Estudos estabelecem relação direta entre a desigualdade social e a incidência de doenças mentais nos desassistidos.
Na Londres do século XIX, Charlie Chaplin viveu uma infância atormentada pela pobreza e a instabilidade familiar. O ícone do cinema mudo perdeu o pai para o alcoolismo e acompanhou o declínio mental da mãe em meio à miséria. Embora evidências recentes sugiram que a “loucura” de Hannah Chaplin tenha sido causada pela sífilis, o comediante registrou em sua autobiografia que os problemas mentais da matriarca, surgiram porque ela passava fome para que os filhos pudessem comer.
Ainda que cientificamente incerto, o caso é um exemplo longínquo da relação entre pobreza e transtornos mentais, estudada ao menos a partir dos anos 1930. Desde então, surgiram pesquisas mais contemporâneas, entre elas uma análise que transplanta essa correlação ao Brasil. Feita em 2013 com dados do Censo do IBGE de 2010, um levantamento da ONG Meu Sonho Não Tem Fim indica que das mais de 2,4 milhões de pessoas com problemas mentais permanentes acima de 10 anos no Brasil, 82,32% são pobres.
Dentro desta proporção, 36,11% não possuíam rendimentos mensais e 46,21% viviam com até um salário mínimo. Outras 15,49% estavam na faixa entre um e cinco salários e apenas 2,19% recebiam acima desse patamar. “É preciso considerar que esses problemas também são causados por aspectos como a genética, mas a falta de uma alimentação mínima pode contribuir para o aparecimento de doenças que afetam o desempenho mental”, afirma Alex Cardoso de Melo, responsável pela pesquisa e idealizador da ONG, focada em trabalhos educativos com populações carentes.
A ideia de traçar a relação entre pobreza e problemas mentais no Brasil, diz Melo, surgiu após a divulgação de um estudo de 2005 de Christopher G. Hudson, Ph.D em politicas de saúde mental. O trabalho analisou dados de 34 mil pacientes com duas ou mais hospitalizações psiquiátricas em Massachusetts, nos Estados Unidos, entre 1994 e 2000. E concluiu que condições econômicas estressantes, como desemprego e impossibilidade pagar o aluguel, levam a doenças mentais. E mais: a prevalência destas enfermidades nas comunidades ricas analisadas foi de 4%, contra 12% nas mais pobres.
Os estudos sobre o tema percorrem as décadas e suas conclusões são similares nestes períodos, descobriu o doutor em Psicologia Fernando Pérez del Río, do projeto Homem de Burgos, na Espanha. No estudo Margens da Psiquiatria: Desigualdade Econômica e Doenças Mentais, ele analisou mais de 20 levantamentos sobre o tema e reuniu as principais conclusões.
Entre elas, está a de que em países desenvolvidos como EUA e Reino Unido existem mais doentes mentais, proporcionalmente, que na Nigéria, Dinamarca, Noruega e Suécia. E que estudos estabelecem uma relação entre o grau interno desigualdade econômica de um país como condicionante direta da saúde mental de seus cidadãos.
Exemplo disso é o estudo The Distribution of the Common Mental Disorders: Social Inequalities in Europe, de 2004. O documento, citado por Del Río, indica que dos 20% da população europeia de baixa renda, 51% possuem algum transtorno mental grave. São pessoas que, devido a suas dificuldades de adaptação social, acabam condenadas a trabalhar em condições precárias e com salários insuficientes, levando a má nutrição e à manutenção do circulo de pobreza e exclusão.
A integração social, por outro lado, é determinante para o acesso dos cidadãos aos seus direitos e a suas expectativas de futuro. “Ser pobre em uma sociedade rica pode ser ainda mais danoso à saúde que o ser em uma área de extrema miséria”, conta Del Rio, a CartaCapital. “É obviamente muito difícil trabalhar a frustração em uma sociedade rica, onde as expectativas são mais altas e se deprecia o fracasso.” Algo que pode ser retratado por um estudo da Organização Mundial da Saúde de 2004, no qual foi identificada a prevalência de 4,3% de transtornos mentais na conturbada Xangai, na China, contra 26,4% nos EUA.
Del Río destaca, em seu estudo, que os problemas de saúde de uma população também estão ligados a forma como a desigualdade de poder econômico e social condiciona as políticas públicas. “As doenças mentais são uma construção social. A desigualdade torna as sociedades mais classistas, o que significa que as origens familiares interferem mais nas posições sociais, o que implica na transmissão intergeracional da pobreza”, diz a CartaCapital.
Sob esse ângulo, revelam os estudos, países com menos diferenças econômicas entre seus habitantes possuem os cidadãos mais sãos. Enquanto nações com políticas neoliberais mais agressivas e individualistas estariam mais sujeitas a problemas mentais por retratar as pessoas necessitadas como “parasitas sociais”. Um cenário que reforçaria ansiedades e os níveis de estresse, favorecendo o aumento destas doenças.
No artigo The Culture of Capitalism, Jonathan Rutherford, docente de Estudos Culturais da Universidade de Middlesex, na Inglaterra, acrescenta que uma sociedade desigual é mais violenta, pois não dá o apoio correto aos seus cidadãos. O que evidencia uma vulnerabilidade capaz de gerar ansiedades. E isso pode piorar com a crise mundial e os cortes de benefícios sociais na Europa, defende Del Río. “Hoje a situação é pior, pois está se produzindo um corte das ajudas, que levam as pessoas a situações limites.”
Reportagem de Gabriel Bonis
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