Comunidades indígenas e delegações governamentais dos países do Mercosul estiveram reunidos na última sexta-feira (11) até ontem (12/10), em Ciudad Bolívar, no estado venezuelano de Bolívar, para discutir a implementação de uma instância no bloco que trabalhe com a garantia de direitos dos povos originários. Ontem (12) foi comemorado o "Dia da Resistência Indígena", em alusão ao "Dia da Raça" - termo empregado pela ultradireita espanhola para o "Dia Nacional", também comemorado ontem.
O evento, realizado por iniciativa da Venezuela, contou com dois debates paralelos. De um lado, delegações institucionais analisaram como a instância poderia ser criada no bloco comercial. No outro, representantes indígenas dos países membros e de Estados associados discutiram demandas e diretrizes que deveriam ser incorporadas em âmbito regional.
Até então, o tema era ocasionalmente abordado como um dos tópicos de agenda em reuniões das altas autoridades de direitos humanos do bloco. “É uma novidade, porque o máximo que tinha sido discutido da parte indígena era a oficialização do idioma guarani. Agora queremos ir além, à consolidação de fatos concretos que possam impactar os povos originários”, explicou a ministra venezuelana para os Povos Indígenas, Aloha Núñez.
O grande ausente no evento foi o Paraguai, que não contou com delegações em nenhuma das instâncias. Segundo fontes da chancelaria venezuelana, no entanto, o país foi convidado para todas as atividades. Apesar da ausência de um dos países do bloco, a possível criação de um grupo de discussão permanente para a situação dos povos indígenas e a perspectiva de cooperação para a garantia dos direitos dos mesmos no âmbito do Mercosul geram expectativas.
Representantes dos governos do Brasil, Argentina, Venezuela e Uruguai decidiram dar início a um projeto de decisão para a criação de uma Reunião de Autoridades sobre Povos Indígenas. A proposta será apresentada pela presidência pro-témpore de Caracas na próxima reunião do Gaim (Grupo de Análise Institucional do Mercosul).
Em sua ata final, os representantes indígenas declaram que a dimensão social do bloco "deve ser uma prioridade que gere políticas públicas de caráter regional que protejam e contribuam com a preservação e enaltecimento dos usos costumes e modos de vida dos povos originários".
O grupo também se compromete a executar um plano de ação para estabelecer laços contínuos de cooperação e comunicação para a "inserção efetiva dos povos indígenas na dinâmica integracionista". Como parte da agenda a ser desenvolvida, estão a denúncia de atropelos, terrorismo de Estado e criminalização dos povos originários através de uma plataforma comunicacional, a criação de uma coordenadora dos povos indígenas do Mercosul, a criação de um espaço para intercâmbio em matéria de saúde, e de um congresso anual que será realizado em uma comunidade indígena.
Segundo Felipe Lucena, do gabinete da presidência da Funai (Fundação Nacional do Índio), a iniciativa da Venezuela proporciona o momento ideal para propor discussões como a dos povos indígenas isolados, geralmente transfronteiriços. “Este é um assunto que requer cooperação. Não adianta um país avançar e o outro fazer uma concessão de exploração de madeira, de petróleo, em um território que deveria ser demarcado e protegido”, explica.
O intercâmbio de metodologias e mecanismos para a proteção dos povos originários é outro aspecto considerado por ele como um possível benefício da criação da instância. “Pode haver consenso político em torno de alguns princípios. O Brasil, por mais que tenha avançado em alguns assuntos como a proteção de povos isolados, pode aprender com países da região em áreas nas quais a execução ainda é fraca”, diz.
Entre os exemplos citados por ele, estão a educação bilíngue, a regulamentação das metodologias de consultas a povos indígenas e a inclusão social. “No Brasil, com Belo Monte, por exemplo, que foi uma questão estratégica, os povos indígenas falam que não houve uma consulta, mas sim reuniões informativas, fora dos moldes de uma consulta”, explica.
Demandas indígenas
Na discussão entre representantes indígenas, diversas demandas foram debatidas para a ata final do evento. Entre elas estão a realização anual de um congresso anual em comunidades indígenas, a promoção de políticas de resgate de sementes nativas em contrapartida à atuação de multinacionais, revalorização de valores ancestrais, reivindicação da identidade originária e criação de um museu de arte indígena administrada por povos indígenas, entre outros.
Para Cristopher Millapan, um dos mapuches chilenos que participaram da reunião, o principal benefício da iniciativa da Venezuela é promover a troca de ideias entre indígenas de diferentes nacionalidades, para a troca de experiências de luta e processos reivindicativos. “Pudemos dialogar com os colombianos, por exemplo, sobre a educação, questão importantíssima para nós. A educação intercultural, mais igualitária e mais inclusiva é uma garantia que o Estado tem que nos dar. Esse Mercosul indígena é um encontro dos nossos saberes”, explica.
Para a brasileira Iza Tapuia, do povo Tapuia de Santarém, no Pará, o principal objetivo do encontro é que a instância seja criada e conte com participação direta dos povos originários. “Se sempre nossas discussões forem paralelas [às institucionais], não adianta. O documento que estamos elaborando versa para que se crie este espaço dentro do Mercosul, e com o desenvolvimento dele gerar uma confiança para que aí sim possamos abordar os temas que ninguém quer discutir”, afirma.
“Eu considero que a Venezuela é um exemplo de que não é só criar um espaço, mas que também é preciso considerar que o indígena é o capital social para construir. As coisas acontecem quando você propõe, e com esse debate aumentam as chances de resultados. Ainda há casos de natureza grave, como nos de crimes de direitos humanos contra povos originários no Chile, por exemplo. Para o Brasil, vamos levar a proposta de criação de um ministério de Povos Indígenas, como existe na Venezuela”, explica.
Alguns dos pontos abordados por Iza Tapuia durante os debates foi a binacionalidade para os povos fronteiriços, para que possam aceder a direitos básicos, como atenção médica, em qualquer país da fronteira, e o trabalho acerca do conceito de nação indígena, independentemente das fronteiras geográficas. Uma de suas principais propostas foi o estabelecimento de que os Estados garantam que novas leis ou emendas constitucionais não afetem os direitos indígenas já consagrados em cada país.
A indígena brasileira esclareceu que a necessidade exposta tem como base o caso brasileiro, no qual quatro PEC (Projeto de Emenda Constitucional), segundo ela, “estão afetando diretamente os direitos dos indígenas”. “Isso acontece para atender justamente ao agronegócio e aos donos de terras, porque eles estão contra de nossos interesses”, garante ela, que também propôs que os povos indígenas possam receber atenção médica segundo suas formas ancestrais de cura.
Reportagem de Luciana Taddeo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!