04/02/2015

Turismo predatório obriga jovens a deixar Veneza ao dificultar acesso a emprego e moradia


Quem em sã consciência conseguiria imaginar que um dos lugares mais lindos e românticos do mundo estivesse morrendo? A teatralidade espetacular de Veneza está sendo devorada e a cidade está se transformando em uma espécie de Disneylândia italiana, onde tudo é feito e pensado para o turismo, apenas para suas necessidades e exigências.
Os impactos na cidade são diversos: a gradual transformação do tecido urbano e comercial; a expulsão dos venezianos originários por falta de políticas públicas em emprego e habitação; ou ainda a destruição do Canal Grande para facilitar a passagem dos monstruosos cruzeiros marítimos — que, em proporção e tamanho, fazem Veneza se sentir pequena.
Somente no ano passado, Veneza recebeu, segundo dados da Secretaria Municipal de Turismo, cerca de 27 milhões de visitantes, algo como 74 mil por dia. O número é bem maior do que os 36 mil turistas diários, quantidade indicada como limite pelo professor e pesquisador Paolo Costa, ex-reitor da Universidade Ca’Foscari, autor do trabalho “Um modelo linear para a programação do turismo: sobre a capacidade máxima de acolhimento do Centro Histórico de Veneza” (em tradução livre). Para o acadêmico, ir além deste número seria devastador para a cidade, tida como uma das mais frágeis do mundo e que, desde 1987, faz parte do patrimônio histórico mundial da Unesco (órgão da ONU para Educação, Ciência e Cultura).
Para enfrentar a questão, surgiram propostas mirabolantes — e rejeitadas pelo poder público — como restringir o acesso à cidade com um número fechado de visitantes por dia e divulgar outros campos (praças venezianas) para tirar o fluxo dos principais pontos turísticos da cidade. A única ideia que o governo local topou foi a criação de uma taxa de turismo, estipulada em 3 euros por dia. No entanto, como a cobrança é paga diretamente no hotel, ficam de fora da arrecadação os milhões de turistas que, embora passem o dia desfrutando da beleza de Veneza, não pernoitam na cidade.
Ciao, ciao Venezia
Em pleno contraste com a invasão de turistas, Veneza nunca teve tão poucos habitantes como agora. E pior, o número tende a diminuir. Hoje vivem na cidade 56 mil pessoas, quantidade bem inferior aos 98 mil que sobreviveram à epidemia de peste bubônica em 1631. Segundo as últimas estatísticas municipais, a cada ano cerca de 1.000 moradores deixam a cidade e, se o esvaziamento continuar, em duas décadas, não haverá mais venezianos na Laguna — nome afetuoso que a cidade-lagoa recebeu de seus amantes.
Para chamar atenção ao problema, o farmacêutico Andrea Morelli, 57, fez algo inusitado: instalou em uma vitrine da farmácia um contador luminoso regressivo que indica o número de habitantes de Veneza. “Este problema tinha que sair do gueto e ser escancarado aos quatro cantos do mundo”, explicou.
Fuga de jovens envelhece a cidade
Sem perspectiva de trabalho, os jovens são os primeiros a deixar a cidade. “Muitos vão embora porque, além de não encontrarem um trabalho que não seja ligado ao turismo, não acham imóveis com aluguéis acessíveis”, assinala Tommaso Cacciari, ativista do Laboratório Ocupado Morion. E completa: “Os valores praticados pelo mercado imobiliário são impensáveis para um jovem precarizado”.
Para o militante, há duas raízes para o problema da falta de moradia para os jovens locais. De um lado, as casas particulares foram sendo transformadas em pequenos hotéis ou em alojamentos para turistas. Do outro, há uma enormidade de residências abandonadas pela Prefeitura local. Por serem antigas, não podem passar por reformas de adequação para se ajustar aos parâmetros mínimos de segurança — reformá-las custaria uma fortuna aos cofres venezianos, dinheiro que as autoridades não possuem em meio à política de austeridade em voga desde a crise de 2008.
