03/11/2014

Passagem para o abuso no transporte público da América Latina


Seis de cada dez mulheres são abusadas fisicamente no transporte público das principais capitais da América Latina, segundo estudo da Fundação Thomson Reuters apresentado nesta semana em Londres. A pesquisa, sobre percepção de segurança, foi realizada pela Internet com 6.550 mulheres e especialistas em gênero nas 15 maiores capitais do mundo e Nova York –a cidade mais populosa dos Estados Unidos–, e apontou que o transporte de Bogotá é o mais inseguro para as mulheres, seguido pelo da Cidade do México e pelo de Lima. O Brasil, onde o abuso no transporte público é frequente, não foi pesquisado.
No caso da capital colombiana, as 380 mulheres entrevistadas concordaram que sentem medo de viajar sozinhas no sistema de ônibus articulados que percorre a cidade, especialmente quando anoitece, e não acreditam que as autoridades atuem a fundo perante os abusos dos quais são vítimas. Na Cidade do México, 64% das mulheres entrevistadas disseram ter sido “tocadas ou sofreram algum tipo de abuso no transporte público”, segundo o estudo da Fundação. Em Bogotá, esse número é de 57%, e em Lima de 58%. Atrás dessas três cidades estão Nova Déli (Índia) e Jacarta (Indonésia). Nova York é a mais segura.
Bogotá, um calvário em silêncio
Karla Melo é uma das tantas mulheres que foram abusadas sexualmente neste ano no TransMilenio, o sistema de ônibus articulados que, na falta de um metrô, transporta mais de dois milhões de passageiros por dia na capital colombiana. Esta funcionária da Prefeitura teve que suportar em março, cedo pela manhã, quando os ônibus vão lotados, que um homem a apalpasse cada vez que o motorista freava. “Estava com o zíper da calça abaixado e minha reação foi gravá-lo com o celular e reclamar”.
Não são muitas as mulheres que confrontam os abusadores, entre outros motivos porque pensam que aqueles que estão viajando junto com elas não vão se solidarizar. No caso de Melo, a ajuda demorou, mas no final ela conseguiu que a Polícia agisse e denunciou o agressor. “Quase não fiz porque os policiais estão tão acostumados com essas situações que me desmotivaram dizendo que o processo é cansativo”. Em 2013 foram registrados 109 casos similares.
Desde fevereiro deste ano os abusos no TransMilenio começaram a se tornar cada vez mais visíveis. O caso de Diana Gamboa, que teve que aguentar um homem se masturbando ao seu lado e a tocando sem que ninguém fizesse nada quando pediu ajuda, gerou indignação. “Houve um silêncio total enquanto ele me tocava”, disse em uma entrevista.
Em março, as autoridades locais decidiram fazer testes com vagões exclusivos para mulheres que funcionam em horas que não são de pico, e que alguns classificaram como uma medida sexista. Em julho, a Polícia destinou também um esquadrão de policiais mulheres disfarçadas para combater o abuso, chamado de “caça-abusadores”, que causou polêmica porque elas foram vistas como iscas para atrair os agressores.
Lisa Gómez, da Secretaria da Mulher de Bogotá, diz que o fato de as mulheres tornarem cada vez mais visíveis os abusos que sofrem no transporte público se deve ao avanço da cidade em reconhecer essas situações como um delito. Segundo uma pesquisa do Observatório de Mulheres e Igualdade de Gênero de Bogotá realizada com 10.000 usuários do transporte público, 35% das entrevistadas disseram se sentir tranquilas desde a criação dos vagões para mulheres. Gómez também destaca que de agosto a outubro as policiais disfarçadas capturaram 52 agressores. Gustavo Petro, o prefeito de Bogotá, afirmou após tomar conhecimento da pesquisa da Reuters que as denúncias de abuso diminuíram graças a essas medidas.
Para a Secretaria da Mulher, uma das razões pelas quais as mulheres se sentem inseguras no transporte de Bogotá é porque prevalece uma cultura machista e de tolerância social com os abusos. Além disso, não há acesso efetivo à Justiça. Na Colômbia, este tipo de crime é conhecido como “injúria pela via de fato” e não como abuso sexual, o que permite aos agressores voltarem para as ruas horas após serem detidos. “Isso, ao final, gera nas mulheres uma impotência”, diz Gómez.

