30/05/2015

Itália: Número de menores imigrando sozinhos preocupa autoridades e ONGs de acolhimento

Desenho feito por menor mostra trajeto de barco entre a Líbia e a Itália
Enquanto o Parlamento Europeu discute o número de imigrantes refugiados que cada país terá que receber, a organização Save The Children revela um dado preocupante: o crescente número de menores estrangeiros não acompanhados que, sozinhos, enfrentam as águas do Mediterrâneo ou as montanhas do Afeganistão em busca de uma vida melhor.  A dimensão da emergência se traduz em números: só de janeiro a maio deste ano, foram registrados na Itália 1.686 menores não acompanhados.  
O número está em constante aumento. Segundo dados publicados pelo Ministério do Trabalho italiano, em 2014 foram registrados 14.243 menores não acompanhados – 54% a mais do que em 2013.  Eles provêm de zonas de guerra e conflitos sociais, como Gâmbia, Somália, Eritreia, Síria e Palestina. Mas vêm também do Afeganistão, Grécia, Bangladesh e do leste europeu.  Destes, 95% são do sexo masculino. Eles têm, em média, 17 anos, e 7,4% registram idade inferior a 15. A Sicília e o Lazio – onde fica Roma – são as regiões que mais acolhem os refugiados no país. 
Na Itália, existem duas portas principais de entrada para imigrantes não documentados: por meio do canal da Sicília, atravessado por barco e usado, principalmente, por imigrantes do continente africano, e a cidade de Trieste, que fica na divisa com a Croácia, por onde os imigrantes, vindos de países asiáticos e do leste europeu, chegam a pé ou dentro de contêineres.
Segundo Renato Mingardi, coordenador da área de imigração do Centro de Solidariedade Don Lorenzo Milani, uma ONG de Veneza que trabalha com acolhimento de menores, o número crescente de crianças e adolescentes que imigram sozinhos deve ser visto como uma mudança no paradigma da imigração. “Até há pouco tempo, quem imigrava era o pai ou o irmão mais velho, sempre a figura responsável pela família, economicamente falando. Para os que ficavam, significava não haver mais meios de subsistência”, diz.
Para Renato, o fim das cotas de ingresso para trabalhadores estrangeiros também ajudou nessa mudança. “Agora a história é outra, não tem mais trabalho, a Europa está em crise, então se opta pelo pequeno porque sabem que ele não será repatriado e que receberá, na medida do possível, instrução e educação no país que lhe hospitalizará.” Segundo o educador, existe uma eficiente rede de informação. “Antes de decidirem o processo imigratório, as pessoas se informam. Com a internet ficou muito fácil conversar com quem já enfrentou o mesmo percurso e se informar sobre as leis do país para onde estão mandando os filhos, no caso, as leis italianas”, diz. 
Processo imigratório
“O fato de uma família colocar um filho num barco sozinho é inaceitável para nossa cultura, mas o que você faria se fosse a única chance de salvar teu filho?”, questiona Renato.  Em todo caso, diz, qualquer decisão é tomada em família. É o caso do jovem afegão Mohammed*, que chegou à Itália cinco anos atrás, quando tinha 17 anos. “Foi uma decisão tomada junto com a minha família. Não podia mais continuar no Afeganistão, tinha ficado muito perigoso para mim”, diz.
Apesar de ter organizado tudo com a família, Mohammed não tinha a menor ideia de como seria o percurso até a Itália. “A gente imagina que será de uma forma, mas na verdade é difícil. Se soubesse que era tão perigoso, não teria partido”, diz. Ele não gosta de falar sobre a viagem porque “traz horríveis lembranças”.
