Diante da pulsação de um mundo que nos quer atentos e fortes, como dizem os versos de Caetano Veloso, o escritor Eduardo Galeano seguirá como figura imprescindível nesse exercício de sintonia com o universo da informação e da formação de nós, leitores. Mais que tudo, esse uruguaio que nos deixou em abril de 2015 foi um pensador. Do lugar onde nasceu, a capital uruguaia, Montevidéu, Galeano pensou o universo latino-americano em sua complexidade e riqueza, acionando o seu olhar de observador, num exercício sincopado entre o micro, quase como um microscópio e ao mesmo tempo focando no macro, expandindo seu pensamento para o universo.
Tal tarefa ocupou grande parte de seus 74 anos e promoveu em Galeano outro exercício além da escrita, o da fala. Por isso, ao fazermos uma incursão pelo mundo da web, dos arquivos e dos registros, vamos nos deparar com dezenas de entrevistas, depoimentos, discursos e conversas em que ele discorre sobre temas variados: do futebol, uma de suas arraigadas paixões, à política, passando por literatura, direitos humanos, liberdade de expressão, à importância da imprensa, às questões socioambientais, além dos temas capazes de tocar aqueles que, na história do universo, sempre tiveram suas vozes abafadas. E em tais vozes estão centenas de anônimos cidadãos que sofreram e seguem sofrendo opressões políticas, sociais, econômicas, esportivas, religiosas, sexuais.
Assim, em sintonia com o mundo atual, será, portanto, uma experiência novidadeira, ouvi-lo. Talvez dessa maneira, via sua própria voz, será um pouco mais fácil entender o quanto Galeano tem a nos dizer, para além de seu legado, reunido em seus mais de 40 livros traduzidos para vários idiomas.
Legado esse que se sustenta em pilares sólidos, cravados na história, na mitologia, no jornalismo, na literatura, na política e no olhar de um observador para lá de especial. Legado esse que estreou nas páginas de um dos mais significativos periódicos culturais da América Latina na década de 60, o semanário Marcha (1959-1963) e, posteriormente, no diário Época (1964-1966). Ali, ao lado de outros escritores uruguaios, como Mario Benedetti e Juan Carlos Onetti, Galeano começou a desenhar sua escritura que contemplou crônicas, reportagens e críticas.
Anteriormente a essa etapa, aos 14 anos o uruguaio teve uma charge publicada no jornal El Sol, do Partido Socialista Uruguaio. Os dotes com o traço permitiram que o escritor prosseguisse uma de suas incursões pela diagramação e, posteriormente, ter dado conta das ilustrações de alguns de seus livros.
Essa ligação estreita com o jornalismo prosseguiu, quando, em 1972, Galeano dirigiu a revista Crisis, outra importante e inovadora publicação que mesclava um olhar político, analítico às questões políticas do momento (o início das ditaduras militares latino-americanas) com arte e literatura. Para tal proximidade, o escritor uruguaio referiu-se da seguinte forma: “Me envolvi com o jornalismo e nunca mais saí, de alguma maneira a gente fica para sempre sendo um habitante dessa casa mágica que é o jornalismo”.
O trânsito entre a literatura e o jornalismo imprimiu à escrita de Galeano um estilo de texto único, motivo suficiente para o surgimento de questões. À primeira vista de um leitor que abre, por exemplo, Espelhos – Uma história quase universal (2008) ou um dos outros de seus títulos clássicos, O Livro dos Abraços (1989): seriam poemas em prosa? Seriam mini ou microrrelatos? Para responder a tais indagações, lembremos uma vez mais que o requinte de observação do mundo trouxe para o escritor uruguaio um resultado de textos com a sua identidade.
Esse desenho das palavras, esse ritmo, essa forma de dizer as coisas, foi sendo tecido entre outros fatores também por conta de suas tantas viagens pela América Latina e Caribe, ao conhecer muito de perto os 21 países, afora o Brasil, que têm a língua espanhola como idioma comum, mas que também reúnem centenas de outras línguas das raízes indígenas e negras.
Vale destacar que a proximidade entre Galeano e o Brasil foi igualmente intensa, e não foram poucos os vínculos entre os intelectuais, músicos, artistas e gente simples, do povo, enfim brasileiros, que sempre se mantiveram retroalimentados, entre a língua e a cultura, entre o pensamento e o sentimento.
Entre 1972 e 1985, ficou longe de seu país natal, exilado na pequena cidade de Calella, próxima a Barcelona, na Espanha. Fugia de dois golpes militares em dois países latino-americanos: o primeiro, no Uruguai, e o segundo, na Argentina. Nesse último, teve o nome incluído na lista dos “esquadrões da morte” de Jorge Videla.
