26/07/2013

Primatas têm algo próximo ao senso de Justiça humano

De onde vem a moralidade? O sentido do certo e errado? Segundo as religiões, viria de Deus, ou de uma entidade suprema. Para muitos cientistas, seria uma característica exclusivamente humana, ausente em todos os animais. Mas um estudo recente do comportamento dos grandes símios, especialmente os chimpanzés e os bonobos da África, que são nossos primos mais próximos no reino animal, traz uma nova visão. No livro recente O Bonobo e o Ateu, o primatólogo holandês Frans de Waal, radicado nos Estados Unidos, defende a tese de que os bonobos, os chimpanzés, e, em menor escala, outros mamíferos exibem comportamentos em geral atribuídos apenas a seres humanos, como o altruísmo, a cooperação e o sentido do que é certo e errado. Com base nesse estudo, ele afirma que a moralidade é não só anterior ao surgimento das religiões, mas anterior à própria humanidade, o resultado da evolução natural das espécies.
Jorge Pontual — Em seu livro O Bonobo e o Ateu, você mostra que a moral, o comportamento ético, não é uma invenção humana. Não é algo que recebemos das religiões ou de Deus. É uma coisa que veio com a evolução, porque, se observarmos nossos “primos”, vemos esse tipo de comportamento. Fale sobre como você descobriu isso. Eu imagino que não deveria ser uma novidade tão grande, deveria ser algo que a Ciência já soubesse há muito tempo. Mas não é. É novo, certo?
Frans de Waal — Em primeiro lugar, muito gente acredita que a moral vem de Deus e da religião, e, portanto, é algo novo, já que as religiões são recentes. Acho isso muito difícil de imaginar, porque nossa espécie é muito mais antiga. Não consigo imaginar que, 100 mil anos atrás, as pessoas não tivessem um sistema moral, não punissem quem se comportasse mal ou não tivesse algum senso de Justiça. Então eu afirmo que a moral é muito mais antiga do que a nossa espécie. E é muito mais antiga do que as religiões atuais. E, de fato, seria de se esperar que isso fosse óbvio. E Darwin já tinha dito coisas assim, mas, nos últimos 50 anos, nos esquecemos, disso.

Jorge Pontual — Então, ao estudar os grandes primatas, você encontrou esse tipo de comportamento. Mas ao considerarmos, por exemplo, chimpanzés: lendo seus livros, vemos que eles são agressivos e que há uma hierarquia. Eles são patriarcas, de certa forma. O macho prevalece. Já quando consideramos os bonobos. Eles são o oposto, certo? Mas os dois têm o mesmo tipo de moralidade no sentido em que falamos, de botar os interesses do grupo acima dos interesses individuais, sem egoísmo. Isso é comum entre chimpanzés, bonobos, e até gorilas e outros grandes primatas?
Frans de Waal — A capacidade de empatia é, basicamente, ser sensível às emoções, à situação e às necessidades. Essa capacidade é encontrada em todos os mamíferos. Achamos que isso veio do cuidado materno, porque, seja um rato ou um elefante, todos precisam cuidar da sua prole, sendo sensíveis aos seus sinais de estresse, de frio, de fome. Todos os mamíferos têm uma capacidade básica de empatia. Mas a empatia tem diferentes níveis. Por exemplo, eu tenho a capacidade de me colocar no seu lugar, e entender sua situação do seu ponto de vista, o que é muito cognitivo. Não sei se um rato ou um cachorro podem fazer isso. Mas os primatas, os elefantes e alguns mamíferos com cérebros grandes podem.

Jorge Pontual — Então isso diferencia mamíferos de insetos, por exemplo. Há muitos sociobiólogos que comparam nossa humanidade, a forma como nos relacionamos, com a forma como insetos organizam suas sociedades. E não é uma boa comparação porque eles não têm esse tipo de empatia, certo?
Frans de Waal — Certo. O que os insetos fazem é altruísta, no sentido de que ajudam outros sacrificando a si mesmos, mas o mecanismo que os leva a isso é, provavelmente, totalmente diferente do que ocorre com humanos e outros mamíferos. Mamíferos se interessam pelas sensações e pelos sentimentos alheios, e reagem a eles. O motivo para a maioria das pessoas ter mamíferos em casa como gatos e cachorros, em vez de iguanas e tartarugas, é justamente porque gostamos disso nos mamíferos. De que eles reajam às nossas emoções, enquanto reagimos às deles. É disso que gostamos nos mamíferos.

