22/05/2013

Pistola impressa em 3D: mais perigosa como ideia do que como arma


O governo americano tomou uma série de medidas para impedir a disseminação da arma 'Liberator' — que pode ser impressa por qualquer um usando uma impressora 3D. A tecnologia disponível, no entanto, não justifica os temores do governo — ainda.


Um arquivo de menos de dois megabytes — capaz de ser armazenado em um velho disquete — é a mais recente ciberameaça ao governo americano. Dentro dele estão contidas informações para qualquer um com acesso a uma impressora 3D fabricar e montar sua própria arma de fogo. Os arquivos contêm a "receita" para imprimir 16 peças de plástico, que incluem cano, gatilho, receptor e cão. Um segundo arquivo, na forma de manual, ensina o usuário a montar a pistola, encaixando as peças uma a uma, como se fosse um brinquedo infantil. "Por fim, deslize o cabo até o quadro e insira o pino de aderência. Sua Liberator está pronta para ser usada!", encerra o manual.
O que assusta o governo americano é o fácil acesso ao arquivo e, por consequência, à arma. Qualquer um, independentemente do estado mental, idade ou antecedentes criminais, pode acessar um site na internet, baixar o arquivo e imprimir as peças. Na era digital, sua circulação ultrapassa fronteiras e ignora impedimentos legais. Movido pela pressão da opinião pública e pelo medo de que as armas caíssem em mãos erradas, o Departamento de Estado americano obrigou os desenvolvedores a retirarem o arquivo do ar menos de quatro dias depois de eles terem sido publicados na internet — mas já era tarde demais.
Nesse meio tempo, ele já havia sido baixado mais de 100.000 vezes em vários países do mundo (com Espanha em primeiro lugar, Estados Unidos em segundo e Brasil em terceiro) e estava disponível em diversos outros sites. Como geralmente acontece na internet, controlar o fluxo da informação se tornou impossível.
Mas a verdade é que impedir a transmissão desses arquivos não deveria ser uma questão de segurança nacional. Como arma, a Liberator é praticamente inofensiva. Ela é frágil e pouco precisa. Seu verdadeiro poder — e isso os próprios desenvolvedores reconhecem — é a ideia que transmite: qualquer um pode imprimir sua própria arma de fogo, sem interferência de qualquer governo.
Download de armas — A pistola foi desenvolvida por Cody Wilson, um americano de 25 anos que estuda direito na Universidade do Texas. Autodeclarado anarquista e libertário, Wilson foi eleito no ano passado pelo site da revista Wired como uma das quinze pessoas mais perigosas do mundo. Tudo porque, em julho, ele fundou a Defense Distributed, uma organização destinada a desenvolver projetos de armas que possam ser fabricadas em impressoras 3D e distribuir a informação pela internet. "Você pode imprimir um dispositivo letal. Pode ser um pouco amedrontador, mas é isso que estamos tentando mostrar. Em qualquer lugar onde houver um computador e uma conexão com a internet, existirá a premissa de uma arma", disse Wilson em uma entrevista para o site da revista Forbes.
Até recentemente, o grupo vinha liberando arquivos para imprimir pedaços de armas, como pentes que aumentavam a capacidade dos fuzis AR-15 e AK-47. Em março, Cody Wilson obteve uma licença do governo federal para fabricar armas de fogo, permitindo que desse o passo seguinte.
Liberator foi a primeira arma da organização — e do mundo — a ser completamente impressa. Para fabricar a primeira versão da pistola, Wilson usou uma impressora industrial, que custa cerca de 8.000 dólares, mas ele diz que já trabalha em projetos para impressoras caseiras, que podem custar um quarto desse preço. Ela possui apenas duas peças que não são impressas, mas muito fáceis de encontrar. Uma delas é um prego comum, que serve para disparar a munição, e a outra é uma pequena barra de metal, para fazer com que arma seja vista em detectores de metal e aceita pela legislação americana. A munição usada, de calibre .380, é uma das mais populares e baratas.
O nome foi baseado em uma arma desenvolvida nos anos 1940 pelo governo dos Estados Unidos. Tosca e capaz de disparar apenas um tiro, a arma foi jogada aos milhares por aviões na França durante a ocupação nazista.  A ideia é que ela funcionasse como um mecanismo de guerra psicológica, fazendo com que os oficiais alemães suspeitassem que qualquer francês pudesse estar armado. Sua principal função — mais do que causar qualquer tipo de dano físico — era o de provocar medo. Tanto que não há notícias de ela tenha sido disparada uma única vez pelos insurgentes franceses.
Reação — Desde as primeiras notícias, o desenvolvimento da nova Liberator também foi acompanhado por reações de medo. Ainda em outubro, a fabricante de impressora 3D Stratasys apreendeu uma das máquinas que havia alugado para a Defense Distributed, depois de descobrir que elas estavam sendo usadas para imprimir armas.
Depois que o arquivo foi liberado para download no dia 4 de maio, uma série de congressistas americanos se pronunciou contra o projeto. O mais proeminente deles foi o democrata Steve Israel, que propôs uma lei impedindo a impressão desse tipo de arma — no que foi imediatamente acompanhado pelo senador Charles Schumer. "Um terrorista, alguém mentalmente doente, um agressor conjugal, um criminoso pode abrir uma fábrica de armas em sua garagem. É preciso acabar com isso", disse Schumer em uma declaração à imprensa.
No dia 9 de maio veio o golpe derradeiro. O Departamento de Estado americano enviou uma carta para a organização exigindo que o arquivo fosse tirado do ar enquanto o governo examinava sua legalidade. Depois disso, até mesmo Kim Dotcom — o empresário excêntrico e hacker milionário —, sempre tão disposto a desafiar as autoridades, tirou o arquivo de seu site de downloads, o Megaupload, com medo das possíveis mortes que a tecnologia poderia causar. O próprio vídeo onde Wilson demonstrava a tecnologia foi retirado do ar pelo Youtube (mas outras pessoas publicaram o vídeo em outros sites, como o Dailymotion)
A arma é o medo — Por mais ameaçador que a arma pareça, tamanho medo ainda não se justifica. O uso da Liberator não é recomendado em nenhum tipo de combate real. Ela é pouco precisa, tornando muito difícil acertar um alvo a média distância. Os desenvolvedores dizem que o cano aguenta disparar cerca de dez tiros antes de ser deformado pelo calor das balas, mas recomendam que ele seja trocado a cada dois disparos — porque é impossível garantir sua resistência. 

