A Suprema Corte dos EUA entrou na última terça-feira (5/11) na
trama de um "caso especial", com ingredientes que aguçaram a
curiosidade da comunidade jurídica do país: triângulo amoroso, traição,
vingança, omissão policial, investigação dos correios, ação criminal por vias
tortas, intriga, armas químicas, poder excessivo do governo federal, tratados
internacionais, negociações com a Síria, dilemas constitucionais e um dedo
queimado.
O dedo queimado se tornou importante nessa história, que recebeu
ampla cobertura da imprensa americana porque, no final das contas, foi o único
dano físico que resultou do imbróglio — um "crime" que a Polícia da
Pensilvânia sequer quis investigar. Apesar de haver uma história de traição,
vingança e ameaças por trás da denúncia, um dedo queimado não justifica
procedimentos criminais contra a denunciada, entendeu o estado.
Mas inspetores do correio decidiram investigar o caso, porque o
dedo foi queimado na caixa de correspondência da vítima. E por um produto
químico. Os inspetores documentaram a ação da "criminosa" e,
imediatamente, o governo federal interferiu no caso. Processou a autora por
violação do tratado internacional de armas químicas. A intenção do governo era
colocá-la por pelo menos seis anos atrás das grades.
Em 2005, a microbióloga Carol Anne Bond vivia feliz com o marido
Clifford Bond, já há 14 anos, apesar de não poder ter filhos. Tinha um ótimo
relacionamento com sua melhor amiga, Myrlinda Haynes. Ficou feliz — e um pouco
invejosa — quando soube que Myrlinda estava grávida. E furiosa quando
soube que o pai da criança era seu próprio marido. Clifford Bond confessou: os
dois eram amantes há tempos.
No início, Carol Anne se limitou a descarregar sua raiva
verbalmente sobre a ex-melhor amiga. Chegou a ameaçá-la, mas não o suficiente
para ter problemas com a lei. Nem para acalmá-la. Começou, então, a arquitetar
um plano de vingança mais maligno, que executou por vários meses.
Roubou produtos químicos tóxicos da empresa em que trabalhava e
encomendou outros pela internet. Combinou os produtos em pequenas quantidades,
potencialmente letais. A mistura resultou em um produto químico ligeiramente
alaranjado. Colocado em um frasco do tipo "spray", ela borrifou o seu
"agente laranja" na caixa de correio, nas correspondências, nas maçanetas
da porta da casa e da porta do carro da amante do marido.
Mas Myrlinda podia notar aquelas manchas alaranjadas em todos
esses lugares, mesmo à noite. Apenas por falta de cuidado, tocou em uma delas e
queimou o dedo. Decepcionada com a Polícia, que não se interessava pelos
ataques da ex-amiga ferida, denunciou o caso à agência dos correios mais
próxima. O Correio montou um sistema de vigilância 24 horas e documentou a
ação. Flagrou Carol Anne borrifando seu "agente laranja" na caixa do correio
várias vezes.
Nesse ponto, o governo federal decidiu passar por cima do estado
da Pensilvânia, a quem competiria mover uma ação criminal contra Carol Anne, se
tivesse um caso criminal que justificasse levá-la à Justiça. O estado insistia
que era pouco o que tinha.
O governo federal, porém, tinha uma tática mais pesada.
Processou Carol Anne por violação da "Convenção de Armas Químicas (CWC – Chemical
Weapons Convention), um tratado internacional, assinado em 1998
pelos Estados Unidos e por quase todas as nações, que proíbe o uso ou
armazenamento não autorizado de produtos químicos perigosos.
Assim, o caldo engrossou com os elementos que levaram o
melodrama à Suprema Corte. O caso deixou de ser apenas um desfecho estranho de
um triângulo amoroso para se tornar uma intriga entre os interesses de um
estado, que tem apoio de outros estados, e os interesses do governo federal.
