Há dois caminhos para combater
a corrupção. Um deles é o de punir os malfeitos — e todos sabem como é difícil
obter condenações no Brasil, e mais ainda reaver os valores desviados. O outro
caminho é o da prevenção, o de se antecipar aos corruptos. É a isso que se
dedica o Observatório Social do Brasil (OSB), uma rede de ONGs que se alastrou
por 14 estados. O ponto de partida é a constatação de que boa parte das fraudes
pode ser adivinhada nas entrelinhas das licitações. Basta ter acesso à
papelada, o olho treinado e (muita) paciência para desenredar suas tramas. O
mesmo método evita que erros que não envolvem má fé, mas saem caro para o
contribuinte, sejam cometidos. Em 2012, a OSB conseguiu impedir que 305
milhões de reais escoassem dos cofres municipais.
A ideia
nasceu em Maringá, no Paraná, na esteira de um escândalo de corrupção que estourou na gestão do prefeito Jairo de
Moraes Gianoto, tendo por pivô seu secretário de Fazenda, Luiz Antonio
Paolicchi. Gianoto se afastou do cargo em 2000, perdeu a reeleição e se retirou
da política — e da cidade. Em 2006, foi condenado a 14 anos de prisão por
desvio de verbas públicas, sonegação e formação de quadrilha. Em 2010, em nova
sentença condenatória, a Justiça cobrou o ressarcimento de estratosféricos 500
milhões de reais em ação por improbidade administrativa. Gianoto recorre em
liberdade. Paolicchi foi assassinado em 2011.
Enquanto os processos se
arrastavam na Justiça, um grupo de moradores indignados resolveu, em vez de
vandalizar as lojas da cidade ou incendiar caminhões, organizar um sistema de
fiscalização do poder público que prevenisse futuras tramoias. O marco zero é
2005. Naquele ano, a prefeitura lançou um edital para a compra de 2.918.000
comprimidos para dor de cabeça. Na licitação, foi fixado o valor de 0,009
centavos por drágea. Na hora do empenho, "esqueceram" um zero, e o preço
saiu por 0,09. Esse singelo "descuido" teria então o efeito de
multiplicar por dez o gasto total (de 26.262 mil reais para 262.620 mil reais).
Revelada a trapalhada, o processo foi suspenso.
A experiência em Maringá deu
tão certo que começou a ser reproduzida por outras cidades. Com o tempo, ganhou
um amplo leque de apoios institucionais: Ministério Público, OAB, Federações da
Indústria e do Comércio, Receita Federal, Tribunais de Contas, universidades e,
principalmente, as Associações Comerciais, que abrigam 70% dos Observatórios
Sociais (OS). Atualmente, 77 municípios contam com seus próprios observatórios.
Na próxima segunda-feira, Curitiba sedia o quarto encontro nacional, para que
as boas práticas de cada unidade sejam compartilhadas pelas demais.
"Depois
que roubam..." – O
empresário Ater Cristofoli, de 49 anos, dirigiu a primeira réplica do
Observatório, em Campo Mourão, no interior do Paraná, onde nasceu e hoje mantém
fábricas, uma fundação, escola técnica e incubadora. "A gente se tocou
que, enquanto fazia rifa, vendia jantar e colhia doações para ajudar a Santa
Casa, o Lar dos Velhinhos ou a APAE, milhares de reais eram jogados fora em
compras mal feitas ou desvios", diz. "E o grande negócio está na
prevenção. Depois que roubam... aí esquece." Com a entrada em cena do
Observatório Social, os custos com material escolar caíram para um terço, e o
gasto com medicamentos, pela metade. Cristofoli hoje está à frente da
organização nacional dos Observatórios Sociais, e seu objetivo é acelerar a
irradiação da franquia.
Basicamente, os Observatórios
Sociais funcionam assim: um punhado de técnicos, voluntários e estagiários
debruça-se sobre os editais das principais modalidades de licitação
(concorrência, convite, tomada de preços e pregões), com especial atenção aos
casos em que o governo a descarta (inexigibilidade ou dispensa de licitação);
encontrada uma suspeita, a secretaria ou a prefeitura é formalmente notificada;
não havendo providências, o caso é reportado aos vereadores (que têm, a
propósito, o dever constitucional de fiscalizar a administração municipal); se
nada funcionar, recorre-se então ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas.
