Nos anos 80, este trecho rural do Estado de Tamil Nadu, no sul, conseguiu a duvidosa distinção de região de maior incidência de "generocídio", ou seja, de homicídio de bebês do sexo feminino na Índia.
Não havia estatísticas oficiais, é claro. Assim como ninguém hoje contabiliza quantos indianos de classe média hoje usam os exames de ultrassom para determinar o sexo do bebê e, então, abortar as meninas, as mortes das crianças na região de Usilampatti, com 85 mil habitantes, eram sussurradas, não contabilizadas.
Muitas vezes, os nascimentos nem eram registrados, conduzidos por uma parteira que também matava as meninas não desejadas. Isso era feito bastante abertamente --e levou Valli Annamalai, diretora do Projeto de Bem-Estar da Mãe e da Criança, parte do Conselho de Bem-Estar da Criança Indiano do Estado de Tamil Nadu, a agir.
Ela começou buscando entender o tamanho do problema. As estatísticas do conselho sugerem que, em 1990, houve até 200 mortes não justificadas de recém-nascidos na região, todos do sexo feminino.
"As meninas eram consideradas um peso e um passivo por aqui", lembrou-se durante recente visita a um centro do conselho na aldeia de Pannaipatti. "A única forma de deter a violência e a discriminação era melhorar as perspectivas econômicas."
Uma forma de promover a situação das mulheres, disse ela, era tomar conta dos bebês e assim permitir que as mães voltassem ao trabalho --a maior parte em plantações nos campos desta região irregularmente fértil, onde as mulheres têm sido a segunda classe há anos.
Em Pannaipatti, o programa tem um centro --uma sala vazia com cartazes velhos com frutas, letras e números pendurados do teto-- desde 1988 (um de três da região). Em certa altura, houve 14 centros com mais de 350 crianças, mas, quando o governo começou a oferecer mais creches, Annamalai desviou a atenção para outros projetos.
Em Pannaipatti, enquanto o sol do meio-dia brilhava recentemente, 22 crianças de 1 a 3 anos estavam sob os cuidados de uma professora e uma assistente treinada. Elas trabalham das 9h às 15h, seis dias por semana, brincando, cantando, contando histórias e garantindo que as crianças comam um almoço de grãos brotados, lentilhas e arroz. As mães, que em geral trabalham nos campos, chegam perto das 15h para pegar as crianças e conversar.
Annamalai, hoje com 62 anos, lembra-se do longo caminho trilhado para conquistar a confiança das mulheres. "Levou um ano para quebrar o gelo", disse ela. O acesso direto às jovens mães por meio das creches ajudou o conselho a entender seus problemas, disse ela.
Em geral, a primeira filha tinha permissão para viver, disse P. Pramil Kumar, 48, funcionária do conselho em Usilampatti. Mas as vidas das filhas subsequentes estavam ameaçadas. Então, "registramos toda gravidez e monitoramos a segunda e terceira gestação, pois eram de alto risco".
Em 1991, enquanto aconselhava os pais a manterem suas filhas, o conselho abriu um centro onde os bebês podiam ser deixados em um berço especial. Um total de 146 bebês, todos do sexo feminino, chegaram de 1991 a 1999.
Membros da equipe médica tinham que estar acessíveis, pois os bebês muitas vezes chegavam com infecções de cortes mal feitos do cordão umbilical e precisavam de monitoramento ou até de hospitalização na cidade próxima de Madurai.
Em 1994, depois de não conseguir salvar uma criança, o conselho começou a recrutar voluntários para os 308 pequenos vilarejos de Usilampatti. "Entendemos que não podíamos estar em toda parte", disse R. Ramraj, responsável pelo desenvolvimento rural do conselho em Usilampatti. "Não apenas tínhamos que criar a consciência, mas também conquistar aliados nas aldeias."
Depois de apenas um mês, um grupo na aldeia de Lingappanayaganur avisou na hora certa os membros do conselho. "Não apenas impedimos o assassinato, mas também conseguimos que a família assinasse os documentos de adoção", disse Ramraj.
Rathinam, que na época era agricultora de 22 anos no vilarejo de Kaluthu, lembra-se da primeira bebê que salvou, na madrugada de um domingo, há 17 anos. Rathinam, que como muitas mulheres aqui usa apenas um nome, chegou justo quando a família se preparava para dar leite envenenado à recém-nascida. Com dois outros voluntários, Rathinam persuadiu a parteira que tinha ajudado no parto a entregar-lhe a criança.
"Pegamos o bebê 10 minutos depois do nascimento, ainda coberto de sangue e com o cordão umbilical enrolado, e fugimos", lembra-se Rathinam.
No caminho para um centro do conselho, os três membros da equipe de resgate compraram leite em uma barraca de chá ao longo da estrada. "Que apetite a pequenina tinha", disse Rathinam. "A forma como ela bebeu o leite, com tanta vontade, me fez pensar que teria tomado o veneno com a mesma voracidade."
Em frente a um barraco perto do centro de Pannaipatti, Mockapillai, 47, que trabalha em construção e tem uma filha e duas netas, resumiu as mudanças em 20 anos. "Não há mais infanticídio nessas partes. Costumávamos pensar que, se matássemos uma bebê, choraríamos apenas por um dia, mas se a bebê sobrevivesse, choraríamos a vida toda. Mas agora, com tantas mulheres e meninas educadas, trabalhando e ganhando bem, nossa postura mudou completamente."
Hoje, há 300 grupos de autoajuda em Usilampatti, com 20 a 25 membros cada um. Eles oferecem empréstimos ou fazem pressão política para obter iluminação pública e fornecimento de água.
"Antes, não podíamos nem administrar cinco rúpias, mas hoje administramos mais de um lakh de rúpias ($ 100 mil rúpias) em poupanças com facilidade", riu-se P. Arul Jyothi, 43, de Meenampatti, falando sobre o aumento de R$ 0,20 para cerca de R$ 4.000.
Ela se casou quando adolescente, mas, depois de ter oito filhos natimortos, seu marido abandonou-a. "Fiquei de cama por anos, deprimida e sozinha", disse ela. Entrar para o grupo "foi como ganhar um novo propósito", disse ela, que hoje lidera o grupo. Ela já pegou empréstimos e pagou-os cinco vezes, investindo em empreendimentos caseiros, como venda de incensos e lenha.
As mulheres hoje comandam respeito em uma região ainda patriarcal. "Meu filho adolescente procura por mim, não o pai, quando precisa de dinheiro para os livros ou para a escola", disse Bharathi, 40, de Poochipatti, que entrou para um grupo de autoajuda em 1998. "Tomo as decisões para minha família hoje e ninguém bota mais um dedo em mim".
Annamalai disse que desde 2001 não há informações de nenhum bebê morto ou abandonado na região.
Levimatteo Mathews, que dirige uma associação italiana de assistência que foi a maior doadora única do conselho em Tamil Nadu, disse que o projeto funcionou "por causa de seu toque pessoal e sua abordagem holística" às necessidades das mães e das crianças. Desde 1993, mais de mil meninas dessa região terminaram o ensino médio com esse patrocínio.
Por contraste, os meninos de 14 anos têm problemas com álcool e drogas. "Talvez", disse Kumar a Annamalai, "seja a hora de focarmos nos meninos".
Reportagem de Kamala Thiagarajan
Tradutor: Deborah Weinberg
fonte:http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2013/03/08/na-india-uma-batalha-para-salvar-bebes-do-sexo-feminino.htm
foto:The New York Times
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