Mohammed deixou o Afeganistão com US$ 300 (cerca de R$ 950) e chegou à Grécia com US$ 50 (aproximadamente R$ 160). Metade da viagem já havia sido paga por seus pais antecipadamente. “Esse é um modo para estabelecer contato com os traficantes de pessoas e chegar ao país já sabendo onde deve ir e quem procurar, facilita um pouco o percurso”, diz.  Ele explica que carregar muito dinheiro para pagar os traficantes durante a viagem é perigoso porque  “eles acabam sabendo e podem te roubar ou matar para tê-lo”. “Durante a viagem, você trata com vários passer [como são chamados os traficantes humanos], um ou mais de um em cada país que pisa. A rede é criminosa e muito perigosa.”
“Ninguém faz uma viagem dessas por fazer. Quem entra nessa história é porque realmente não vê outro modo de escapar. Eu achei que morreria. Várias vezes quis voltar para casa, mas não podia”, diz.  O jovem afegão atravessou quatro países até chegar à Itália. Brincando, disse que nunca andou tanto na vida: caminhou em trechos entre o Afeganistão e atravessou a pé a fronteira entre o Irã e Turquia. De lá, conseguiu um lugar num velho barco em direção à Grécia, que, porém, afundou em meio ao mar. “Lembro-me de famílias com crianças de colo e nós, com a água batendo no peito, tendo que encher um bote inflável com a boca para não morrer ali no meio do nada.”
“Na Grécia, conheci um grupo de 21 afegãos e me juntei a eles. Pagamos um passer que nos colocou num contêiner dentro de um caminhão que estava vindo para a Itália. O caminhão pegou a balsa com destino ao porto de Brindisi [no sul da Itália]. Mas o caminhoneiro só nos liberou quando estávamos no norte do país, próximos a cidade de Pádua”, diz. Mohammed e o grupo foram detidos pela Polícia Rodoviária e encaminhados a um centro de identificação de imigrantes. Posteriormente, ele foi levado ao abrigo Don Lorenzo, onde conheceu Mingardi.
Libertar o cérebro
Mas a história imigratória da família de Mohammed começou antes que eles decidissem que o garoto partiria sozinho para a Itália. “Na época dos talibãs, era muito difícil para as mulheres poderem estudar, assim sendo, meus pais nos levaram para o Paquistão e minhas duas irmãs puderam seguir com os estudos. Ficamos lá até a chegada dos americanos. Meu pai acreditou na história que contaram, de que foram levar a paz, e resolveu voltar para sua terra. O problema é que, quando chegamos, vimos que não era nada daquilo que tinham contado. Nos sentimos enganados. Desde então, reina a insegurança no Afeganistão. Os americanos não foram lá levar a paz, mas a guerra, nos engaram, usaram nossa terra para testarem suas armas.”
O jovem fala todas as semanas com seus pais e eles continuam a dizer que a situação é insuportável. “Meu país ainda está em guerra”, diz.  Apesar de ter um contrato de trabalho e de poder trazer seus pais para a Itália, ele diz que, nesse momento, não pensa nisso. “Penso em minhas irmãs. Elas não podem ser deixadas sozinhas lá, é muito perigoso ser uma jovem mulher no meu país, prefiro que meus pais fiquem com elas para protegê-las”, diz.
Mesmo já tendo passado cinco anos da sua viagem, Mohammed não consegue “se dar” paz. Foi em busca de tranquilidade que o jovem decidiu deixar o trabalho de mediador cultural e intérprete nas comissões que julgam pedidos de asilo político. “Era como rever minha história sempre, mas eu queria esquecê-la. Gostava daquele trabalho, mas tive que parar, porque precisava libertar meu cérebro.”
Bombas em Gaza
A história de Yusuf*, de 16 anos, não é muito diferente da de Mohammed.  Ele fugiu de Gaza com o amigo Ahmed, também de 16 anos, e chegou a Lampedusa em fevereiro passado. Foi levado ao centro de acolhimento da ilha, onde a ONG Save the Children presta assessoria jurídica e serviços de mediação cultural. Yusuf contou sua história aos voluntários da ONG que o acolheram. Segundo o adolescente, ele deixou Gaza por causa da guerra. “Você não pode caminhar 200 metros sem saber se uma bomba vai explodir ao seu lado. Tudo ao meu redor era guerra e morte. Fugi porque queria mudar minha vida”. 
