Sem recriminação, a coalizão liderada pela Arábia Saudita destrói o país vizinho, que “em cinco meses se parece com a Síria após cinco anos”.
Uma característica da imprensa internacional é a incapacidade de acompanhar de forma simultânea mais de uma tragédia no Oriente Médio e na África. Isso faz com que alguns dramas sejam esquecidos ou simplesmente ignorados. É o que ocorre atualmente com o Iêmen. Enquanto a comunidade internacional (ocidental) se preocupa com a crise de refugiados na Europa ou com o Estado Islâmico, a coalizão liderada pela Arábia Saudita está destruindo o Iêmen.
O Iêmen vive um duro conflito há seis meses. No fim de março, a Arábia Saudita lançou uma ofensiva contra os houthis, movimento político religioso xiita que tomou quase todo o território do país no início do ano, forçando a renúncia do presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi. Historicamente opostos à influência saudita no Iêmen e alinhados ao Irã, os houthis são encarados como uma ameaça pela monarquia saudita. Temendo a influência iraniana em suas fronteiras, a Arábia Saudita arregimentou uma aliança de dez países muçulmanos e decidiu intervir para restituir Hadi ao comando do país.
Parte importante da ofensiva é feita por meio de bombardeios. Em grande medida, os ataques aéreos têm características de crimes de guerra. ONGs internacionais relatam bombardeios contra área civis densamente populadas em Taiz, Aden e Mokha, no sul do Iêmen, mas a prática parece ser corriqueira.
Em maio, um porta-voz da coalizão afirmou que a cidade inteira de Saada, bastião houthi no norte do país, era uma alvo militar, o que viola a lei humanitária internacional, por não distinguir alvos militares de civis. Em agosto, a ONU reportou uma “severa destruição de infraestruturas civis” na cidade, incluindo mercados, bancos e escolas.
Também no norte do Iêmen, a Arábia Saudita tem utilizado bombas de fragmentação, que explodem no ar, liberando diversas "sub-bombas". Esse tipo de munição coloca os civis em risco por atingir grandes áreas e por criar campos minados com os artefatos que não explodem. O resultado da ofensiva aérea está em um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU divulgado no início de setembro: entre 26 de março e 30 de junho, os bombardeios mataram ao menos 941 civis e deixaram 2.295 civis feridos.
No mesmo período, mostra o relatório, os houthis e seus aliados (militares leais ao ex-ditador do Iêmen Ali Abdullah Saleh, aliado da milícia xiita) mataram 508 civis e deixaram outros 954 feridos. Em grande medida, a letalidade se deve ao fato de os houthis frequentemente usarem foguetes, morteiros e artilharia em áreas civis populosas (o que também pode implicar em crimes de guerra), às vezes matando dezenas de pessoas simultaneamente.
Esses números da carnificina, que não incluem agosto e setembro, certamente serão ampliados. As forças locais anti-houthi também atacam áreas civis e, desde o fim do mês passado, contam com o auxílio de tropas terrestres da coalizão liderada pela Arábia Saudita – cerca de 5 mil soldados estrangeiros, sendo 4 mil dos Emirados Árabes Unidos e mil sauditas.
Atualmente, a coalizão tenta chegar à capital Sanaa por duas frentes, uma a leste e outra ao sul, e tem bombardeado áreas civis da cidade, inclusive seu centro velho, patrimônio cultural da humanidade.
Catástrofe humanitária
A intervenção estrangeira deixou o Iêmen em uma situação catastrófica. Em agosto, Peter Maurer, chefe da Cruz Vermelha Internacional, notou em entrevista para a agência Associated Press que os efeitos da guerra seriam menores em uma sociedade mais forte e com uma estrutura melhor. O Iêmen, no entanto, é o país mais pobre do Oriente Médio e, de acordo com Maurer, "em cinco meses se parece com a Síria após cinco anos".
Guardadas as proporções entre os dois países, os números indicam que a tese de Maurer está correta. Até aqui, ao menos 1,3 milhão de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas por conta do conflito, sendo que algumas escolheram a Somália como refúgio, por considerar o país africano um lugar mais seguro que o Iêmen.
Segundo a ONU, 80% da população (cerca de 21 milhões de pessoas) precisam atualmente de ajuda humanitária para necessidades básicas e auxílio para ter acesso a água potável (cujo preço pode comprometer um terço do orçamento familiar) e a instalações sanitárias. A dificuldade de obter o mínimo de higiene tem feito doenças como a dengue e a malária se espalharem.
As crianças, que desde março morrem ou são amputadas a uma média de oito por dia, são particularmente afetadas pela guerra. Como a coalizão liderada pela Arábia Saudita impôs um bloqueio naval ao Iêmen, e como o país importa 90% do alimentos que consome, 1,8 milhão de crianças devem sofrer com desnutrição neste ano, sendo 537 mil de forma severa. Um agravante é que o embargo afeta também organizações humanitárias, que não conseguem levar para dentro do país os mantimentos e equipamentos necessários para auxiliar a população local.
O futuro é terrível
As perspectivas futuras do Iêmen são tenebrosas. Observadores da Arábia Saudita indicam que a ofensiva parece ter se tornado um projeto pessoal de Mohammed bin Salman, ministro da Defesa e segundo na linha de sucessão do rei Salman, seu pai. A vitória no Iêmen, contra uma força militar alinhada ao Irã, maior inimigo da Arábia Saudita, seria, assim, fundamental para ele se cacifar na família real como futuro rei.
Apenas a pressão externa poderia fazer o governo saudita recuar, mas essa possibilidade pode ser descartada. A gestão Barack Obama fez os Estados Unidos passarem a ser vistos com suspeitas pela monarquia saudita, por ter reduzido a firmeza da aliança entre os dois países.
A assinatura de um acordo nuclear que reconhece o Irã como potência regional foi a comprovação dos temores sauditas. A rapidez das potências europeias para retomar relações com o Irã diluiu também a capacidade de influência de França e Reino Unido sobre a Arábia Saudita.
Focados em conter a oposição saudita ao acordo nuclear, EUA e europeus têm poucas motivações para desagradar os sauditas ao exigir o fim da intervenção no Iêmen. Além disso, lucram ao vender armas e equipamentos militares aos países do Golfo Pérsico – as bombas de fragmentação usadas no norte do Iêmen, por exemplo, são de fabricação norte-americana.
Neste cenário, há pouca esperança para o Iêmen. Tudo indica que o país continuará a ser destruído e os civis vitimados enquanto a Arábia Saudita desejar, e sem qualquer recriminação internacional.
Reportagem de José Antonio Lima
fonte:http://www.cartacapital.com.br/internacional/iemen-uma-tragedia-esquecida-1242.html
foto:http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/05/combates-no-iemen-deixaram-mais-de-1200-mortos.html
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