04/11/2013

O novo abolicionismo: bilionário australiano quer acabar com a escravidão no mundo

O magnata da mineração Andrew Forrest (foto abaixo) quer riscar a exploração do trabalho forçado ou degradante dos cantos mais escuros do planeta. O primeiro fruto de sua iniciativa é um indicador inédito de prevalência de escravidão para 162 países. É uma boa causa – e um bom verniz para a imagem do filantropo.



O australiano Andrew Forrest, de 51 anos, é um filantropo compulsivo. Tendo feito fortuna com mineração nos primeiros anos do século XXI, prometeu torrar a maior parte dela com as mais variadas causas: aborígenes, crianças desamparadas, vítimas de desastres naturais, sem-teto, desempregados, jovens vulneráveis, um museu e as cinco universidades do seu Estado (Austrália Ocidental), o Exército da Salvação etc. Nas contas do jornalista Andrew Burrell, ele já gastou mais de 300 milhões de dólares. Há muito mais para queimar: seu atual patrimônio é 5,7 bilhões, o que faz dele o 4º mais rico da Austrália e 211º do mundo, segundo o ranking da revista Forbes.
Em Twiggy: The High-Stakes Life of Andrew Forrest ("Twiggy: A vida de altas apostas de Andrew Forrest", ao pé da letra), lançado nesta semana, Burrell sonda as razões que levaram Twiggy, como o empresário foi apelidado, a se lançar na empreitada de salvar o mundo: a devoção religiosa, o desejo de reconhecimento, "culpa de bilionário", descontos no imposto de renda, reconstrução da imagem, ensaio para entrar na política e até a intenção de livrar os filhos do "fardo" de uma herança colossal. Pode ser tudo isso. Twiggy não deu satisfação a Burrell. É uma biografia não-autorizada, e o bilionário teve de se conformar em ser chamado de "filantropo que faz qualquer coisa por um dólar" e de ver revelados segredos de família que chocariam nossos ídolos da MPB, como a de que sua mãe, ao saber da gravidez, passou uma semana saltitando sobre o cavalo para provocar um aborto.
De causa em causa, Forrest acabou mirando o combate ao trabalho escravo. O australiano quer riscar a servidão do planeta. Em 2012, ele criou a ONG Walk Free, injetou nela 8 milhões de dólares, mais doze milhões em 2013, e aliou-se ao mais famoso dos neoabolicionistas, o americano Kevin Bales. Misto de cientista social e ativista, Bales viaja o mundo estudando as variantes do trabalho escravo — ou práticas análogas — e tomando parte nos esforços para libertar suas vítimas. Bales sabe lidar com números e ajudou a compor o primeiro indicador global da escravidão, uma louvável tentativa de fixar parâmetros para acompanhar avanços e retrocessos no combate a ela. "Não é possível resolver um problema que você não consegue medir", diz o pesquisador.
O primeiro fruto da Walk Free, lançado em outubro, é um mapeamento da exploração da mão-de-obra em 162 países do mundo. Sem surpresa, o relatório atesta a correlação entre servidão e uma série de indicadores, como pobreza, desenvolvimento humano (IDH) e corrupção. O dado assombroso: nenhum país do mundo está livre da vergonha. Os dez casos mais graves: Mauritânia, Haiti, Paquistão, Índia, Nepal, Moldávia, Benin, Costa do Marfim, Gâmbia e Gabão. Os dez menos: Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo, Noruega, Suécia, Suíça, Nova Zelândia, Grã-Bretanha, Irlanda e, o país mais seguro, Islândia. Total no mundo: 29,8 milhões de escravos (2,8 milhões a mais que a estimativa preliminar de Bales), o equivalente à soma das seis cidades mais populosas do Brasil. Ou uma em cada 239 pessoas no planeta.
O relatório cuida do que se convencionou chamar trabalho escravo contemporâneo, ou moderno, que pode ser tão ou mais cruel que sua versão histórica, mas dela difere radicalmente quanto ao recrutamento. Em geral, suas vítimas entregam-se voluntariamente ao serviço, ludibriadas por uma pergunta singela e tentadora: "Quer o emprego?".