"Mas em geral você liquida o caso logo na primeira etapa", conta
Cristofoli. "É muita exposição. Quando a gente pega uma irregularidade, é
que está muito evidente."
O roteiro básico dos
Observatórios Sociais se completa com a divulgação dos editais, para aumentar a
concorrência, a presença nos pregões, para apontar os lances suspeitos, e o acompanhamento
das entregas, para garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos.
"O efeito psicológico é muito grande", diz José Roberto de Jesus, do
OS de Rolim de Moura (RO). A entidade entrou em operação em 2009, seguindo um
roteiro comum: antes de abrir as portas, azeitou o trânsito com o Ministério
Público e arrancou, na campanha municipal de 2008, o compromisso público dos
candidatos com a iniciativa. Já no primeiro ano, a cidade conseguiu reduzir o
custo de várias compras: cálices de plástico baixaram de 12,90 reais em 2008
para 1,05 a unidade; anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; papel para
impressora, de 15 reais para 1,92 reais.
Metrópoles
no alvo – A economia para os cofres públicos vai bem além das miudezas. A
partir da análise de 378 licitações, Itajaí (Santa Catarina) conseguiu salvar
do desperdício ou da corrupção 29 milhões de reais em 2012. Em São José (também
em SC), a revogação de um único edital — para exploração do serviço de
estacionamento rotativo — evitou desembolsos que somariam 15 milhões de reais
ao longo de dez anos. "O grau de confiança dos observatórios é muito
grande. Eles têm conhecimento técnico para verificar os documentos", diz o
promotor Davi do Espírito Santo, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Moralidade
Administrativa. Em 2013, o MP de Santa Catarina formalizou uma parceria com OSs
do estado. São duas frentes. Por uma delas, os OS vão ajudar a verificar se as
administrações municipais estão cumprindo a lei de acesso de informação
efetivamente. Na outra frente, as ONGs farão chegar aos promotores as denúncias
de editais viciados.
Segundo Espírito Santo, uma das
razões da credibilidade dos observatórios é seu caráter técnico. "Não são
denúncias movidas por partidarismo ou vingança", diz. Para manter este
perfil, os observatórios não aceitam militantes entre seus 1.500 voluntários
nem funcionários dos órgãos que eventualmente serão fiscalizados. "O foco
é a gestão, não o prefeito", diz Roberto de Jesus.
Esta neutralidade política tem
se mostrado um empecilho para a implantação dos Observatórios Sociais nas
grandes metrópoles, onde a agenda dos partidos, governo e
oposição exerce maior influência sobre as entidades que costumam
prestar auxílio aos escritórios. "Nas cidades de pequeno ou médio
porte, a experiência tem funcionado muito bem. Mas ainda não sabemos lidar com
cidade grande", admite Cristofoli.
Em São Paulo, a iniciativa está
sendo gestada com apoio do sindicato dos auditores-fiscais da Receita Federal.
Para além da questão política, Luiz Fuchs, vice-presidente do Sindifisco em São
Paulo, aponta o tamanho da cidade como o principal desafio. Por exemplo: o
orçamento da cidade aprovado para 2013 foi de 42,1 bilhões, quase cinquenta
vezes o de Maringá, de 870 milhões. Fuchs explica que ainda está em estudo a
melhor estratégia para enfrentar as contas municipais, se por região ou
subprefeitura, por exemplo.
Má
gestão – O
monitoramento sistemático das contas eleva o debate sobre a qualidade do gasto
público. Em junho de 2013, por exemplo, a Câmara de Ponta Grossa licitou a
compra de sete veículos. Exigências: freio a disco nas quatro rodas, faróis de
neblina, vidros elétricos nas quatro portas, aparelho de MP3 e câmbio
automático. Total orçado: 311.184,60 reais. Os números vieram a público, e
pipocaram as críticas. Os vereadores então baixaram as exigências, e o custo
final da compra saiu por 198.800 reais, uma economia de 112.384,60 reais.
Às vezes nem se trata de
corrupção. É má gestão, mesmo. Depois dos casos dos comprimidos, os
maringaenses descobriram, por exemplo, que a cidade mantinha estocados cadernos
de desenho em quantidade suficiente para os próximos 24 anos, carbono preto
para 62 anos e pincéis marcadores para 133 anos. Em resposta à revelação desses
e de outros absurdos, a prefeitura promoveu a organização de um almoxarifado
central e a informatização do controle de estoques. "Hoje temos uma
execução orçamentária mais racional", diz a presidente do Observatório
Social de Maringá, Fábia dos Santos Sacco. "Não está perfeito. Mas
avançamos bastante."