Cidade do México, vagões para mulheres e ônibus rosas

Segunda-feira, 7h30 da manhã. Os primeiros vagões da linha 3 do metrô da Cidade do México chegam à estação Centro Médico, uma das que tem o maior tráfego da rota que atravessa a cidade de norte a sul. Uma avalanche de mulheres corre em direção às portas, empurra, grita, continua berrando, e consegue criar um espaço no trem subterrâneo. Dentro, o ar é irrespirável, as usuária ficam esmagadas, se movimentam como uma massa uniforme, roçam seus corpos sem respeitar distâncias. Não importa. Neste vagão não tem mais homens.
Um estudo realizado pelo Instituto das Mulheres da Cidade do México aponta que cerca de 65% das usuárias do sistema de transporte público já foram vítima de alguma modalidade de violência de gênero. “Somente um quinto dos casos é registrado junto às autoridades, e o serviços de transporte informal em micro-ônibus [uma frota de pequenas unidades geralmente muito velhas] é considerado o espaço onde as mulheres são mais vulneráveis”, conclui uma investigação do Banco Mundial. O contexto, além disso, é hostil: somente no mês de setembro foram apresentadas 374 denúncias de delitos sexuais na capital.
Desde 2008 a cidade conta com o programa Viajemos Seguras, uma iniciativa de várias instituições projetada para prevenir, atender vítimas e punir a violência sexual cometida contra as mulheres que viajam no transporte público. Além de incluir locais para atenção e denúncia de casos de abuso sexual no transporte (são comuns os toques e as agressões verbais, mas também há casos de violações), o plano promoveu –ainda que já existisse– a segregação de homens e mulheres no metrô, no trem rápido e no metrobús (sistema de ônibus com pista própria). A Cidade do México, com uma área metropolitana de 20 milhões de habitantes, também lançou ônibus rosas em que apenas mulheres podem viajar.
As conclusões do estudo elaborado pelo Banco Mundial, que trabalha em um programa piloto para combater o problema do abuso sexual no transporte público em várias cidades da América Latina, revela quatro denominadores comuns relatados pelos usuários e responsáveis pelos serviços: denunciar uma agressão às autoridades é enfastiante e quase nunca dá resultados; levantar a voz é complicado porque não existe um sentimento de comunidade entre os passageiros; quanto melhor é a infraestrutura, mais seguros os usuários se sentem; e separar por gêneros não é a solução, apenas um remendo. Ao sair do metrô, nas ruas, o abuso sexual volta, os olharem intimidam. Vestir saia ou usar decote as vezes parece crime na capital mexicana, uma provocação. O problema não começa nem termina no transporte.

Lima, um sofrimento diário

Em maio, os moradores de Lima se indignaram com a agressão sofrida pela atriz e cantora peruana Magaly Solier no Metropolitano, o serviço de ônibus de transporte rápido que percorre 16 bairros de Lima de norte a sul. Ao sair de uma estação, a artista encarou e esbofeteou Daniel Durand Tenazoa por ter se masturbado atrás dela, depois o denunciou à Polícia por abuso sexual. Durand era reincidente.
O Peru teve, entre 2000 e 2009, a maior taxa de denúncias por violência sexual na América Latina, e o transporte de Lima é um dos lugares onde mais ocorre agressões contra as mulheres.
Solier contou o ocorrido quando chegou a uma rádio onde era esperada para uma entrevista: “Não havia um policial ali dentro. Se não o colocam em seu lugar, vai continuar fazendo isso a vida toda: este tipo de homem tem que desaparecer do Peru, nós mulheres não podemos viver assustadas”.
Entre janeiro e maio, mais de 20 mulheres –de 17 a 30 anos– foram vítimas de abuso sexual em algum ônibus do Metropolitano, de acordo com dados da Subgerência de Proteção frente à violência baseada em gênero da Prefeitura de Lima, repassados ao jornal La República. O mesmo órgão informa que o número subiu em outubro para 46. “Não está correto –que Lima tenha o terceiro transporte mais inseguro para as mulheres–. Temos um protocolo para denunciar casos de abuso e atos de violência”, disse Tamy Quintanilla, a subgerente municipal.
Apesar de a Prefeitura de Lima ter iniciado no fim de julho uma reforma no transporte, limitando a circulação de vans para que os ônibus transitem exclusivamente por corredores, os usuários ainda enfrentam uma má qualidade do serviço: apenas um corredor está em funcionamento.
O habitual na capital peruana é viajar apertado, e nas horas de pico é comum sentir a respiração de outro passageiros ou seu braço encostado em alguma parte do seu corpo. Uma distância de 20 quilômetros –de Pueblo Libre a Miraflores, por exemplo– pode levar mais de uma hora de ônibus, já que para essa, como para tantas outras rotas, ainda não há corredor, nem Metropolitano, nem a linha 1 do metrô. Segundo a Prefeitura, apenas 5% da demanda está coberta pelo Metropolitano e pela linha 1 do metrô, ou seja, 780.000 viagens por dia. Lima tem mais de 9 milhões de habitantes, e as mulheres sofrem com o problema do transporte duplamente.

Reportagem de E. Reyes, P. Chouza e J. Fowks
fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/01/internacional/1414873447_925511.html
foto:http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/06/guest-post-pelas-mulheres-esquecidas-do.html

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