20/07/2011

Golpe que deu início à Guerra Civil Espanhola completa 75 anos

É possível fechar as fossas da memória? Um confronto civil deixa feridos inclusive em cada família. Seria preciso transcender as leituras interessadas e tentar pelo menos um relato comum do que ocorreu.




Até hoje alguns tiros parecem conservar intacto seu poder destrutivo. Nas primeiras semanas deste mês foi exumada uma vala comum de mais de 30 metros de comprimento em Gumiel de Izán (Burgos, norte da Espanha). A hipótese de que ali estivesse enterrado um grupo de ferroviários que foram assassinados em 18 de agosto de 1936 é uma das levantadas para tentar estabelecer a identidade daqueles mortos que jazem, lado a lado, em um local conhecido como La Legua. Os investigadores estabeleceram, a partir dos cartuchos de fuzil e de balas partidas encontradas junto aos ossos, que muitos deles caíram ali mesmo, de um tiro na cabeça.
São esses tiros que continuam ecoando porque ainda não se sabe quem mataram. Foi encontrado um crucifixo, que pode ter pertencido a um franciscano da região que chamavam de vermelho por criticar a miséria em que viviam os agricultores, e um colete ortopédico, que talvez pertencesse a um maquinista da estação de Aranda de Duero.
As valas com os restos mortais dos que foram assassinados pelas forças franquistas foram certamente um dos temas relacionados à Guerra Civil que estiveram mais presentes na sociedade espanhola nos últimos anos. Foram muitos os netos dos que sofreram o conflito que, em dado momento, perguntaram por seus avós. Aí começaram as respostas vagas ou os silêncios, e ficou evidente, segundo muitos dos que embarcaram nesses processos, um medo que continuava vivo nos sobreviventes, apesar do tempo transcorrido.
A torpeza na hora de administrar politicamente a legítima demanda de muitos parentes para recuperar seus mortos, e assim poder voltar a enterrá-los e realizar esse luto postergado há tanto tempo, gerou numerosas tensões que pareciam desaparecidas e que cresceram em intensidade quando o juiz Baltasar Garzón, diante da alarmante ineficácia da chamada Lei da Memória Histórica para resolver esses problemas, decidiu intervir.
Mas não são só as valas que chamaram a atenção de uma sociedade que tem cada vez menos a ver com a que sofreu a ditadura de Franco, e que portanto se pergunta sobre o sentido da sobrevivência de alguns símbolos que continuam glorificando aquele regime. Um grupo de especialistas discute o que fazer com o Vale dos Caídos, o complexo monumental onde está enterrado Franco.
Setenta e cinco anos depois do golpe de Estado dos militares rebeldes, ainda há outras questões que continuam abertas. A maneira de contar o que aconteceu então é uma delas. Há pouco tempo, a apresentação de um Dicionário Biográfico Espanhol realizado pela Real Academia de História levantou uma forte polêmica. No tratamento dado nesse trabalho a alguns dos protagonistas da guerra (entre eles o próprio Franco), mais que a busca por um escrupuloso rigor histórico o que prevalece é a intenção de edulcorar as asperezas dos responsáveis pelo golpe, com o que se resgatam alguns elementos que caracterizaram a versão dos vencedores.
Quanto aos vencidos, algumas entradas (como a de Manuel Azaña) estão cheias de erros e recorrem, para definir a atividade de Negrín, por exemplo, a fórmulas próprias dos propagandistas da ditadura e se referem a seu governo como "praticamente ditatorial".
As valas, o Vale dos Caídos, o Dicionário Biográfico Espanhol: há momentos em que parece que hoje tentassem construir de novo trincheiras invisíveis para continuar travando uma velha guerra, e assim voltar a servir-se do passado para evitar as batalhas do presente. O problema talvez resida na maneira de voltar o olhar para trás. Porque há muitas maneiras de fazer perguntas ao passado. Uma delas salienta uma dívida pendente, e quer fazer contas. Pode ocorrer, no entanto, que ao fazê-las se utilizem os valores de hoje para saldar os assuntos de então.
