Diminuição da desigualdade social na última década não se traduziu em queda da criminalidade.
Na saída de uma estação de metrô de Caracas, membros da Guarda Nacional Bolivariana penduram cartaz com um mapa dos setores da região e os números de telefone dos efetivos de patrulhamento policial de cada um. A enfermeira Francis Rojas, de 34 anos, se detém para observar o mapa, pega o celular e agenda o número de atenção do setor por onde costuma circular. Diversas pessoas que entram e saem da estação na manhã desta sexta-feira (10/01) dedicam alguns minutos para fazer o mesmo.
“As regiões aqui perto são muito desertas, por isso estava anotando o telefone. Pelo menos agora temos estes números, parece que [o governo] tem intenção de resolver o problema. Espero que essas ações sejam permanentes, porque os venezuelanos padecem das consequências da violência”, diz Rojas, sobre o assunto que voltou ao centro do debate público na última semana na Venezuela: a violência que, segundo dados do ministro de Interior, Justiça e Paz, Miguel Rodríguez Torres, registra 39 homicídios para cada 100 mil habitantes.
O debate sobre a violência dos últimos dias foi detonado pelo assassinato da ex-miss Venezuela Mónica Spear, de 29 anos, e de seu ex-marido, Thomas Berry, de 39 anos, baleados diante da filha de cinco anos, que ficou ferida, em uma estrada do país enquanto o carro em que viajavam era rebocado, na noite da última segunda-feira (06 /01). Segundo as autoridades, sete pessoas foram detidas pelo crime, entre elas o suposto autor material do assassinato.
Após o episódio, o presidente Nicolás Maduro participou de pelo menos três reuniões sobre políticas de segurança. Uma delas, com governadores do país e prefeitos de municípios com maiores índices de criminalidade, contou inclusive com a presença do opositor Henrique Capriles, governador do estado de Miranda, que não reconhece a derrota para o chefe de Estado na eleição presidencial de abril do ano passado. Em uma das reuniões, na última quinta (09/01), após escutar um resumo de propostas para combater a violência, Maduro afirmou que até o dia 8 de fevereiro deve apresentar um novo plano para a “pacificação” do país.
“Dessa vez foi uma miss, mas todos os dias isso acontece com um venezuelano”, explica Rojas, afirmando que se chocou com o assassinato de Spear. “Eu não sei o que está acontecendo. Não tem sentido matar para roubar”, considera a enfermeira, que trabalha no Hospital Militar. “O problema é a falta de políticas públicas de segurança. O que temos são somente ações, planos, e infelizmente amanhã isso será esquecido”, afirma o pesquisador de mercado Antonio Fernández, de 37 anos, que também observava com curiosidade o mapa com os telefones disponibilizados pelo ministério de Interior.
Segundo Fernández, hoje os venezuelanos “se preparam para serem roubados”. Sua companheira de trabalho, Argelia Sifontes, de 36 anos, explica que há técnicas de prevenção, como utilizar na rua um celular mais barato e restringir o smartphone para o uso no escritório ou em casa. Diversos venezuelanos entrevistados por Opera Mundi afirmaram que, nos últimos anos, deixaram de sair durante as noites, ou diminuíram bastante a quantidade de vezes que o fazem. Alguns, no entanto, também dizem se sentirem inseguros nas ruas durante o dia.
Apesar da aparente tranquilidade com que riam e conversavam em uma praça de um bairro de classe média, um grupo de estudantes afirmou ter medo de uma abordagem para assalto. Com idades de 13 a 15 anos, a maioria deles mora em Petare, região que abriga a maior favela urbanizada da Venezuela, a algumas estações de distância do local, e diz já ter passado por algum tipo de roubo. “É terrível”, dizem em coro e alta voz, sobre a situação na região, localizada ao extremo leste de Caracas.
Desigualdade cai, criminalidade persiste
Segundo o professor e pesquisador de criminologia Andrés Antillano, da Universidade Central da Venezuela, o índice de roubos com violência no país supera o de furtos. “O que aumentou muito foram os crimes violentos e os homicídios, que, pela sua própria natureza e visibilidade, são o que colocam isso em evidência mais claramente. Todos os dados apontam que delitos como sequestros, lesões, roubos com diferentes graus do uso da força aumentaram nos últimos anos”, atesta, esclarecendo, no entanto, que o aumento dos homicídios é uma tendência comum no resto do continente, com exceção do Brasil e Colômbia.