O maior perigo é que algum pequeno erro imperceptível na impressão ou na montagem da arma faça com que ela simplesmente exploda na mão do atirador. "Nos Estados Unidos, não é muito difícil — e nem caro — por as mãos em armas de boa qualidade. Não acho que devemos temer a possibilidade de, no futuro próximo, descobrirmos que milhares de pessoas decidiram que o melhor modo de conseguirem armas é imprimindo", diz o advogado Michael Weinberg, especialista em impressão 3D e vice-presidente da Public Knowledge, organização que defende a liberdade na internet e o acesso público ao conhecimento.

Qual seria então a intenção de Cody Wilson ao liberar os arquivos da arma? Segundo Weinberg, simplesmente provar seu ponto de vista. Assim como a Liberator original, a intenção da nova pistola está nas ideias que ela carrega — e no medo que provoca. "A arma que eles desenvolveram é muito mais importante como um símbolo do que é possível fazer do que como um modo de armar rapidamente um grande número de pessoas", diz Weinberg.
Porte de arma — Em suas ideias políticas, Cody Wilson mistura duas correntes de pensamento de idades diferentes. A primeira delas, mais recente, defende a liberdade na internet, a livre troca de arquivos e ideias e o fim de qualquer tipo de censura na rede — inclusive às impressoras 3D. A outra, anterior à própria fundação dos Estados Unidos no século 18, defende que todo cidadão americano tem o direito inalienável de portar uma arma para se defender. "Se nós realmente acreditamos que a informação deva ser livre, que a internet é o último bastião da liberdade e conhecimento, e que as sociedades que compartilham são superiores àquelas que censuram, porque não fazer isso com as armas?", diz a organização em seu website.
Por enquanto, a proibição do governo foi ao encontro aos interesses de Wilson. Ele conseguiu chamar ainda mais atenção ao seu projeto e mostrou que a simples ideia de uma arma impressa desperta preocupações de segurança nacional. Cody Wilson diz em um comunicado que encerrou a fase onde tentava chamar atenção para a nova tecnologia — agora ele vai levar a discussão para a justiça. "Parece que precisamos ter nossos direitos defendidos no tribunal para simplesmente continuar a desenvolver arquivos de armas e colocá-los no domínio público... Achamos que podemos vencer. A Liberator foi uma vitória. A organização servindo quase um milhão de arquivos foi uma vitória. Deixar o Departamento de Estado voltar seus holofotes globais para nós foi uma vitória", escreveu. "A internet foi pressionada a escolher entre as armas e o controle da informação. Adivinhem o que ela escolheu?"
Essa é a primeira discussão de grande repercussão trazida pelas impressoras 3D. A tecnologia evolui em grande velocidade, ganhando cada vez mais versatilidade e popularidade — já estão sendo desenvolvidas versões que custam apenas 500 dólares. Como pode ser usada para imprimir materiais em infinitos formatos — especialistas dizem que é impossível prever como ela será usada no futuro —, esses debates tendem a ser cada vez mais frequentes.
Com o avanço da tecnologia, também é inevitável que em algum momento ela seja capaz de imprimir uma arma realmente funcional. "Nesse caso, apenas pedimos para que os políticos se foquem em suas preocupações reais. Se eles temerem a impressão de armas, que criem leis sobre isso. Mas não tentem atacar as impressoras 3D — eles podem tornar a tecnologia menos útil para as pessoas", diz Michael Weinber. De qualquer forma, não existe mais volta. A Liberatormostrou que é possível imprimir armas. Pessoas em todo o mundo estão baixando os arquivos e trabalhando em modos de avançar a tecnologia, seja para enfatizar ideias ou com intenções mais obscuras. O problema é que, no momento, qualquer ação dos governos se assemelha a querer colocar de volta a pasta de dente dentro do tubo.

Reportagem de Guilherme Rosa


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