Desenvolvimento. São Paulo: Manole, 2005.

HABERMAS, Júrgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

MALBERG, R. Carré de. Teoría general del Estado. 2. reimpressão. México : Facultad de Derecho/UNAM/Fondo de Cultura Económica, 2001.

MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos Humanos & Relações Internacionais. 1. ed., Campinas: Agá Juris, 2000.

SEITENFUS, Ricardo. Legislação Internacional. São Paulo: Manole, 2009.

SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento;  ACCIOLY, Hildebrando. Direito Internacional. 15. ed. São Paulo:Saraiva, 2002.

  
Notas

[1] A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1988, pág. 8.

[2] Segundo Protocolo Adicional ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à Abolição da Pena de Morte. Disponível em http://www.lgdh.org/Segundo%20Protocolo%20Adicional%20ao%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20Civis%20e%20Politicos%20com%20vista%20a%20Abolicao%20da%20Pena%20de%20Morte.htm. Acesso em 21 set. 2010.

[3] Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto2.htm. Acesso em 21 set. 2010.

[5] Irã adverte que caso Sakineh é "alvoroço" para prejudicar relação com Brasil. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mundo/784098-ira-adverte-que-caso-sakineh-e-alvoroco-para-prejudicar-relacao-com-brasil.shtml. Acesso em 21 set. 2010.

[7] MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita e pelo comentário!