13/06/2013

Relatório ‘perdido’ aponta atrocidades contra índios no Brasil


O extermínio de tribos indígenas inteiras, métodos cruéis de tortura praticados contra índios, principalmente por interessados em suas terras e com o aval do Estado. Essas são práticas detalhadas no documento de sete mil páginas, a que o  iG teve acesso, conhecido como Relatório Figueiredo. O material, que se julgava ter sido destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura, em junho de 1967, foi encontrado recentemente, intacto, no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
As atrocidades relatadas contra a população indígena contaram com o apoio do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão para o interior do País promoviam um verdadeiro massacre da população nativa que resistia ao chamado “avanço da civilização”. O SPI funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O documento leva o nome de seu autor, o procurador Jader de Figueiredo Correia, que morreu em um acidente de ônibus em 1976, aos 53 anos. Os dados revelam que o órgão que seria responsável por proteger os índios das violações deu aval para a violência cometida pelas chamadas “frentes civilizatórias”.  As primeiras informações sobre a existência do relatório foram noticiadas, em abril, pelo jornal O Estado de Minas.
A investigação foi feita a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima. O procurador Jader de Figueiredo percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas.
As páginas do relatório detalham o uso de metralhadoras e dinamites atiradas de aviões nas chamadas “caçadas humanas”. O relatório aponta ainda que, para dizimar tribos indígenas mais isoladas, empresas e agentes públicos distribuíram aos índios açúcar misturado com estricnina, um veneno poderoso usado para matar ratos.
O Estado também foi conivente, de acordo com o documento, com a inoculação proposital do vírus da varíola para dizimar populações inteiras de índios.
Tortura
Pela descrição do procurador Figueiredo, os postos do SPI eram semelhantes a cadeias, equipados com celas ou quartos de tortura. Os índios que discordavam dos chefes dos postos no SPI, de acordo com o documento, eram amarrados como negros escravos nos antigos pelourinhos e chicoteados com “rabo de tatu”, uma espécie de chicote com argola no cabo e duas talas nas pontas. Índios também eram presos em fossas sanitárias.
Uma das formas de tortura detalhadas no relatório era a “técnica do tronco”, descrita da seguinte forma no documento: “Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”. De acordo com o relatório, a prática era comum e muitos índios foram mutilados por essa técnica e alguns morreram. Ao se aproximarem, as estacas acabavam quebrando os tornozelos dos índios.
No caso de crianças, o relatório também aponta torturas. Um menino de 11 anos contou ao procurador que ficou dependurado pelos polegares, uma técnica que acaba esmagando a ponta dos dedos. Essa mesma técnica, de acordo com o documento foi usada no posto Cacique Doble, localizado no Rio Grande do Sul, para torturar o índio Narcizinho, de sete anos, que além de ser pendurado, foi espancado até a morte.
Assim como acontecia com escravos negros, índios também foram comercializados, de acordo com o relatório. O documento relata que uma índia bororó de 11 anos foi dada como pagamento a um operário pela construção de um fogão de barro. O pai da menina, ao reclamar da venda, acabou sofrendo torturas.
Caixa preta
O conteúdo do relatório foi descoberto pelo vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, “Esse material foi parar no Museu do Índio em 2008. De 2008 a 2010, ficou lá, junto com outras 50 caixas que foram recebidas. Curiosamente, as caixas tinham tampas pretas. Era muito curioso isso. E dentro dessas caixas, documentos sensíveis, muitos documentos sensíveis correspondentes a violações de direitos humanos”, comentou.
O documento já está nas mãos da psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade e coordenadora do grupo de trabalho, que apura graves violações de direitos humanos no campo ou contra indígenas no colegiado.
Zelic também ponderou que a análise do Relatório Figueiredo pela comissão é extremamente necessária, visto que os movimentos para abafar as atrocidades contidas no documento ocorreram no auge da ditadura militar, durante o governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). “Ao pesquisar esse período da ditadura a partir da ótica das violações dos direitos indígenas, podemos topar de cara com a importância do Relatório Figueiredo”, observou.
“Todo movimento de abafar, de silenciar a repercussão desse relatório foi feito durante o governo Médici, inclusive chamando e convocando o CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), órgão que funciona até hoje no Estado, a se posicionar dizendo que jamais houve genocídio indígena no Brasil, numa reunião em 1970, convocada, é claro, pelo presidente Médici”, ponderou.
Publicação
Um grupo de senadores, reunidos na Subcomissão da Verdade da Comissão de Direitos Humanos do Senado, quer a publicação do relatório, pelo menos em uma versão compacta, para que a população tenha acesso ao cruel tratamento dispensado pelo Estado brasileiro às populações indígenas. “Revelar a verdade sobre essa tragédia é o primeiro passo para fazer justiça aos índios”, disse a senadora Ana Rita (PT-ES), que é presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado.
“O objetivo da publicação é contribuir para o resgate da verdade histórica. Essas nações indígenas foram duplamente vitimadas. Primeiro, pela ação do Estado e das grandes empresas, que invadiram seus territórios dizimando populações inteiras. Depois, pela violência do esquecimento”, explicou a senadora.
O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) chegou a realizar uma audiência pública sobre o assunto e acha que o Estado tem que assumir a responsabilidade pelo que está relatado em um documento oficial. “É urgente o esclarecimento do que ocorreu, a responsabilização do Estado brasileiro e a indenização devida aos povos indígenas pelos crimes que foram praticados”, disse o senador. “Acho que é importante uma síntese desse relatório para que ele possa ser publicado e, assim, tornado de conhecimento público”, destacou.

Reportagem de Luciana Lima

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