O The New England Journal of Medicine, a mais antiga e uma das mais prestigiadas publicações científicas da área da saúde, divulgou o artigo de James Macinko e Matthew J. Harris sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF) brasileira.
Apesar de escancarar as principais falhas e contradições do sistema, o texto, publicado no último 4 de junho, pontua avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), fala sobre o Programa Mais Médicos Para o Brasil, destaca o uso extensivo e eficaz dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e conclui: “o mundo pode aprender algumas lições da experiência brasileira”.
Os elogios ao SUS e ao Mais Médicos, além de um horizonte de esperança para uma saúde pública de qualidade, foram suficientes para desencadear uma furiosa reação de grande parte da categoria médica brasileira contra a revista científica inglesa nas redes sociais. Além de bradarem que o artigo é mentiroso, alguns médicos acusam os autores e o jornal de terem sido comprados pelo governo brasileiro.
Uma forte polarização e um clima de intolerância têm tomado conta do cenário político. Nem mesmo as ações mais bem sucedidas do governo merecem qualquer reconhecimento aos olhos de seus opositores. Isso se evidencia, com muita força, nas disputas políticas enfrentadas dentro da área da saúde nos últimos anos.
O SUS é fruto do movimento pela reforma sanitária e da luta pelos direitos de um povo até então negligenciado. Uma das principais perdas políticas à época de sua construção, no entanto, foi a aprovação do artigo 199 da Constituição Federal, referente ao SUS, que vigora até hoje: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.
É por isso que, apesar de haver dois setores bem distintos (público x privado), o SUS se denomina como um sistema “único” de saúde. Mas é desse ponto que se originam muitas das contradições desse sistema, e é exatamente de onde emerge todo esse incômodo da categoria médica.
Dados
O estudo “Demografia Médica do Brasil”, desenvolvido em parceria pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), de fevereiro de 2013, aponta que o Brasil já conta com quase 400 mil médicos em atividade. Com esse número, o país poderia atingir uma taxa de dois profissionais por 1 mil habitantes. No entanto, essa não é a realidade. Apesar de crescer de forma acelerada e constante, a população médica brasileira é mal distribuída pelo país e dentro das especialidades, com forte inserção no setor privado.
Seguem alguns dados importantes do estudo:
1. Há quatro vezes mais médicos no setor privado do que no setor público;
2. Dentre os 387.736 profissionais em atividade no país, 53,68% são especialistas e 46,32% não têm nenhum título de especialista;
3. Os especialistas em Atenção Primária à Saúde (APS) correspondem a apenas 1,21% de todos os especialistas. Em número absoluto são apenas 3.253 médicos com título em Medicina de Família e Comunidade, enquanto, por exemplo, a Anestesiologia conta com mais de 18 mil profissionais, a Radiologia com quase 8 mil, a Dermatologia com quase 6 mil e a Cirurgia Plástica com quase 5 mil.
4. Do total de médicos ativos no país, a região Sudeste tem 2,61 profissionais para cada 1 mil habitantes, enquanto o Norte do país tem menos de um (0,98) para cada 1 mil habitantes. Essa situação ainda é agravada pela concentração de profissionais nas capitais ou polos de grande porte. Enquanto a cidade de São Paulo tem 4,33 médicos por 1 mil habitantes, o estado de São Paulo tem 2,58.
O levantamento conclui que o Brasil é um país marcado pela desigualdade no que se refere ao acesso à assistência médica. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou outro estudo em julho de 2013 informando que medicina é a carreira que tem o melhor desempenho trabalhista no Brasil, sendo que, das carreiras analisadas, é a que tem mais escassez de mão de obra.
Assim, foi no intuito de reduzir essas desigualdades, que o Programa Mais Médicos foi criado. Todos os médicos que vieram pelo programa, formados em outros países, são especialistas em Atenção Primária à Saúde — ou seja, têm formação na especialidade correspondente em seu país a Medicina de Família e Comunidade. Esses médicos têm um contrato de intercâmbio de três anos, recebem formação semanalmente pela Universidade Aberta do SUS (Unasus) e são supervisionados periodicamente.
