Artigo de Jones Figueirêdo Alves, desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família e é autor de obras jurídicas de Direito Civil e Processo Civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
Quando, em primeiro momento, crianças e adolescentes são estimulados a uma imersão na realidade virtual, tecnologia e redes sociais os seduzem em substituição da presença dos pais, que, omissos às relações parentais mais qualificadas, outorgam-lhes a denominada “orfandade digital”. Eis que submetidos, então, aos modernos aparatos da virtualidade, seus instrumentos e redes, tornam aqueles ainda mais vulneráveis; vítimas, em segundo momento, pelo abandono digital dos pais, que, ausentes e com a convivência deteriorada, não fiscalizam nem supervisionam como transcorre a vida virtual dos filhos.
O “abandono digital” é a negligencia parental configurada por atos omissos dos genitores, que descuidam da segurança dos filhos no ambiente cibernético proporcionado pela internet e por redes sociais, não evitando os efeitos nocivos delas diante de inúmeras situações de risco e de vulnerabilidade.
O termo foi cunhado por Patrícia Peck Pinheiro, em artigo do tema, avaliando que “os pais têm responsabilidade civil de vigiar os filhos”, designadamente quando “a internet é a rua da sociedade atual”, implicando reconhecer que quanto maiores a interatividade da web e o acesso às novas tecnologias, “maior a necessidade de educação”[1].
Entenda-se: uma educação digital como “pauta de segurança que deve estar no dia a dia das famílias”, como assinalou a nominada jurista, à medida que se impõe ministra-la, mormente quando se fornecem aos filhos menores os atuais recursos tecnológicos disponíveis (celulares com câmeras, tablets etc.) reclama-se, em mesma latitude, uma assistência (supervisão) parental devida, segura e permanente, a respeito do uso e limites dos equipamentos e da potencialidade dos riscos existentes.
Nesse alcance, o artigo 29 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), é decisivo ao assinalar que “o usuário terá a opção de livre escolha na utilização de programa de computador em seu terminal para exercício do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores, desde que respeitados os princípios desta lei e da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)”. Induvidoso que a norma jurídica busca reconhecer na nova sociedade digital, despontada pelas mídias sociais e por inúmeros aplicativos, a responsabilidade parental em face dos filhos conectados com as tecnologias que os fascinam e, a um só tempo, os ameaçam à falta de uma correspondente educação digital que os permitam conviver sem maiores riscos.
O fenômeno do desamparo parental em relação aos filhos menores, frente às novas tecnologias, para um imediato conceito de abandono ou da negligência, há de dialogar, antes de mais, com questões jurídicas subjacentes, no que diz respeito à própria autonomia das crianças e adolescentes, em posição de sujeitos titulares de direitos específicos e personalíssimos. A jurista Maria Clara Sottomayor, atual ministra do Tribunal Constitucional português, agradece aos seus pais, porque na infância a deixaram ser ela mesma[2].
Assim, inobstante regras cíveis de incapacidade geral de exercício, impedientes à autonomia de regência da pessoa em menoridade; ao seu desenvolvimento intelectual e emocional importa, sim, que coparticipem (com determinadas autonomias) de suas próprias vidas, em benefício da individualidade, ao tempo do acompanhamento dos genitores, no plano das tutelas jurídica e afetiva.
Nesse sentido, assinala-se, de efeito, que a autoridade parental, em vigília do espaço virtual navegado pelos filhos, exigirá a atitude prefacial de uma relação de confiança mútua, onde o diálogo educativo será a primeira ferramenta de construção do controle sobre as interatividades de comunicações virtuais por eles exercidas. No ponto, essa confiança permitirá a cessão de parcela de privacidade pessoal que os adolescentes não toleram invadida, no proveito de aprendizagens e de confidências. Ou seja, educação digital e confiança servindo de binômio indispensável à atuação mais protegida dos filhos nos seus empreendimentos “on line” de conhecimento e de relacionamentos, pela postura atenta, educadora e vigilante dos genitores responsáveis.
Demais disso, ao lado do “direito de autonomia” pontifica o “direito ao respeito”, expressando sobre ambos o ECA, em seu artigo 17, que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, o que mais reitera necessária a interação dinâmica, objetiva e dialogada das relações parentais entre pais e filhos, para a segurança digital.