Itajaí (SC)
O observatório de Itajaí
é um dos mais ativos do país. Seus números ilustram a capacidade dos OSs para
proteger os cofres públicos. De 2009 a 2012, a entidade monitorou 1160
processos licitatórios, evitando desperdícios que somam 151.689.141,86 reais. O
OS busca fiscalizar todo tipo de licitação. No ano passado, foram acompanhados
203 pregões presenciais (economia de 13.559.432,79 reais), 38 editais da
modalidade convite (economia de 376.524,31 reais), 29 tomadas de preços
(economia de 2.483.087,39 reais), 6 concorrências (economia de 12.249.223,62
reais) e 7 pregões eletrônicos (economia de 246.375,20 reais). Total no ano: 29
milhões de reais.
Maringá (PR)
O observatório de
Maringá é o primeiro do país e serviu de inspiração para todos os demais. Seu
primeiro grande caso, em 2005, foi um edital para compra de 2.918.000
comprimidos antiinflamatórios. Na licitação, fixou-se o valor de 0,009 centavos
a drágea. No empenho, um zero "sumiu", e ficou 0,09. Com isso, o
gasto total pularia de 26.262 mil reais para 262.620 mil reais. Revelada a
trapalhada, o processo foi suspenso.
Londrina (PR)
Em Londrina, o
Observatório conseguiu em 2010 a impugnação de um edital de 53,4 milhões de
reais para terceirização da gestão do sistema de iluminação pública. Entre
diversas irregularidades, a equipe apontou: inexistência de projeto básico e
executivo; integração irregular de diversos serviços acessórios e até
incompatíveis; ilegalidade do prazo para execução; inexistência de cotação para
formação do preço; etc. Segundo estimativas da entidade, o custo do serviço
saltaria de aproximadamente 100 mil reais por ao mês para 450 mil reais por
mês. Vícios similares foram encontrados em editais lançados para o mesmo
serviço por outras cidades do estado.
Rolim de Moura (RO)
Logo no primeiro ano de
atuação do OS de Rolim de Moura, em 2009, houve uma substancial redução de
custos das compras feitas em pregões. Cálices de plástico adquiridos em 2008
por 12,90 reais saíram por 1,05 real em 2009; Papel para impressora baixou de
15 reais para 1,92 real. Soro controle patológico foi de 80 reais para 28
reais; Anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; Corante, de 61,50 reais
para 26,40 reais. Para garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos,
a equipe do OS também acompanha a entrega das compras.
Ponta Grossa (PR)
Em junho de 2013, a
Câmara de Ponta Grossa lançou um edital para a compra de sete carros, exigindo
um modelo sedan motor 2.0 e seis hatch 1.6, todos com freio a disco nas quatro
rodas, faróis de neblina, vidros elétricos, aparelho MP3 e câmbio automático.
Custo total: 311.184,60. A licitação veio a público, e os pontagrossenses não
gostaram: acharam excessivo. Um novo edital foi lançado, baixando as
exigências: sete automóveis hatch motor 1.0, sem a necessidade de câmbio
automático, farol de neblina ou MP3. Em julho, foi feito o pregão. Custo total:
R$ 198.800,00, economia de R$ 112.384,60. Além disso, tramita na casa outro processo
de licitação para a compra de rastreadores, para que o uso dos veículos também
seja fiscalizado.
São José (SC)
Em 2012, o observatório
apontou 11 indícios de irregularidades em edital para conceder à iniciativa
privada a exploração de vagas de estacionamento rotativo na cidade, entre eles
a suspeita de direcionamento da licitação. A concessão, por dez anos, previa a
arrecadação de 15 milhões de reais. O caso foi levado primeiro à prefeitura e
depois à Câmara Municipal, sem que fossem prestadas as devidas explicações.
Diante disso, o OS recorreu ao Tribunal de Contas de Santa Catarina, que mandou
suspender o processo para uma análise detalhada do caso. Confirmadas as
irregularidades, o município revogou a concorrência.
Reportagem de Daniel
Jelin
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