Foi em terras espanholas, na condição de exilado, que Galeano escreveu As Veias Abertas da América Latina, livro proibido em diversos países que se encontravam em regimes ditatoriais. Para essa obra, fica o lembrete que se trata de um livro necessário para a compreensão e discussão desse continente geopolítico social e cultural chamado América Latina. Mas que, atendendo a um chamado do próprio Eduardo Galeano, ano passado, quando esteve na Bienal de Literatura realizada em Brasília, como um dos homenageados, “talvez merecesse uma revisão em sua leitura”.
Para aqueles que estão se aproximando neste momento do universo do escritor uruguaio, porém, vale a retomada das palavras do jornalista Jorge Escosteguy na década de 1970: “As Veias Abertas da América Latina propõe um rigoroso inventário da história de um continente que deu ouro e prata, açúcar e diamantes, café e minerais estratégicos e vidas humanas aos colonizadores de plantão, recebendo em troca pouco mais que um subdesenvolvimento crônico e controlado”. E para que não fiquemos tão distantes desta obra que trouxe ao mundo das letras um dos mais jovens ensaístas, vamos a este trecho:
“A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita escolhe o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus privilégios pela herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e esta coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível”.
(A Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano. Paz e Terra, 1994)
Um pequeno recorte dessa obra nos leva ao encontro de uma das personagens pescadas por Galeano, a escritora Maria Carolina de Jesus, autora de Quarto de despejo. Carolina, mineira nascida na cidade de Sacramento, teve no ano passado o centenário de seu nascimento comemorado, reconhecidamente como uma das importantes escritoras negras brasileiras. Ela foi moradora de uma favela do bairro do Canindé, zona norte de São Paulo, e ganhava a vida como catadora de papéis; papéis esses que serviram de registros para seus escritos na década de 60.
O que Galeano nos diz sobre essa precursora nos temas da escrita feminina negra:
Carolina Maria de Jesus nasceu no meio da sujeira e dos urubus.
Cresceu, sofreu, trabalhou duro; amou homens, teve filhos. Num livrinho, anotava com letra ruim suas tarefas e seus dias.
Um jornalista leu esses livros por acaso e Carolina Maria de Jesus converteu-se numa escritora famosa. Seu livro Quarto de Despejo, diário de cinco anos de vida num sórdido subúrbio da cidade de São Paulo, foi lido em 40 países e traduzido para 13 idiomas.
Cinderela do Brasil, produto do consumo mundial, Carolina Maria de Jesus saiu da favela, correu o mundo, foi entrevistada e fotografada, premiada pelos críticos, agasalhada pelos cavalheiros e recebida por presidentes.
Passaram-se os anos. No início de 1977, numa madrugada de domingo, Carolina Maria de Jesus morreu em meio ao lixo e aos urubus. Ninguém se lembrava da mulher que escrevera: “A fome é a dinamite do corpo humano”.
Ela, que havia vivido de restos, pode ser, fugazmente, uma eleita. Foi permitido a ela sentar-se à mesa. Depois da sobremesa, rompeu-se o encanto. Enquanto seu sonho transcorria, o Brasil continuava sendo um país onde a cada dia cem trabalhadores ficam lesados por acidentes de trabalho e onde quatro de cada dez crianças que nascem são obrigadas a converter-se em mendigos, ladrões ou mágicos.
(As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Paz e Terra, 1994).
A militância em dar visibilidade e voz a quem lhe foi tirado o direito de expressar-se sempre foi marca do escritor. A aproximação às protagonistas femininas não estancou por aí. Galeano editou Mulheres (1997), reunindo personagens distribuídas ao longo de séculos, que tiveram relevância, ora histórica, ora social, ora pessoal; de forma explicitada ou de forma anônima. Como podemos acompanhar nesse microrrelato:
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.
(Mulheres, de Eduardo Galeano, LPM, 1997)
A coletânea feminina recolhe textos de livros como A Trilogia Memória do Fogo (Os Nascimentos, As Caras e as Máscaras e o Século das Luzes), Vagamundo, Palavras Andantes e Noites de Amor e Guerra. Mas o olhar direcionado ao universo feminino prosseguiu quando Galeano, mais recentemente publicou Los Sueños de Helena, dedicado à sua companheira, Helena Villagra.
Com esta rápida apresentação sobre o tanto que Eduardo Galeano tem a nos contar, fica então conectada outra alavanca de sua obra: a de nos trazer as memórias. Essa memória viva do nosso cotidiano, assim como a memória ancestral deste universo latino-americano marcado por diferenças e peculiaridades, este é o eixo central da leitura de O Livro dos Abraços (1989), o que de certa forma teve continuidade em Espelhos, Uma História Quase Universal e Os Filhos dos Dias (2012).
Autor premiado, Galeano sempre apregoou um rito do escritor: o de não inflacionar as palavras e “a não escrever por escrever, mas escrever palavras que queiram ser melhores que o silêncio”.
Reportagem de Joana Rodrigues
fonte:http://www.cartanaescola.com.br/single/show/533
foto:http://www.apn.org.br/w3/index.php/america-latina-brasil/7095-eduardo-galeano-montevideo-america-latina-1940-2015
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