Artigo de Névidon Guedes,desembargador
federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Em recentes acontecimentos que tiveram lugar no território
nacional, só possíveis no incrível realismo fantástico tupiniquim, tomamos
conhecimento de que um número considerável de brasileiros não viram mal algum
em trucidar, em linchamento público, uma pobre dona de casa, vizinha dos
justiceiros, mãe de duas belas crianças, suportados na suspeita improvável e
logo após desmentida de que a vítima, identificada pelos carrascos através de retrato
falado de alguns anos, fosse praticante de uma mal explicada seita onde se
sequestravam crianças para rituais de magia negra. É bom que se diga que a
morta, sacrificada em holocausto à ignorância que pontifica em boa parte de
nossa sociedade cordial, portava no momento do justiçamento público uma Bíblia,
pois voltava, segundo o que divulgaram, de um culto evangélico. Quase no mesmo
dia, torcedores de um grande time nordestino, confirmando a barbárie em que se
transformaram os estádios brasileiros, revolucionaram a conhecida crueldade que
informa a nossas “bem comportadas” torcidas organizadas, promovendo o arremesso
de um vaso sanitário sobre a cabeça de torcedores rivais, matando um pobre e
indefeso transeunte. Dias antes, duas mulheres teriam confessado, segundo a
imprensa, a morte de uma criança de 11 anos.
Como todos sabem, não são eventos isolados. São apenas os
exemplos mais próximos. Portanto, não podemos nos enganar: numa sociedade como
a brasileira, sem dúvida das mais diversificadas do mundo (tanto do ponto de
vista racial, como econômico, cultural, educacional e político), vai se
tornando cada vez mais improvável que alguma instituição (igreja, estado,
educação ou mesmo a família) tenha a capacidade de integrar minimamente os seus
cidadãos. E ninguém quer compartilhar a responsabilidade pelo outro e pela
esfera pública. A impressão que se forma é a de que somos todos campeões de
direitos, mas temos incrível dificuldade de administrar os compromissos que os
deveres correspondentes a esses direitos nos impõem. Mais do que isso, a
sociedade não quer se vincular a valores mínimos que possam coordenar
minimamente seu comportamento.
O mal não é só nosso, não obstante ganhe aqui notas de
paroxismo. A ideia de que exista um fundamento último, uma ética essencial a
atravessar a moral, a política e o Direito, com o qual poderíamos, em cada caso
concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela melhor proposta política,
ou sobre a melhor conduta no plano moral, ou sobre a melhor decisão no plano
jurídico, funda-se na mesma perspectiva de uma mundo governado por uma razão
única, em que, existindo boa vontade, poderíamos divisar sempre, e de forma
indiscutível, o que é certo e o que é errado. A partir do ponto de vista que
nos permitiria a representação da única resposta correta,
torna-se possível moralizar a política e até mesmo o Direito. Assim se
mostraria possível perscrutar no voto, ou na opinião, ou na decisão divergente,
não apenas o desacordo do olhar, mas a imoralidade de não pensar corretamente,
isto é, “de não pensar como nós, os intelectualmente capacitados e moralmente
incorruptíveis, pensamos”. Contudo, e esse é o lado positivo, a realidade atual
não é composta de uma verdade única. Esse é um mundo, com certeza, que não
existe mais.
I. O lado bom da tolerância e da diversidade
Como bem sintetizado por Kundera, a verdade está mais para uma
narrativa ambígua e insegura dos personagens de um romance do que para a
certeza e a univocidade de uma teoria totalizante que se pretenda impor de fora
da vida e da história pela autoridade indiscutível de algum filósofo
predestinado (cito)[1]:
“Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez
de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem
(verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto
como única certeza asabedoria
da incerteza, isso não exige menos força. (...) O homem deseja um
mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a
vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade
estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o
romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade
no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão;
ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de
uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então
por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado. Nesse ‘ou — ou
então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das
coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a
essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil
de aceitar e de compreender.”
O mundo mudou. As ações morais já não podem contar com um ponto
de referência certo e igualmente vinculativo em tudo e para todos. Com a
incrível diferenciação funcional das complexas sociedades contemporâneas, os
seus subsistemas (direito, política, imprensa, economia etc) passam a
autogovernar-se por meio de códigos próprios e autônomos, que prescindem de
critérios morais externos de uniformização. No quadro de uma moral fragmentada
e cada vez mais sem capacidade de comunicar-se com os outros subsistemas
(Niklas Luhmann)[2], a
mesma conduta pode encontrar diferentes coeficientes de legitimação. O servidor
público que se transformou em fonte de um jornalista para falar e expor toda a
verdade de um fato tem uma conduta positiva no âmbito do subsistema da imprensa
e da informação, mas, ao romper o sigilo profissional (artigo 154, do CP), ou
quebrar o segredo de justiça de uma interceptação telefônica (artigo 10, da Lei
9.296/96), pratica uma conduta negativa no subsistema do direito e pode,
inclusive, ser punido por isso.