Os estudos de caso ilustram bem as principais modalidades de exploração. Na Mauritânia, o campeão disparado em prevalência de escravidão, os pesquisadores relatam a existência ainda hoje de cativos à moda das antigas sociedades escravagistas. Podem ser vendidos, alugados ou emprestados, como qualquer bem material. No Haiti, a servidão tem suas raízes na prática do "restavek" (do francês "rest avec", ficar com), pela qual uma criança é entregue pelos próprios pais a uma família mais rica, que eventualmente a fará trabalhar sem receber salário. No Paquistão, a forma mais comum de trabalho forçado é a chamada servidão por dívida, pela qual o empregado fica amarrado ao empregador por um débito forjado que nunca consegue saldar. A Índia abriga praticamente todas as formas de escravidão, incluindo a exploração do trabalho infantil, casamentos forçados e até escravidão hereditária. A Moldávia é grande exportadora de mão-de-obra, em particular para a indústria do sexo e o setor da construção da Ucrânia e Rússia. Na Gâmbia, a escravidão moderna tem a forma da mendicância forçada, tendo crianças como principais vítimas. O Gabão, país relativamente estável entre seus vizinhos, é um grande importador de escravos, a maioria para servidão doméstica e exploração sexual. 
O caso brasileiro – O Brasil aparece na 94ª posição desse ranking da vergonha, com algo entre 200 000 e 220 000 vítimas. Medições anteriores variaram de 25 000 a 400 000.  Nenhuma delas é endossada pelo governo — ou por acadêmicos brasileiros. O Ministério do Trabalho contabiliza 44.415 trabalhadores resgatados desde 1995, 2.750 no ano passado, com o Pará à frente. A lista negra de empregadores, atualizada em outubro, conta com 490 nomes, a maioria em áreas rurais. Há cerca de 1.000 ações ajuizadas na Justiça Federal, tendo por base os quatro elementos que caracterizam "condições análogas à de escravo", segundo artigo do Código Penal, cuja redação completa dez anos em 2013: trabalho forçado, condições degradantes, jornada exaustiva e servidão por dívida. Segundo o coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, Jonas Ratier Moreno, os casos mais comuns são de trabalho degradante, especialmente nas áreas rurais.
O relatório da Walk Free elogia o combate à escravidão no Brasil, assim como a própria ONU, por meio de sua relatora sobre o assunto, a advogada armênia Gulnara Shahinian. É uma política que começou no governo Fernando Henrique, ganhou importantes marcos legais nos anos Lula e pode ganhar mais um no de Dilma Rousseff. Trata-se da chamada PEC do trabalho escravo, que estende às propriedades onde ele é explorado a mesma punição prevista na Carta de 1988 para os donos de terras destinadas à cultura de drogas: expropriação. Essencialmente, é uma sanção a mais para um delito já punido na esfera penal com 2 a 8 anos de prisão, além de multa. A emenda foi proposta originalmente em 1999, mas logo empacou entre duas paranoias: a de ruralistas, temerosos de que o mero descumprimento de uma norma trabalhista se prestasse a confiscos sumários, e a da extrema esquerda, ansiosa por converter a emenda em instrumento de pressão contra a propriedade privada e o agronegócio.
A PEC levou onze anos para ser aprovada pela Câmara — e ainda assim sob a expectativa de que os senadores mexessem no texto, que então teria de ser devolvido ao exame dos deputados. Ao relatar a matéria, contudo, o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) defendeu a aprovação do texto tal qual encaminhado pelos deputados, criticou a "comédia de erros" encenada na Câmara e expressou a necessidade de um projeto de lei que o regulamente, garantindo segurança jurídica. Para destravar de vez a matéria, propôs uma tramitação heterodoxa: a regulamentação seria desenhada previamente, para que seja votada junto com a emenda. A sugestão foi aceita.
O desenho desse projeto de lei começou pela Comissão Mista de Consolidação de Leis e de Dispositivos Constitucionais do Congresso. O senador conta que há duas questões mais delicadas para tratar em lei.
Uma é a definição do fórum competente para as ações: a Justiça Comum, segundo a lei processual civil, com a garantia de que a punição só seja aplicada após o trânsito em julgado da sentença. "Escravidão não é matéria trabalhista", diz o tucano.