Ocorre que estando a criança e/ou o adolescente em sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, mais se acentuam as responsabilidades parentais pelos deveres de cuidados, como obrigação jurídica extraída do regular exercício do poder familiar.
Aliás, dessa condição peculiar onde a construção da identidade pessoal será resultado da interação entre a pessoa e o meio, conforme mecanismos institucionais/culturais da sociedade então vigente, como dirá o psicanalista alemão Erik Homburger Erikson, em sua consagrada teoria exposta em “Infância e Sociedade” (1950), mais se percebe que o desenvolvimento psicológico dos filhos vem exigir a “vigília digital” dos genitores.
Efetivamente não será razoável supor que a criança ou adolescente, em perspectiva da atual “sociedade de risco” (Ulrick Beck, 1986) ou da “sociedade da informação” (Fritz Machlup, 1962), alcance níveis satisfatórios de segurança no mundo digital, sem o cuidado, a vigilância ou a autoridade parental em controles dirigidos e orientadores quanto às ações por eles incursionadas na internet ou em acesso e remessa de conteúdos nas mídias digitais.
Situações de perigo precisam ser, a todo rigor, definidas e qualificadas, para o efeito da proteção adequada e, ainda, nos fins da configuração da negligência parental, inclusive para o âmbito das interatividades virtuais, certo que aquelas, em suas espécies, não se acham devidamente alinhadas em lei, dentro do contexto de uma necessária tutela protetiva.
Bem de ver que as situações de risco ou de perigo são indicadas, apenas por manuais e artigos didáticos, circunscritas com reiteração às hipóteses de violências (física, psicológica ou sexual), de exclusão social, de situação de rua, ou de abandono, uma delas confundindo-se mesmo com a própria negligência parental, o que “corresponde aos atos de omissão com efeitos negativos que representam uma falha no desempenho dos deveres do adulto, incluindo os de supervisão, de alimentação e de proteção”.
Em Portugal, a Lei 147/99, com sua versão mais recente pela Lei 142/2015, cuida da proteção de crianças e jovens em perigo, assim encontrados por alguma das situações qualificadas legalmente como tais, de forma exemplificativa, e a primeira delas é a do abandono[3].
Evidente que ao conceito de abandono, como situação de perigo, integra-se a falta dos cuidados necessários à idade do menor, no espectro virtual, pelo genitor omisso ou negligente (situação de “abandono digital”), ficando o filho entregue a si próprio e aos seus equipamentos eletrônicos. Daí decorrem os perigos psíquicos e emocionais suscetíveis nessa esfera de vivência digital, certo que a noção de perigo se vincula, desde logo, à iminência ou potencialidade dos danos, independente de a lesão haver efetivamente ocorrido. Com efeito, a primeira situação de perigo, compreensiva em sua ampla extensão, é o da própria criança desassistida por abandono digital dos genitores.
De forma específica, anotam-se, com maior frequência, como situações de risco ou de perigo, exemplificativamente:
- O cyberbullying (cyber” + bullyiing):
Representado pelo emprego virtual do bullying e constituindo violação de direito à identidade da pessoa, mais disseminado quando se propõe a empreender agressões de maior extensão, através de comunidades formadas, para esse fim, nas redes sociais.
A questão é acentuada no documentário Bullying (2011), de Lee Hirchs, onde se apresenta pesquisa indicando que mais de 13 milhões de crianças americanas são vítimas da prática, a cada ano. Uma cultura individualista que tem dominado as sociedades atuais, de autossuficiência exacerbada e de carência de solidarismo social produz o bullying que tem entre os objetivos mais acendrados, que funcionalizam a sua prática, a discriminação, a perseguição e a exclusão da vítima do seu grupo social. As suas variadas formas de manifestação incluem a perseguição e os atos ilícitos (e criminalizados) contra a honra (injúria, calúnia ou difamação).
O bullying digital, cometido na internet e em redes sociais, mediante as modernas tecnologias de comunicação, tem os mesmos objetivos e sua prática recorrente vem exigir um controle parental rigoroso, a evitar a vitimização dos filhos ou a própria responsabilidade civil dos genitores por atos daqueles.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua 6ª Câmara Cível, reconheceu, em 2010, a responsabilidade parental por ato ilícito de filho menor, pela prática de cyberbullying na internet. A relatora do caso, desembargadora Liége Puricelli Pires, considerou que a proprietária identificada do computador de onde foi criado fotolog e enviadas mensagens com conteúdos ofensivos era solidariamente responsável (artigo 932, inciso I, do Código Civil), por ato de cyberbullying cometido pelo filho[4].