Com a saída dos mais jovens, Veneza está se tornando um território envelhecido: a idade média dos venezianos é de 50 anos, segundo dados da Prefeitura. Quem fica por lá, sofre com as mudanças do local. “Veneza não foi pensada para os mais velhos, é uma cidade sem serviços, que exclui quem atinge certa idade. Basta pensar que aqui tudo é feito a pé. Para ir de uma calla [rua] a outra é preciso atravessar uma ponte com escadas; e bem poucas têm rampas de acesso para cadeiras de roda ou carrinhos que ajudam os idosos a se locomover”, diz Morelli.
Para Salvatori Settis, escritor italiano e autor do livro Se Veneza morre, é a falta de reação dos venezianos que preocupa. “Falta uma comunidade crítica e ativa que não seja serva do turismo. Existe uma vontade de mudança, de ruptura com os paradigmas atuais, mas ainda é muito silenciosa”, afirma.
“Veneza está perdendo a identidade cultural, está em guerra com sua história. Se o presente esquecer o passado, aí sim tudo estará perdido”, reforça Settis. A supressão da essência veneziana também está ligada ao enfraquecimento do tecido produtivo local, que fez desaparecer, por exemplo, as tradicionais oficinas artesanais que produziam máscaras e vidros — produtos que agora são comercializados na cidade por meio de importações made in China.
Navios de cruzeiros
“Hoje ficou muito fácil economicamente fazer um cruzeiro por aqui. Tanto, que a cidade virou destino preferido para quem faz esse tipo de viagem”, assinala Tommaso Cacciari, que também milita na ONG Não-Grandes Navios, comitê que luta contra a passagem dos gigantescos cruzeiros pelos canais de Veneza. Com a popularização dos pacotes de cruzeiros, uma viagem marítima de oito dias, partindo de Veneza, sai por cerca de R$ 1.500.
O problema, segundo Cacciari, é que, para satisfazer os olhos de quem sempre sonhou com tal viagem, as companhias não hesitam em fazer passar as enormes embarcações pelo Canal Grande, causando graves danos a uma das regiões centrais do polo turístico.
Estudos feitos no local revelam que os grandes navios produzem enormes massas de água que geram intensas ondas e acabam empurrando a água para os canais mais internos. Esse movimento causa danos às fundações de edifícios e levanta quantidades de sedimentos que cavam ainda mais a pista por onde passam os grandes navios. E tudo isso ajuda o fenômeno da água alta em Veneza. No ano passado, os navios de cruzeiros tinham sido impedidos de passarem pelo Canal Grande, mas uma decisão da Justiça italiana derrubou a liminar.
Veneza sob intervenção
Desde junho do ano passado, os venezianos sentiram-se ainda mais abandonados pela classe política, após o prefeito Giorgio Orsoni renunciar ao mandato. O político era um dos envolvidos no escândalo de corrupção da megaobra MoSE (módulo experimental eletromecânico, na sigla, em italiano), sistema de diques móveis construídos no mar para frear as inundações regulares na cidade. Para substituir o ex-prefeito e colocar em ordem o caixa da cidade, o escolhido foi Vittorio Zappalorto, que assumiu o controle da cidade com ares de xerife mandado pela troika. A reportagem de Opera Mundi tentou, em diversas ocasiões, entrar em contato com o chefe interino do Executivo municipal, mas, segundo a assessoria de imprensa da Prefeitura, “o comissário não fala sobre aspectos de importância política porque poderiam ter um impacto sobre as escolhas do próximo prefeito”.
Se Zappalorto não fala com a imprensa, quem fala é o Comitê dos Trabalhadores Auto-organizados do Município de Veneza, organização criada pelos funcionários públicos locais em defesa da manutenção dos direitos. Analisando o balanço financeiro anual referente a 2014, a ONG denuncia que cortes no valor de € 47 milhões foram feitos no orçamento de Veneza — cultura e serviço social foram as áreas mais atingidas. O comissário só não conseguiu arroxar os salários dos empregados públicos porque os ativistas se mobilizaram e pressionaram contra os cortes.

Reportagem de Janaina Cesar
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/viagens/39379/turismo+predatorio+obriga+jovens+a+deixar+veneza+ao+dificultar+acesso+a+emprego+e+moradia.shtml
foto:http://www.abratour.com.br/lua-de-mel/veneza/

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