Jorge Pontual — Eu lembro de ter lido em um dos seus livros que, quando você era jovem, na Holanda, e começou a trabalhar nisso, você tinha cabelo comprido e umas ideias, digamos, “paz e amor”. Você ficou surpreso ao ver que a sociedade que você estudava, dos chimpanzés, não era nem um pouco assim, certo?
Frans de Waal — É muito interessante, porque, naquela época, éramos hippies, basicamente. Fumávamos maconha e tudo o mais. E eu fui encarregado de observar os chimpanzés. No primeiro ano, eles estavam muito quietos e não faziam muita coisa. Mas, de repente, uma disputa de poder começou entre os machos. E eles ficaram muito sérios. Pareciam fazer negócios, fazendo coalizões e tentando derrubar uns aos outros. E eu estava vendo aquilo...

Jorge Pontual — Parece a política que conhecemos.
Frans de Waal — É, parece política. Não demorei a entender que eles levavam aquilo muito a sério. Ao mesmo tempo, o que achei interessante foi que, entre meus amigos hippies, eu via o mesmo tipo de disputa de poder acontecendo. Embora estivéssemos falando sobre igualdade, sobre sermos semelhantes, felizes, e coisas assim, algumas pessoas queriam ter mais poder do que outras. E eu estava fazendo uma comparação e vendo que todos os humanos têm essa tendência, que os primatas também têm. É interessante. Havia um psicólogo na Holanda, na época, que entrevistava gerentes de negócios e perguntava: “Você está interessado em ter poder?” E nenhum estava. Todos diziam: “Tenho um dom para oferecer à minha organização, tenho habilidades de liderança, posso ajudar...” Eles apresentavam um comportamento altruísta, de querer agir pelos outros. E o psicólogo concluiu que essas pessoas estavam negando o poder como motivação. E é isso que vejo na política o tempo. Os políticos aparecem na TV e o que dizem? Não dizem: “Quero ser o homem mais poderoso do país.” Eles dizem: “Eu quero melhorar o sistema de educação.” Todos demonstram outros interesses em vez do poder, mas acho que o poder ainda é o principal interesse.

Jorge Pontual — Como é com os bonobos? Eles parecem chimpanzés, mas são bem menores. São de outra espécie. Mas por que a sociedade deles é tão diferente da nossa e da sociedade dos chimpanzés?
Frans de Waal — Entre os bonobos, as fêmeas dominam. Elas dominam os machos coletivamente e são menores do que eles. Se, em um zoológico, há uma fêmea bonobo e um macho bonobo, nesse caso, o macho domina. Assim que houver mais uma fêmea, elas passarão a dominar. Elas são muito boas em formar alianças e em dominar os machos coletivamente. Isso talvez faça a sociedade ser um pouco mais pacífica, porque elas têm menos motivos para brigar da forma violenta que os machos brigam.

Jorge Pontual — Como foi o experimento que você fez com macacos?
Frans de Waal — Eu tinha uma colônia inteira deles. Percebemos que, se os recompensamos de formas diferentes, isso os incomoda. Normalmente, isso não aconteceria. Se um animal aprendeu uma tarefa por uma certa recompensa, ele deve ficar satisfeito em praticá-la a qualquer momento. Mas o que notamos é que, entre eles, se um ganhar um tipo de recompensa, e o outro ganhar outro tipo, eles ficam incomodados. Então montamos um experimento em que eles trabalham por fatias de pepino, e os dois ganham pepino. Eles o fazem 25 vezes seguidas. Se um deles ganha uvas... Uvas são muito melhores porque têm mais açúcar. Então são muito melhores do que pepino. Aí, o que ganha pepino não fica mais satisfeito.