II. As dificuldades jurídicas e morais da
fragmentação dos valores
Num mundo mais tolerante e diversificado, já não temos uma moral
que nos assegure a unidade de pensar e de agir, o que é bom, mas nos impõe
seriíssimos desafios. Como será possível a coordenação (inclusive jurídica) de
condutas com base em parâmetros comuns numa sociedade de valores tão
fragmentados? E, mesmo num quadro de fragmentação moral, muito embora exigíveis
limites mínimos, já necessários à própria sobrevivência da sociedade, como
dizer e impor o que é certo e errado a grupos de pessoas cuja miséria
(indigência) é menos econômica do que cultural e ética?
Antes, as condutas morais podiam, por exemplo, fundamentar-se na
figura de Deus e impor-se pela revelação dos comandos que partiam do amor
divino, ou do medo provocado pela ira divina[3].
Hoje, contudo, a moral de fundo cristã perdeu, em todo o Ocidente, para o bem
ou para o mal, a sua força socialmente vinculativa. A impressão que se tem é
que a própria comunicação não conseguirá superar sua contingência imanente e as
pessoas estarão verdadeiramente sozinhas. De fato, como será possível duas
pessoas se comunicarem em um universo de valores, regras e comportamentos, além
de discursos e semânticas (linguagens) tão diversificados? A questão, pois, é
saber como a sociedade contemporânea poderá lidar com essa drástica fragmentação
moral e, já agora, até mesmo de sua linguagem[4].
Parece mesmo duvidoso, como bem deduzido por Detlef Horster, que
diante de uma tal fragmentação de valores, exista “um ponto de referência comum
para todas as condutas e regras morais e, mais do que isso, para todas as
regras e decisões jurídicas, que possa valer, como base e condição contextual,
para a interação dos indivíduos que vivem em sociedade”. Em uma sociedade em
que se idolatra o individualismo, o normal é que não exista mesmo um ponto
comum de consenso como nas comunidades mais antigas, baseadas na revelação de
origem cristã[5].
Como se viu, isso é bom e ao mesmo tempo ruim.
Não se pode mais partir, numa sociedade radicalmente
diferenciada em suas funções de “uma identidade abrangente (umfassender Identität ) do indivíduo com a sociedade”. Por
isso, ainda segundo Detlef Horster, “A não-identidade do indivíduo e sociedade
reflete-se na diversificação do direito e moral, de uma forma que era
impensável à época de Sócrates, já que para ele (consoante o que podemos intuir
do seu díalogo com Criton 53) a virtude individual e o direito da comunidade
eram um e a mesma coisa, e uma violação ao direito seria também ilegítimo e
indigno (unanständig) do ponto de vista moral” [6].
Não parece existir hoje qualquer instituição, como a Igreja na
Idade Média, que consiga ligar as pessoas de uma mesma comunidade, ao
longo de suas vidas, por intermédio de valores ou de objetivos comuns. Mais do
que nunca, sabemos da existência de outros territórios, de outras visões de
mundo, de outros valores e até mesmo de linguagens e de comportamentos ao mesmo
tempo diferentes, mas também legitimados. As pessoas estão livres para
associarem-se a grupos, valores e comportamentos, permanecendo vinculadas a
eles enquanto estiverem satisfeitas.
Resumindo, ao fim a sociedade torna-se vítima de suas próprias
virtudes: quanto mais tolerante, mais fragmentada, desunida e, infelizmente, no
nosso caso, mais violenta.
Governos e instituições, aí incluído o Poder Judiciário,
desorientam a comunidade com mensagens contraditórias, subtraindo da própria
ordem jurídica a capacidade — sua principal característica — de estabilizar
expectativas e comportamentos. Não é de surpreender, pois, que sejamos
confrontados cotidianamente com comportamentos e valores que julgávamos
inexistentes ou extintos da história de nossa cultura (linchamentos e todos os
tipos perversos de violência contra a pessoa). Nada indica que esse estado de
coisas encontrará um adversário à altura, sobretudo, se continuarmos insistindo
com a ideia de que o mal está exclusivamente no Estado, e não na sociedade como
um todo; e com o dogma de que o problema é a qualidade dos agentes públicos
brasileiros, e não de formação e de comportamento de todos os indivíduos que
compõem a sociedade, estejam ou não no Estado. Enquanto esses (auto)enganos
servirem de alívio à consciência e à hipocrisia nacional, todos nós teremos uma
ponta de responsabilidade por acontecimentos tão nefastos como aqueles que
introduziram o presente artigo.
[1] Milan Kundera. A
arte do romance. Tradução Teresa Bulhões. Carvalho da Fonseca. —
São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 14/15.
[2] Detlef Horster, Recht
und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift
für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[3] Detlef Horster, Recht
und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen.
Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[4] Detlef Horster, Recht
und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen.
Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[5] Detlef Horster, Recht
und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen.
Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 1 (367 – 389).
[6] Detlef Horster, Recht
und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift
für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 2 (367 – 389).
fonte:http://www.conjur.com.br/2014-mai-12/constituicao-poder-fragmentacao-valores-linchamento-dona-casa
foto:http://blogdainseguranca.blogspot.com.br/2014/03/do-medo-ao-linchamento-e-inseguranca.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!