O outro é a questão da "jornada exaustiva", que ele defende que fique de fora do texto final, contra a opinião de governistas e promotores. "O trabalho não pode ser coercitivo, nem degradante", diz o senador. "Mas a expressão 'jornada exaustiva' é muito subjetiva. Hora extra é exaustivo? A Justiça vai analisar em que momento uma jornada passa de exaustiva a degradante."
Entre as hipóteses esboçadas de trabalho escravo, estão: "a submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição (...)", "o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador (...)", "a manutenção de vigilância ostensiva ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo (...)" e "a restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida (...)". Uma minuta do projeto foi aprovada no dia 17 e tomou a forma de projeto de lei, em tramitação no Senado. O tucano acredita que a matéria pode ser votada ainda em 2013.
A revolução moral – Evidentemente, a PEC do trabalho escravo não pode sozinha acabar com a exploração. A escravidão é lucrativa para o empregador (32 bilhões de dólares ao ano, segundo a Organização Internacional do Trabalho), e sua isca ainda exerce grande atração sobre populações vulneráveis. Friamente, é uma forma do chamado dumping social. "Não se escravizam pessoas para fazê-las sofrer. É para lucrar. É um crime econômico", recita Bales, em palestras mundo afora. Por isso, tão efetivo quanto a definição — e aplicação — de marcos legais, é a mobilização de empresas para que risquem de sua cadeia produtiva os elos suspeitos. É o que já fizeram 442 companhias brasileiras, incluindo 12 das 20 maiores, ao assinar o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
A causa da abolição é antiga, mas foi só no início do século XIX que virou um imperativo moral. Começou pela Inglaterra, maior potência à época. Ao contrário do que pregam certas cartilhas escolares, não foram os "interesses econômicos" que mobilizaram os britânicos. Embora fosse possível adivinhar os benefícios do trabalho livre, até os mais engajados abolicionistas admitiam prejuízos imediatos. As campanhas foram detonadas justamente quando o preço dos cativos caía e o dos bens por eles produzidos subia. Quer dizer, tanto pelo lado da demanda como pelo da oferta, a escravidão prometia valorizar ainda mais a empresa colonial britânica, como explica o filósofo inglês Kwane Anhtony Appiah em O Código de Honra: Como Ocorrem as Revolução Morais (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Denise Bottmann). Como sentenciou Benjamin Disraeli, o aristocrata que se tornou duas vezes primeiro-ministro da Inglaterra vitoriana: "O movimento da classe média pela abolição da escravatura era virtuoso, mas não era sábio."
Se não pelo dinheiro, o que moveu os abolicionistas? Em sua teoria da honra, Appiah defende que não foram necessários novos argumentos para convencer as pessoas da natureza infame da escravidão. O que inspirou o abolicionismo foram as novas ideias de respeito e honra que então floresciam, na esteira das transformações por que a Europa passava, e a que hoje damos o nome de dignidade. Foi, em resumo, uma revolução moral, que ao longo dos tempos alcançaria praticamente todo o planeta. Claro, onde faltou convicção, valeu a disposição da potência britânica, por meio de leis como o Bill Aberdeen, que em 1845 autorizou a Marinha a interceptar navios negreiros em qualquer ponto do Atlântico.
Um medalhão que os abolicionistas britânicos fizeram circular à época trazia a imagem de um escravo acorrentado, de joelhos, e a inscrição: "Não sou um homem e um irmão?". A peça foi patrocinada pelo magnata Josiah Wedgwood, que fez fortuna com a indústria da cerâmica (em benefício, a propósito, de seu neto famoso, o naturalista Charles Darwin). Diz Appiah que a campanha abolicionista foi também uma chance para os novos ricos demonstrarem orgulho de suas posições cívicas. Wedgwood agarrou-se à oportunidade, como Forrest parece agora fazer, quase dois séculos depois. É possível que, no fim, o investimento seja mais sábio que virtuoso, como especula o biógrafo do magnata australiano. Não importa. Se tiver o condão de riscar a escravidão dos cantos mais escuros do planta, é legítimo que faça o bom nome do filantropo.

Reportagem de Daniel Jelin

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