Jorge Pontual — Que avaliação pode ser feita?
Frans de Waal — Esses macacos são sensíveis à divisão de recompensas. E, se você pensar na origem da moral, filósofos escreveram livros inteiros sobre o senso de Justiça, de equidade. Nos livros, eles explicam por que temos o senso de Justiça. Em geral, costumam explicar dizendo que é bom para a sociedade e coisas assim. Eles têm conceitos muito complexos. Quando publicamos esse estudo, dez anos atrás, sobre esses macacos, os filósofos ficaram muito incomodados, e disseram: “Como macacos podem ter senso de Justiça, se ela é um conceito cognitivo tão complexo e inteligente?” Eles não imaginavam que a moral pudesse partir do fundo, de certas emoções, como as que os macacos demonstram. E acredito que seja assim que o nosso senso de Justiça funciona. Eles ficaram muito chateados. Agora notamos que os chimpanzés são ainda mais complexos. Descobrimos que o chimpanzé ganha a uva, às vezes, se nega a recebê-la até que o outro também ganhe uma. Isso se aproxima muito do senso de Justiça humano. Chegamos ao ponto de não sabermos mais se há diferenças entre o senso de Justiça humano e o dos chimpanzés.

Jorge Pontual — A ideia de que só a religião, a crença em Deus ou deuses, poderia gerar a moralidade e o comportamento ético. Isso tudo derruba essa ideia, certo?
Frans de Waal — É, embora eu ainda veja espaço para a religião. Eu acho que a religião provavelmente tem um papel na moral. Não sabemos exatamente como nem por quê. Em vez de dizer que a religião é a fonte da moral, eu diria que ela veio depois. A moral veio primeiro. A religião talvez tenha sido necessária quando as sociedades ficaram grandes demais. Em uma sociedade de macacos ou em sociedades humanas pequenas, com umas 100 pessoas, todos ficam de olho uns nos outros. Nelas, se você não se comporta, eu fico sabendo. Se eu não me comporto, você fica sabendo. Temos reputações e vigiamos uns aos outros. Se você vive com mil pessoas, ou milhares, ou milhões, isso não funciona, tudo se desmorona. Não se pode manter um sistema moral funcionando com tanta gente. Talvez tenha sido aí que a religião tenha surgido para codificar certas regras morais, para fazer com que elas sejam cumpridas, para doutrinar as pessoas de acordo com essas regras e para ter um Deus que nos vigia o tempo todo, basicamente. Talvez seja daí que vem a religião.

Jorge Pontual — Você acha que os chamados “novos ateus”, que lutam contra a religião, estão sendo contraproducentes? O que acha disso? Esse secularismo militante é uma coisa nova, não é?
Frans de Waal — É militante nos Estados Unidos, não sei como é no Brasil, talvez não seja. Mas, aqui, é muito militante. E é muito oposto à religião. Eu não sei se eles estão agindo da forma certa. Porque, por exemplo, se você quiser defender a Ciência contra forças religiosas, que é o que eles querem fazer, chamando todos os outros de “irracionais” — já que os ateus chamam a si mesmos de “racionais” e, portanto, todos ou outros, que tem fé, são “irracionais” —, eles estão, basicamente, dizendo que quem tem fé é idiota, não é racional. E como começar um diálogo assim? No meu livro, eu peço a eles para se acalmarem um pouco. Para pararem de berrar. Porque, caso contrário, não temos como debater a origem da moral. Eu mesmo sou da Holanda, onde 60% do povo diz não ter crenças. Então, no meu país, ninguém fica surpreso se você é ateu. É muito comum. Lá, nós não achamos o ateísmo muito interessante, porque o ateísmo é, basicamente, uma negação. Podemos dizer “Deus não existe”, mas aí vem a questão: “E agora?” O que vai tomar o lugar de Deus e da religião? Como podemos ter uma sociedade moral? Por que eu levaria uma vida moral? Todas essas questões permanecem, quer você acredite em Deus ou não. Na verdade, na Holanda, temos discussões sobre o que significa ter uma sociedade moral sem religião.