No afã de reclamar uma dívida pendente do passado, a que conhece a afronta costuma ser a memória individual (agora que restam cada vez menos dos que viveram o conflito, o que permanece é muitas vezes seu relato do ocorrido). Uma memória, a individual, que é sempre legítima mas que seleciona e também se constrói ao redor de alguns esquecimentos, que é caprichosa, que amplia alguns detalhes e reduz outros. Certamente todos os derrotados na Guerra Civil olham para esse passado com ira, e é lógico que em determinados casos tenham todo o direito de exigir reparações. Mas a memória individual nada tem a ver com as chamadas memórias coletiva, histórica, externa, social: "Ninguém recorda nem pode recordar o que ocorreu fora do âmbito de sua própria existência", dizia Francisco Ayala. E tem razão: como lembrar o que outros viveram?
Essa outra memória, a que quer se transformar na de alguns (um grupo, uma tribo, uma associação, uma nação), é sempre uma construção interessada e costuma servir para estabelecer os traços de uma identidade comum, definir as chaves de pertencimento a uma determinada coletividade, e muitas vezes se concretiza em abstrações carregadas com a dinamite do exclusivo.
Comunistas, anarquistas, nacionalistas, socialistas, sindicalistas, carlistas, falangistas, franquistas, republicanos e sabe-se lá quem mais, continuam se servindo da Guerra Civil para reforçar seus próprios relatos (seja como vítimas, seja como salvadores) sobre o que aconteceu, e para justificar ou enfeitar seu discurso sobre o presente. Perguntar ao passado sobre uma conta pendente leva a continuar situando a discussão no terreno político. E assim, 75 anos depois de tudo começar, continuam-se impondo aquelas versões nas quais predomina o branco e o preto e se esfumam os cinzas.
Há outra maneira de se relacionar com o passado. Não tanto reclamar uma dívida pendente, como se perguntar pelo que realmente ocorreu. É o que fazem os historiadores, e foram muitos os casos que nos últimos anos contribuíram para revelar as diversas arestas de um conflito habitualmente muito confuso devido às interpretações que uns e outros deram sobre o que aconteceu para justificar seus respectivos comportamentos.
Nem sempre é possível dar uma explicação unívoca para fatos complexos, mas isso não significa que qualquer relato seja válido, e muito menos que o esforço para se aproximar com maior rigor dos fatos signifique ameaçar, como já se disse, a liberdade de expressão do historiador. Por que houve uma guerra? Poderá haver uma infinidade de matizes na resposta, mas esta ocorreu porque um grupo de militares, com amplo apoio civil, não conseguiu que triunfasse o golpe de Estado com que pretendiam tomar o poder e assim deter as reformas que a República havia implementado. Que regime se impôs ao terminar o conflito? Uma ditadura personalista, que se apoiou no exército, na Igreja e em um partido único, e que desencadeou uma brutal repressão para garantir sua continuidade.
Entre o golpe e a vitória final de Franco, houve acontecimentos de muito diferentes calados. O que, em todo caso, produziu a rebelião dos militares foi a violenta exigência a que se submeteu cada espanhol para que tomasse partido. Por piores que fossem as coisas, por mais duras que fossem as ameaças que a República sofreu em seus piores momentos, só o golpe de julho impôs a obrigação de se decantar: ou eles ou nós. A rebelião destruiu as estruturas de comando do exército, e não era fácil saber a que se ater, nem ter plena certeza sobre quantos uniformizados continuavam obedecendo ao regime legal.
