No semestre de 2010 foram sancionadas 95 leis federais, média de uma por dia (considerando-se os dias úteis, descontados os pontos facultativos e dias de jogo da seleção brasileira na Copa do Mundo, e levando em conta que a sessão legislativa inicia-se em 2 de fevereiro — artigo 57 da Constituição). Se sopesarmos ainda as legislações estaduais e municipais, bem como a imensidão de regulamentos e provimentos do Executivo e do Judiciário, os tratados internacionais e as emendas à Constituição, pode-se afirmar sem sombra de dúvidas que cada brasileiro se depara com pelo menos três novas normas ao dia. São três novos textos que nascem por dia para regular a vida das pessoas. Nem mesmo os mais empenhados juristas conseguem acompanhar tal atualização. Essa proliferação excessiva de leis é tecnicamente conhecida como “inflação legislativa” ou "hiper-regulação".
Se num belo final de semana uma pessoa se dirige a um bar à beira de qualquer uma das suntuosas praias do nosso país e pede uma caipirinha, poderá reclamar se as especificações da bebida servida não coincidirem com aquelas previstas no Decreto Federal 6.871/2009, regulamentado da Lei 8.918/1994, in verbis:
Artigo 68
§ 5º A bebida prevista no caput, com graduação alcoólica de quinze a trinta e seis por cento em volume, a vinte graus Celsius, elaborada com cachaça, limão e açúcar, poderá ser denominada de caipirinha (bebida típica do Brasil), facultada a adição de água para a padronização da graduação alcoólica e de aditivos.
§ 6º O limão poderá ser adicionado na forma desidratada.
O exemplo acima apenas ilustra como no Brasil fazem-se normas para tudo, e, apenas para engrandecer esta afirmativa, cita-se algumas leis sancionadas em 2010: Lei 12.285 (que confere ao município de Apucarana (PR) o título de capital nacional do boné); Lei 12.282 (que confere ao município de Imbituba (SC) o título de capital nacional da baleia franca); Lei 12.198 (que conceitua repentista como profissional que utiliza o improviso rimado como meio de expressão artística cantada, falada ou escrita, compondo de imediato ou recolhendo composições de origem anônima ou da tradição popular); Lei 12.206 (que institui o Dia Nacional da Baiana de Acarajé); Lei 12.208 (que institui o Dia do DeMolay).
Nada contra os municípios de Apucarana e Imbituba, ou contra os repentistas, baianas e demolays, mas cabe o questionamento se realmente tais assuntos deveriam ser matéria de lei federal, note-se, das mais importantes espécies legislativas, submissa no ordenamento jurídico apenas à Constituição.
Este fato é consequência da crença de que todos os problemas e situações possíveis da sociedade devem ser regulados e resolvidos por meio de dispositivos normativos, uma consequência do conceito de lei como instrumento duradouro e confiável, consolidada em códigos organizados e coesos, apresentado pela burguesia capitalista do século XIX, que utilizava as leis para gerar certa segurança jurídica que protegia seus interesses liberais com certeza e previsibilidade. Depois deste acontecimento passou a se pensar que só pode-se ter segurança de algo se este fosse resguardado por lei.
Esta “poluição normativa”, como afirma o lusitano Paulo Castro Rangel (In: Inflação legislativa: doença ou mutação genética), gera apenas mais descrédito às leis, vez que estas, por serem inúmeras, acabam, por desconhecimento ou por simples anarquia, não sendo aplicadas.
Desta breve análise, percebemos que é incorreto afirmar que os parlamentares brasileiros não legislam, eles legislam (e muito), só não o fazem de forma adequada, muitas vezes se ocupam de assuntos anódinos e não atendem às verdadeiras demandas jurídicas e sociais.
É certo que o processo legislativo de cada lei necessita de largo debate interpartidário e com os representantes sociais, e essa tramitação leva tempo, entretanto, muitas vezes, quando a lei é aprovada a realidade social é totalmente diversa daquela à época da apresentação do projeto (o grande exemplo é Código Civil, aprovado em 2002, mas que teve seu anteprojeto apresentado ao Congresso Nacional em 1975), sem contarmos que muitas leis são eleitoreiras ou interesseiras e, por serem feitas com atropelo e casuísmo, acabam por ser incompletas e até mesmo inconstitucionais (ao mesmo tempo em que o Congresso aprovou 95 novas leis, 65 Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram propostas no Supremo Tribunal Federal).
O processo judicial brasileiro (Penal e Civil) necessita de uma revisão legislativa geral, isso há muito tempo é falado e algumas alterações pontuais realmente são feitas, estas apenas servem de paliativo, no entanto, não sanam os problemas, a revisão geral ainda está em débito. Em um antigo artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Francisco Rezek (In: O Direito que Atormenta, p. 03, caderno 1, 15 nov. 1998), que já foi ministro do STF e juiz da Corte Internacional de Justiça da ONU, escreveu que:
"Há no Direito brasileiro dois vícios graves pedindo, já faz tempo, remédio urgente. Nossas regras de processo, antes de tudo, parecem não querer que o processo termine. Os recursos possíveis são muitos (creio não haver fora do Brasil trama recursiva tão grande e complicada), e pouca gente hoje crê que isso ajude mesmo a apurar melhor a verdade para melhor fazer Justiça. De outro lado, as regras de direito material que o legislador edita com fartura têm sido a matriz de processos em larga escala, sobretudo quando é o governo que legisla, sem o pressuposto do debate parlamentar. Numa equação simples, toda demanda é o resultado de duas pessoas haverem entendido coisas diferentes ao ler a mesma norma. A simplicidade e a clareza da lei previnem demandas. Mas pouco se tem feito entre nós para isso, para evitar, com a qualidade da lei, que à sua edição sobrevenham processos em cascata. Isso não pede mais que algum trabalho, método e consciência do legislador”.
Outras leis importantes, como a que regula o direito de greve no serviço público (artigo 37, VII, da CF) ou a que trata da incorporação, fusão e desmembramento de municípios (artigo 18,§ 4º, da CF) nunca foram votadas, apesar de serem previstas desde 1988 na Carta Magna como uma ordem ao Poder Legislativo.
Deste modo podemos afirmar, paradoxalmente, que o Parlamento legisla muito e ao mesmo tempo legisla pouco, atua com lentidão ao enfrentar os assuntos mais pujantes, deixando assim de atender grande parte das demandas sociais.
Por fim, acrescentamos que em determinados casos em que o Legislativo cumpre sua função legiferante, são os órgãos de execução que deixam a desejar no cumprimento das normas, perfazendo estas em letra morta.
Fonte:http://www.conjur.com.br/2010-jul-28/parlamentares-brasileiros-legislam-forma-inadequada