Jorge Pontual — Acho que a Ciência, na Holanda, não é ameaçada por grupos religiosos como ocorre em outros lugares. Por exemplo, no Kansas, queriam forçar o ensino do criacionismo. Às vezes, grupos evangélicos tentam forçar isso. A Ciência é frágil diante disso. O que acha dessa questão?
Frans de Waal — A Ciência é, realmente, mais frágil do que a religião. Porque a religião surge naturalmente para os humanos, é encontrada em todas as sociedades humanas. Crianças de apenas três anos podem ser religiosas, de certa forma, acreditando em tudo. A Ciência é muito lenta e difícil. Geralmente, as pessoas têm uns 30 anos quando conseguem um título de Ph.D. Ensinar Ciência a criança leva muito tempo. Na história humana, a Ciência se destacou poucas vezes e só recentemente. A Ciência não é uma coisa natural para nós. Mas é uma conquista incrível. E é muito triunfante no momento. Mas se eu tivesse que botar a religião contra a Ciência, acho que a religião sempre ganharia, porque ela está muito mais de acordo com o que as pessoas querem fazer. Precisamos proteger a Ciência, e entendo por que, em um país religioso como os EUA, os ateus sejam militantes, porque talvez eles precisem ser. Mas ainda acho que não há espaço para qualquer diálogo se você diz que seu oponente é irracional. Não acho que isso ajude o diálogo. Quero que haja um debate. Há muitas pessoas que têm fé e não são tão dogmáticas quanto as pessoas que você mencionou, que têm museus criacionistas e coisas assim. Há muitas pessoas que têm fé, nos EUA, que não são dogmáticas e estão abertas à Ciência.

Jorge Pontual — Eu nunca olhei nos olhos de um chimpanzés, um bonobo ou um gorila pessoalmente, como você já fez. O que você vê quando olha de frente para os olhos de um deles?
Frans de Waal — Acho que os primatas transmitem muito mais personalidade. Se você olhar, digamos, para uma coruja, que também tem olhos frontais, ou para um gato, que também tem olhos frontais, o que você vê é um animal. Você diz: “Isso é um gato.” “Isso é uma coruja.” Se você olha para os olhos de um chimpanzé, você vê uma personalidade, com vontade própria, com capacidade de decisão, como quando você olha para um humano. Isso incomoda as pessoas às vezes. É por isso que algumas pessoas ficam nervosas em zoológicos, ao olharem, através de um vidro, para os olhos de um gorila. É por isso também que elas riem de primatas. As pessoas riem muito dos macacos. Isso vem do nervosismo, eu acho. Porque vemos como a semelhança é grande e ficamos desconcertados com isso.

Jorge Pontual — Em seu livro, você menciona muitas vezes Bosch, o pintor. Mais especificamente, o Jardim do Éden. Como o Jardim do Éden o inspirou?
Frans de Waal — Eu sou da cidade de Bosch, onde Hieronymus Bosch viveu. A pintura se chama “O Jardim das Delícias Terrenas”. Em holandês, o chamamos de “O Jardim da Luxúria”. Este seria o nome da pintura. E ela tem um painel central, que lembra uma cena do cotidiano de bonobos. Mil pessoas nuas brincando à toa. E a ideia dessa pintura é que Bosch queria mostrar como os humanos viveriam sem a “Queda”. Se o pecado original não tivesse sido cometido, como os humanos viveriam. Se não houvesse conhecimento de certo e errado, por exemplo, o que é uma posição muito interessante dele. E ele era produto do movimento humanista, bem no início, como foi Erasmo de Roterdã. Eles viveram aproximadamente na mesma época. E acho que Bosch, em suas pinturas, dava uma certa pista de que tipo de sociedade ele esperaria que houvesse sem religião. Ele estava criticando a religião um pouco. Estava imaginando como o mundo seria sem Deus. Não era explícito, porque isso teria sido perigoso na época. Mas ele explicava isso tudo.

Jorge Pontual — E o que é essa sociedade pré-pecado?
Frans de Waal — Não sabemos exatamente. Acho que ele estava tentando imaginar se ainda seríamos seres com moral. No tríptico “O Jardim das Delícias Terrenas”, o painel direito é o inferno. E, no inferno, as pessoas são punidas. Mas não são as pessoas do painel central. São pessoas do clero, apostadores, prostitutas, beberrões. Pessoas desse tipo estão sendo punidas.

Jorge Pontual — Padres, freiras...
Frans de Waal — É, ele não gostava deles. Acho que, nessa época, logo antes da Reforma Protestante, o clero já era muito criticado.

Jorge Pontual — E como isso se relaciona com os bonobos? Eu não entendi isso.
Frans de Waal — Como eu disse, ele mostra um cenário que lembra a vida de bonobos. Ele mostra humanos vivendo quase como primatas, comendo frutas, fazendo sexo, viajando. Parece, para mim, um cenário de bonobos. E faço um paralelo com a origem da moral, mostrando um pintor moralista. Ele era bastante moralista. Mas ele também tenta imaginar como seria a moralidade sem a religião.


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