Os primeiros a cair, as primeiras vítimas dos golpistas, foram seus companheiros de armas. Em uma tessitura de total descontrole, e diante de um alarmante vazio de poder, o governo decidiu distribuir armas à população para combater os golpistas. A violência vingativa de muitos desses grupos armados se dirigiu contra os representantes do antigo poder: sacerdotes, guardas-civis, policiais, patronos, administradores de fazendas. A República já não só deveria combater as tropas do exército rebelde, que contaram desde muito cedo com o apoio material da Itália e da Alemanha, como também teve de conter os desmandos que ocorriam entre os seus.
O mais grave de uma guerra civil é que, de alguma maneira, ocorre no interior de cada família. Os que compartilharam o mesmo pão logo se veem situados em diferentes trincheiras, e cabe-lhes lutar por sua sobrevivência muitas vezes contra os seus. É difícil reparar a dor que tudo isso comporta, fechar essa imensa ferida. Mas o passar do tempo talvez permita saber como realmente sucederam as coisas. Será possível algum dia estabelecer em relação à Guerra Civil alguns pontos que estejam além das diversas interpretações e das leituras interessadas, e se possa, portanto, transcender as distintas memórias coletivas para voltar ao terreno da história?
Certamente o desafio pendente continue sendo voltar aos fatos, e isso passa pela lenta e paciente demolição dos mitos e lendas que os vencedores (e também os vencidos) construíram sobre seu papel naquele terrível drama. Que tenha sido a própria Real Academia de História que não soube ser extremamente delicada com um material tão inflamável só confirma o quanto os espanhóis ainda devem fazer para voltar ao passado com honradez e coragem para entender o que realmente aconteceu.
Fatos chaves no golpe de julho de 1936
16 de julho. O general Anselmo Balmes, chefe militar da Grande Canária, morre de um tiro em circunstâncias estranhas e no momento em que Franco precisava de um pretexto para sair de Tenerife sem despertar suspeitas. Em Grande Canária o aguardava o avião Dragon Rapide, contratado pelos conspiradores.
17 de julho. Franco preside os funerais de Balmes em Las Palmas. À tarde, em Melilla, um grupo de comandantes detém o general Manuel Romerales, chefe da circunscrição oriental do protetorado espanhol no Marrocos, por não apoiar a rebelião (foi fuzilado semanas depois). Também detém o general Agustín Gómez Morato, principal comandante militar espanhol no norte da África, e começam as prisões ou assassinatos de pessoas incluídas nas listas negras.
18 de julho. Levantam-se várias guarnições na península. Franco voa para o Marrocos no Dragon Rapide, mas pernoita em Casablanca, fora da zona do protetorado espanhol. Forças do "diretor" do golpe, Emilio Mola, detêm o general Domingo Batet, chefe da 6ª Região (Burgos), cujo território passa em grande parte para mãos rebeldes. (Batet foi executado meses depois.)
19 de julho. Franco faz escala em Tetuán e lança um proclama: "A Espanha se salvou (...) Vocês podem se orgulhar de ser espanhóis, pois já não cabem em nosso solar os traidores". O golpe se amplia. Depois da demissão do chefe do governo, Santiago Casares, o designado para substituí-lo, Diego Martínez Barrio, fracassa em suas gestões com chefes rebeldes (Mola, Miguel Cabanellas) para conter o movimento. Forma-se outro governo, encabeçado por José Giral, que dá curso à exigência de sindicatos e partidos políticos para armar suas milícias.
20 de julho. O general José Sanjurjo, protagonista de uma intentona em 1932 e provável chefe de Estado se o golpe de 1936 tivesse triunfado, morre na queda do avião que tinha ido buscá-lo em Portugal. A rebelião fracassa em Madri e Barcelona, luta-se na Andaluzia e em outras regiões. O governo manda barcos para o estreito para impedir a passagem do exército da África à península. Franco realiza seu primeiro pedido urgente de aviões e equipamentos à Itália e outros países.


Reportagem de José Andrés Rojo para o jornal espanhol El País
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/07/20/golpe-que-deu-inicio-a-guerra-civil-espanhola-completa-75-anos.jhtm
foto:caneteando.blogspot.com

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