"A raspa da
canela do capeta." Assim era conhecido o crack quando surgiu em São Paulo,
na periferia da zona leste. Era fim dos anos 1980 e o Brasil vivia os desafios
da redemocratização, após 20 anos de ditadura militar. Subproduto sujo e barato
da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao ser queimada
logo se tornou o prazer e a praga dos excluídos, de farrapos humanos que pouco
importavam à sociedade e, consequentemente, ao poder público.
Passados mais de 20 anos, esse cenário mudou: hoje, o crack
está presente em todos os cantos do Estado. Dos grandes centros urbanos, migrou
para cidades pequenas e afastadas, antigos rincões do sossego. Também escalou a
pirâmide social e chegou às mansões. Com a mesma rapidez com que corrompe e
danifica o organismo, virou a principal droga ilícita tanto em municípios
pobres e pouco desenvolvidos quanto em regiões de economia aquecida, estâncias
turísticas, balneários, paraísos litorâneos e na roça.
Em mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM),
atualizado em tempo real pelas prefeituras, 194 cidades paulistas – das 556
participantes – declararam ter alto problema decorrente de consumo de crack.
Entre elas estão Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais do
Circuito das Águas), Campos do Jordão (a "Suíça brasileira"),
Ilhabela (reduto de Mata Atlântica no litoral norte), Cananeia (patrimônio da
humanidade), além de cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado),
Monte Alegre do Sul (capital do morango), São Roque (terra do vinho), Louveira
(2.º maior PIB per capita do País).
Diferentemente das regiões metropolitanas, onde dependentes
se concentram nas cracolândias em locais públicos, à vista de todos, nos
recantos de sossego do interior o crack geralmente avança de forma oculta, com
usuários "invisíveis" escondidos em casas de consumo,
"mocós", no meio do mato, em pontos de venda conhecidos como
"biqueiras" ou "bocas". São cidades pequenas, onde todos se
conhecem, como Fernão (1,5 mil habitantes), Martinópolis (24 mil), Vera Cruz
(10 mil), Gavião Peixoto (4,4 mil), Garça (43 mil) e Registro (54 mil).
Durante quatro meses, a reportagem do Estadão percorreu
6,6 mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais, estaduais
e municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas, ambulatórios
especializados e pontos de consumo – foram consultados 28 agentes públicos,
profissionais da área e especialistas. No caminho, visitou 13 municípios que
denunciaram alto ou médio problema com crack no mapa da CNM, em diferentes
pontos do território paulista, e conversou com 50 usuários, ex-usuários,
parentes e moradores para montar um diagnóstico do avanço e das mazelas
provocadas pelo crack no interior de São Paulo.
Na maioria das cidades, a rede pública em geral é
deficitária, os profissionais são despreparados para lidar com a dependência e
as ações de governo acabam sendo feitas sem a integração necessária. Uma
combinação de carências que potencializa os danos em cadeia provocados pelo
aumento do consumo abusivo da droga e extrapola as áreas de saúde e polícia.
Além de influir na degradação do usuário e no aumento da criminalidade, o
avanço do crack faz crescer a população em situação de rua e pode interferir na
economia local.
Apesar de o consumo de crack no Brasil ainda ser menor que o
do álcool e
o da cocaína em pó, o tratamento de dependentes da versão fumada da coca é um
desafio para médicos e especialistas. Estudos indicam que, em média, apenas um
terço dos usuários severos consegue se tratar e retomar a vida – os outros dois
terços morrem ou continuam na droga. Para quem pode pagar, a recuperação é uma
realidade mais próxima. Mas, para a grande maioria das pessoas que dependem da
rede pública, os investimentos e programas de enfrentamento ao crack lançados
nos últimos anos pelas diferentes esferas de governo ainda são um benefício
distante – principalmente nas pequenas e médias cidades do interior. Quando há
serviços ou empenho político local, falta a condição adequada para cumprir todo
o ciclo necessário de atendimento – redução ou abstinência de uso,
reaprendizado de como é a vida sem a droga e reinserção nos ambientes familiar
e social.
Há outro empecilho: embora especialistas e as próprias
autoridades concordem que as políticas dos governos federal e estadual devem
caminhar juntas e se complementar, na prática União e Estado trilham rumos distintos.
Enquanto a primeira prioriza o tratamento domiciliar, com acompanhamento nos
Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o segundo aposta na Justiça
terapêutica, com internações – involuntárias ou não – em hospitais
especializados e comunidades terapêuticas para interromper o consumo de vez. Um
descompasso que só prejudica quem tenta vencer o drama da dependência.
Reportagem de Ricardo Brandt
fonte:http://infograficos.estadao.com.br/especiais/crack/index.html
foto:http://v1.portalhoje.com/tag/crack
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