De acordo com dados disponíveis no site do escritório da ONU sobre Drogas e Crime, em 2006 a Venezuela ultrapassou a Colômbia e agora é o país sul-americano com o maior índice de homicídios por 100 mil habitantes. Até 2010 — último ano cujos dados das duas nações podem ser comparadas nestas estatísticas, que no caso da Venezuela, têm como fonte organizações não governamentais —, o país mantinha o indesejado primeiro lugar, com 45,1 homicídios para 100 mil habitantes, contra 33,4 na Colômbia e 22,4 no Brasil.
Segundo Antillano, o aumento dos crimes violentos foi deflagrado na Venezuela no final da década de 1980, com o pacote de medidas neoliberais aplicado pelo governo de Carlos Andrés Pérez, que gerou dinâmicas de exclusão social, com aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade. Paralelamente, diante dos protestos, o Estado venezuelano promoveu uma violenta repressão, deixando milhares de mortos, segundo estimativas.
O especialista explica que, a partir de então, os homicídios aumentaram de maneira permanente, com momentos de estabilidade e de uma leve tendência à diminuição, mas com “macabra regularidade” de duplicação a cada década. De acordo com ele, apesar dos avanços na redução da desigualdade econômica e a implementação de programas sociais que melhoraram a qualidade de vista de setores empobrecidos da sociedade venezuelana ao logo dos anos de gestão chavista, esta reversão não se reflete automaticamente nos índices de criminalidade.
“Não é porque se superam essas condições materiais que se volta mecanicamente a uma situação prévia, porque a violência gera uma ruptura nas comunidades. Dissolve vínculos comunitários, as pessoas se fecham em espaços privados, há suspeita entre os vizinhos e tensões porque vítimas e os que cometem delitos vivem na mesma vizinhança”, explica, complementando: “Inclusive, há uma relação inversa, já que a violência faz com que os esforços de inclusão social se encalhem. Se um rapaz tem melhor alimentação, educação ou acesso à saúde, saindo do posto de saúde é morto, os esforços para a inclusão se desvanecem. E a violência também encarece as condições de vida dos mais pobres, um item custa menos na entrada do bairro do que no alto do morro”.
Apesar da comoção gerada por episódios como o crime contra a ex-miss Venezuela, os maiores registros de crimes violentos são nas comunidades pobres de zonas urbanas. “São os pobres os que morrem pelas balas de outros pobres, a violência é fundamentalmente intraclasse. Eles são vítimas das condições de exclusão, das más políticas de segurança e do delito”, afirma Antillano.
Mudança no discurso: volta da repressão
De acordo com ele, apesar do governo chavista ter passado por momentos em que afirmava que a violência derivava da falta de justiça social e que os pobres não deveriam ser criminalizados, esse discurso se transformou ao longo dos anos, adotando a retórica de que o delinquente encarna o capitalismo e os valores individualistas e, portanto, é um inimigo do povo e da revolução. “Nessa retórica, começa o uso das Forças Armadas como força de choque para enfrentar esse inimigo interno e ao mesmo tempo o incremento da severidade penal, desmontando o discurso inicial de renúncia à repressão ao povo e se restitui a ideia de mão dura”.
Antillano questiona a alegação de que a impunidade no país — que segundo algumas estimativas chega a 90% — seja a causa do aumento da criminalidade, já que a população carcerária passou de 11 mil nos primeiros anos do governo de Chávez, a mais de 50 mil presos, segundo estimativas extraoficiais. “Não é que não seja verdade que haja impunidade, mas é insuficiente. Claramente há mais gente presa do que nunca na história, mas o sistema penal está cheio, há um castigo excessivo a delitos menores. Falta concentração nos crime mais graves”, explica.
Para ele, a solução passa pela reforma do sistema judiciário, que classifica como “muito corrupto e classista”, por “castigar essencialmente os pobres, e não julgar, não funcionar”. Por outro lado, afirma que é preciso aprofundar as políticas sociais. “Acredito que é preciso insistir na questão da exclusão social, porque apesar da redução da desigualdade ainda há muitas injustiças, muitas promovidas pelas políticas de segurança, que acentuam a exclusão de determinados grupos de jovens pobres urbanos”, diz.
Outro ponto tocado pelo especialista é a necessidade de uma política eficaz de desarmamento. “Apesar da recente lei aprovada por consenso entre o governismo e a oposição, esta questão não se resolveu. Hoje há grande facilidade para a aquisição de armas e munições no país e não há uma política pública coerente para solucionar este problema”, explica, estimando o número de armas no país não supera dois milhões. “Segundo alguns dos poucos dados obtidos pela Comissão de Desarmamento, nos últimos anos a quantidade de armas destruídas no país foi grande, mas em sua maioria estavam velhas e quase inutilizadas, não tinham envolvimento em crimes”, conclui.
Reportagem de Luciana Taddeo
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