Outros países
Segundo o artigo do New England Journal of Medicine, “a evidência sugere que as equipes de saúde da família e a Estratégia de Saúde da Família proporcionam um melhor acesso e com mais qualidade, e resultam em maior satisfação do usuário do que os postos e centros de saúde tradicionais ou até mesmo algumas unidades de cuidado de saúde do setor privado”.
Enquanto em outros países os profissionais de saúde têm um comprometimento ético e social com as demandas da população e a saúde é realmente um direito e uma questão de seguridade social, no Brasil, a saúde é tratada como mercadoria e a profissão médica é tratada como um bom negócio. No Canadá, por exemplo, o governo regula as vagas de residência (especialização) médica de acordo com as necessidades da população e, portanto, quase metade dos médicos são especialistas em Atenção Primária à Saúde.
No projeto inicial do Programa Mais Médicos, constava uma proposta de regulação das vagas de residência médica semelhante a do Canadá. Porém, essa proposta foi vetada por pressão da categoria médica e essa questão, que é de interesse social, continua reduzida às leis de mercado.
É certo que especialidades como dermatologia, cirurgia plástica, radiologia e anestesiologia são fundamentais e imprescindíveis à composição do sistema de saúde, não sendo possível afirmar que uma especialidade é mais importante que a outra. Mas é no mínimo curioso que a maioria dos profissionais se interessem mais por essas áreas de maior remuneração no setor privado, ao passo que há tão pouco interesse na área de Medicina de Família e Comunidade.
De qualquer modo, o Mais Médicos prevê a ampliação e a universalização da residência médica, e uma formação médica voltada às necessidades do povo brasileiro.
SUS
Os princípios norteadores do SUS são a universalidade, a equidade e a integralidade. Esses princípios garantem a toda população (inclusive a estrangeiros que estejam de passagem pelo país) o acesso universal e irrestrito ao sistema de saúde, bem como busca diminuir as desigualdades e disparidades e garante atendimento integral aos usuários (da promoção e prevenção à resolução das questões de saúde).
De fato, o SUS ainda tem muitas questões a melhorar, como o próprio artigo da revista científica inglesa aponta, principalmente no que se refere aos desafios financeiros e organizacionais. Embora a despesa total em saúde no Brasil seja semelhante à média de cerca de 9% do produto interno bruto (PIB) encontrada entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), menos da metade deste montante provém de fontes públicas – uma proporção que coloca o Brasil muito abaixo da média da OCDE na participação do governo dos gastos com saúde.
Ainda assim, o artigo aponta que o Brasil tem feito rápidos progressos rumo à cobertura universal da população. Os medicamentos mais comuns são universalmente acessíveis e gratuitos em muitos locais de atendimento para todas as cidadãs e todos os os cidadãos — mesmo aqueles 26% da população inscritos em planos de saúde privados. Das lições que o mundo pode aprender com a experiência brasileira, o artigo cita que os cuidados primários com base na comunidade podem funcionar, se feitos corretamente.
Ao final, o artigo faz um importante alerta: “o futuro da estratégia de saúde da família do Brasil, sua expansão sustentada para os demais centros urbanos e para o acesso da categoria média, e sua integração efetiva na atenção secundária e terciária exigirá engajamento dos prestadores de cuidados de saúde e continuidade dos investimentos públicos financeiros, técnicos e intelectuais – todos os quais, em última instância, dependem de apoio político.”
Para que esse apoio político se concretize dentro da categoria médica, é fundamental que a medicina deixe de ser uma profissão tão elitizada e, para tal, é preciso, dentre outras ações, democratizar o acesso ao ensino médico e retomar a proposta de universalização e regulação das vagas de residência médica de acordo com as necessidades sociais. Além disso, são imprescindíveis os trabalhos de organização e mobilização dos usuários do SUS.
Reportagem de Bruna Silveira, médica de Família e Comunidade
fonte:http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/um-retrato-da-desigualdade-medica-no-brasil/
foto:http://www.cartacapital.com.br/sociedade/desigualdade-na-escassez
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