Yusuf, que não frequentou a escola e mal sabe escrever seu nome, relatou com precisão a viagem de 13 horas, de barco, para a Itália. "Fomos colocados em um barco onde o capitão nos disse estávamos indo para a Itália. Tivemos de comprar os nossos próprios coletes salva-vidas. Aqueles que não puderam pagar ficaram sem. Havia cerca de 250 pessoas no barco. Os traficantes tinham armas e nos ameaçaram. Não podíamos falar com eles, caso contrário, disseram que nos jogariam no mar ou atirariam em nós. O barco estava com problemas e parou duas vezes. As mulheres e crianças começaram a chorar. Entrava água no barco e ficamos com medo de afundarmos. Foi aí que o capitão chamou a guarda costeira italiana, que veio nos resgatar.”
Desaparecimentos
Dentro da questão dos menores estrangeiros não acompanhados que chegam à Itália, existe uma realidade ainda mais assustadora: os menores que simplesmente desapareceram. Dos 14.243 menores não acompanhados registrados na Itália ano passado, de 3.707 se desconhece o paradeiro. Existe uma investigação no Ministério Público de Palermo que indaga o problema.  Segundo Amália Settineri, procuradora do caso, essas menores podem estar sendo usados pela máfia para o tráfico de drogas e até mesmo para trabalho nos campos agrícolas no sul do país.
Para Carlotta Sami, porta voz do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) para o sul da Europa, os dados são “alarmantes”. “Estes menores têm direito a proteção internacional”, diz. O ministro do Interior, Angelino Alfano, porém, observa que esses menores têm entre 16 e 18 anos e que trazem no bolso um contato de parente ou amigo de família que mora em algum país da Europa. “O que quer dizer que quem desaparece não necessariamente é porque caiu nas mãos da máfia”, afirma.
Já Mingardi, da ONG Don Lorenzo, diz que existem duas variáveis que fazem esse número ser tão relevante. “A realidade é que muitos não querem ficar na Itália e desaparecem dos centros de acolhimento antes de serem identificados, porque o destino final do processo imigratório deles não é a Itália e sim outro país. Outro ponto é a situação problemática das estruturas de acolhimento na Itália: são superlotadas, não oferecem um percurso de integração e deixam os garotos sozinhos”, diz.
O educador também aponta o dedo para o Tratado de Dublin, que obriga os imigrantes a pedirem asilo no primeiro país onde colocam os pés. “Então se desembarcam na Itália e não pretendem ficar, fogem antes de serem identificados para poderem fazer o pedido de asilo no país que escolheram como destino”.
Segundo uma pesquisa realizada em 2014 pela Comissão Europeia, que se intitula European Migration Network, o número de menores estrangeiros não acompanhados com direito à proteção internacional é em crescente em toda a comunidade. Mas, dos 12.685 menores registrados ano passado em toda a Europa, menos de mil entraram com pedido de asilo na Itália. O destino preferencial desses menores é Alemanha, França, Inglaterra, Áustria e Suíça. “O que prova a tese de que a maioria não quer ficar na Itália”, diz Mingardi.
Em relação à precariedade e superlotação das estruturas de acolhimento, a senadora Silvana Amati, do Partido Democrático, denunciou a situação no parlamento. “As comunidades estão superlotadas e são insuficientes em relação ao número de menores que devem receber, como consequência direta muitos menores não encontram abrigo e acabam sendo colocados em estruturas para adultos ou acabam fugindo de mais uma situação de deságio social”, disse.
Para tentar reverter o problema, o Ministério do Interior liberou 4,5 milhões de euros para programas de acolhimento neste ano.

Reportagem de Janaína César/Roma
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/40535/italia+numero+de+menores+imigrando+sozinhos+preocupa+autoridades+e+ongs+de+acolhimento.shtml
imagem:Héðinn Halldórsson/Save The Children/

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