O cyberbullyling tem alcance jurídico significativo, desafiando um tratamento normativo adequado. O exemplo mais emblemático, em suas nuances jurídicas, talvez seja o “Caso Megan Meier”: anota-se que a jovem Megan Meier (13 anos), no Missouri, EUA, manteve, por algum tempo, um “romance virtual”, através do MySpace, com um adolescente chamado Josh Evans (16 anos), tendo este, acabado o romance, passado a ofende-la, com mensagens ofensivas e reiteradas humilhações. Megan não resistiu aos constrangimentos, suicidando-se por enforcamento; vindo, então, saber-se que Josh era um perfil falso, criado por Lori Drew, uma dona de casa. Em verdade, ela estava praticando cyberbullying, em represália ao abandono do seu filho adolescente pela jovem.
- O sexting
Denominada como a prática de produção de imagens ou vídeos, sensuais e lascivos, em exposição de atos de natureza sexual ou erótica, frente a uma câmera ou “webcam”, tornados disponíveis aos parceiros íntimos, por tecnologias de aplicativos e celulares, e-mails ou outros meios virtuais. Resulta, porém, a pessoa que assim procede e transfere a outrem os arquivos de tais conteúdos, suscetível de ser ameaçada, extorquida ou vitimada, pela divulgação massiva das imagens e vídeos que envolveram aquela exposição. Pesquisas indicam que o sexting tem sido utilizado por cerca de um quinto dos adolescentes nos Estados Unidos[5].
É paradigmático o “Caso Jessica Logan”: a adolescente produziu uma foto sua, apresentando-se nua, e a enviou ao seu namorado, com o intuito de fortalecer o relacionamento. Depois que se separaram, ele passou a divulgar a foto de Jessica para um grande número de outros alunos no Sycamore High School e Loveland High School, na comunidade de Cincinnati, Ohio, EUA. Humilhada e rejeitada pelos insultos sofridos, Jessica suicidou-se por enforcamento (junho, 2008). A repercussão do caso permitiu a criminalização da conduta, em diversos Estados americanos.
- A criação de perfis falsos (fakes)
O criador do “fake” utiliza uma identidade falsa, para sob essa identidade praticar crimes virtuais, atos de exploração sexual e pedofilia. Esta situação de perigo é manifesta, consabido que em 2013 cerca de 43% das crianças de nove a dez anos, com acesso à internet, já tinham perfil próprio em uma rede social, conforme pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Verificado que as situações de perigo no âmbito digital precisam, sempre, ser detectadas; impõe-se, para a tutela integral de proteção dos filhos, o dever de controle das suas interatividades virtuais, sob pena de aperfeiçoar-se a negligência parental com a devida responsabilização civil.
Desde o compartilhamento de senhas aos programas de computador de controle parental, impende observar que os diálogos de confiança e os monitoramentos adequados são instrumentos que devem atender, com precisão, à responsabilidade parental.
Do contrário, crianças e adolescentes aparentemente sozinhas em seus quartos, virtualmente conviverão com estranhos e com os perigos, enquanto estarão, em verdade, sozinhas dentro da família.
[1] PINHEIRO, Patrícia Peck. Abandono digital. In: Direito Digital Aplicado 2.0., Coord. Patrícia Peck Pinheiro; São Paulo: Thompson Reuters/Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 2016
[2] SOTTOMAYOR, Maria Clara. Temas de Direito das Crianças. Coimbra: Editora Almedina, 2014, 355 pp.
[3] SOTTOMAYOR, Maria Clara. Obra cit., p. 333
[4] Web: http://www.conjur.com.br/2010-jul-02/mae-responsabilizada-cyberbullying-praticado-filho
[5] Web: www.thenationalcampaign.org
fonte:http://www.conjur.com.br/2017-jan-15/processo-familiar-abandono-digital-expoe-crianca-efeitos-nocivos-internet
foto:http://ptaourchildren.org/2016/02/08/play-your-part-for-a-better-internet/
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