Algumas perguntas deixaram, de certa forma, os ministros
intrigados, na primeira audiência. O governo federal pode passar por cima de um
direito constitucional do estado — o de processar seus "criminosos" —
para lhes impor o cumprimento de tratados internacionais? Essa imposição é um
direito constitucional do governo federal? De que lado a Constituição do país
está, afinal? Dispositivos de uma convenção internacional se aplicam a um caso
de triângulo amoroso? Ou a preocupação dos países que a aprovaram era com
guerras e terrorismo?
Dois ex-procuradores gerais de estados alimentaram a intriga,
cada um oferecendo apoio a uma das partes, em um momento em que uma das
discussões mais acirradas no país é sobre a limitação dos poderes excessivos do
governo federal, como observou o jornal The Washington Post.
O ex-procurador Paul Clement, que foi procurador-geral do
ex-presidente Bush e, agora, representa Carol Anne, argumenta que o poder do
tratado não pode sobrepujar a estrutura da Constituição que limita o poder
federal. "Isso viola o princípio fundamental do sistema federalista",
ele declarou.
O ex-procurador John Bellinger, que foi assessor jurídico do ex-presidente
Bush, protocolou uma moção na Suprema Corte, alegando que "um dos
propósitos da Constituição" era o de dar ao governo federal o poder de
assinar tratados e, mais que isso, compelir os estados a cumpri-los.
Clement responde: "a intenção do tratado é impedir o uso de
armas químicas em guerras e ataques terroristas". Estados não se metem em
brigas de marido e mulher — e amante. As leis internacionais veriam esse caso
como "pacífico", ele alega. Isto é, segundo as definições da legislação
internacional de que tudo que não é — ou não parece ser — um ato de guerra, é
pacífico.
O governo federal contesta: o primeiro tratado, de 1920, baniu
apenas o uso de agentes químicos como armas de guerra; mas a convenção de 2003
baniu o armazenamento e o uso de armas químicas para uma variedade de
propósitos.
O procurador-geral da República, Donald Verrilli Jr, que
representou o governo na Justiça, argumentou, para a irritação de alguns
ministros, que a Suprema Corte não pode questionar a intrusão do governo nesse
caso, porque ela está prevista na legislação aprovada pelo Congresso que
regulamentou o tratado.
As três ministras liberais deram indicações de que podem se
alinhar com o governo. A ministra liberal Ruth Bader Ginsburg disse que não há
dúvidas de que o tratado, assinado pelo presidente da República e ratificado
pelo Senado, é constitucional. Seria estranho que a lei que o implementa,
segundo suas diretrizes, fosse declarada inconstitucional.
A ministra Sonia Sotomayor apoiou o argumento de Verilli Jr. de
que os Estados Unidos não terão moral para negociar com a Síria a destruição de
armas químicas se não conseguem punir o seu uso dentro de casa. "Seria
muito irônico, depois de tanta energia que já gastamos criticando a Síria,
declarar inconstitucional a lei que regulamenta no país a Convenção de Armas
Químicas", declarou.
Porém, o ministro liberal Stephen Breyer criticou a lei, dizendo
que ela é muito ampla. "Pode-se dizer que um latão de querosene, uma
batata envenenada, as drogas tomadas pelo ciclista Lance Armstrong, todos são
armas químicas."
O ministro Samuel Alito acrescentou: "Chocolates são como
veneno para cães e, portanto, podem ser considerados produtos tóxicos, de
acordo com essa lei. No Halloween, minha mulher e eu distribuímos muitos
chocolates às crianças. Você poderia nos processar".
Verilli retrucou: "O assunto é sério", mas Alito
continuou: "A maioria das pessoas ficaria pasmada se alguém lhes dissesse
que um procurador-geral da República está processando uma mulher traída e
vingativa de uma cidade pequena da Pensilvânia com base em uma legislação
criada para banir o uso de armas químicas em guerras e ataques terroristas.
O ministro Anthony Kennedy complementou:
"Inacreditável".
Reportagem de João Ozorio de Melo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!