10/02/2013

Na Itália, "ditadura" da austeridade impõe "toque de recolher" para direitos dos trabalhadores

Aumento da idade para se aposentar e passagem do sistema retributivo para o contributivo são algumas das medidas.



A Constituição italiana, em vigor desde 1948, diz em seus primeiros 12 artigos quais são os pilares da República. No 1°, que a Itália é “uma República democrática fundada no trabalho”. À república compete remover os obstáculos de ordem econômica e social que “impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a participação efetiva de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país” (art. 3). Também é reconhecido aos cidadãos “o direito ao trabalho” e se promoverão “as condições que façam valer este direito” (art. 4).
Após a violenta crise econômica que, a partir de 2008, sacudiu a península italiana e o resto da Europa, esses Princípios Fundamentais tornaram-se ainda mais atrasados e praticamente vazios de conteúdo.
Atualmente, a dívida pública italiana ultrapassou os 3 bilhões de euros, isto é, mais de 125% do PIB (Produto Interno Bruto). Dos 60 milhões de italianos, apenas 23 milhões trabalham. Quatro milhões de pessoas não têm ocupação, o equivalente a 10% da população economicamente ativa, e outros quatro milhões têm um trabalho precário que não lhes garante renda durante o ano – sem mencionar a inexistência de direitos trabalhistas mínimos. Trinta e cinco por cento da população desocupada tem menos de 35 anos e, em sua maioria, mulheres.
Os dados publicados pela revista Altreconomia mostram um total de quase oito milhões de pessoas desempregadas ou com empregos precários, mal pagos e por tempo determinado. Além disso, durante o ano de 2012, calculou-se um total de um bilhão de horas de greve forçada, o que equivale a uma média de mil horas para um milhão de pessoas que receberam apenas 60% de seu salário.
Segundo o sociólogo e especialista em assuntos trabalhistas Luciano Gallino, o desemprego é “uma ferida profunda na autoestima de uma pessoa e o maior escândalo para uma sociedade”. De acordo com Roberto Giudici, coordenador da FIOM Milão (Federação de Empregados e Trabalhadores Metalúrgicos), “é uma crise muito extensa, que está afetando todos os setores da economia italiana, e que tem suas raízes no claro predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo, isto é, na 'financeirização' da economia”.


O resultado tem sido dramático e levou ao fechamento de grandes, médias e pequenas empresas, e ao aumento do desemprego e da precarização do trabalho, sobretudo entre os jovens. Além disso, tem demandado novos e mais profundos sacrifícios à maioria das famílias italianas. “Lamentavelmente, esses sacrifícios não estão servindo para reativar a economia, a produção e as inversões, mas para pagar as dívidas dos bancos”, afirmou Giudici.
Em menos de três anos (2008-2011), a dívida pública europeia aumentou 20% e a resposta tem sido o corte no estado de bem-estar social. Em 2012, o gasto social dos entes locais na Itália teve uma diminuição de até 13%, e os cortes se deram, sobretudo, na área dos serviços prestados à população mais desprotegida.
Além da diminuição dos recursos, o que mais preocupa as organizações que trabalham no setor dos serviços sociais é a crise de um desenho político baseado no trinômio direitos-welfare-serviços.
Para Dom Virginio Colmegna, sacerdote e diretor da Fundação Casa della Carità, o que é preciso enfrentar com firmeza é a injusta redistribuição de riqueza que há na Itália. “O risco é que se consolide a velha e nova pobreza em torno de respostas de caráter assistencial, sem atacar estruturalmente o profundo vulnus (lesão) que se criou como produto do vazio da política e o rechaço do capitalismo em redistribuir riqueza”, disse.
Explosão do sistema
Para Pietro Raitano, diretor da Altreconomia, não se trata simplesmente de uma crise que reflete um momento particular da história econômica do mundo, mas da explosão do próprio sistema. “Não apenas uma parte do planeta viveu e consumiu recursos além de suas possibilidades reais, mas o próprio sistema financeiro demonstrou todos seus limites e sua absurdez”. Neste novo século, estamos vendo Estados que emitem títulos para salvar os bancos, e “o peso desse novo endividamento é repassado à população por meio de cortes ao welfare e da perda de direitos”, continuou.
Em vez de investir em inovação tecnológica para aumentar o valor da produção, o grande capital nacional preferiu se concentrar na redução do custo da mão de obra, bem como na fragmentação e pulverização das empresas. É por isso que, entre os efeitos mais nefastos da crise, assinalou Giudici, não são apenas a fim da relação trabalhista ou a adoção de amortecedores sociais, mas acima de tudo “o ataque impiedoso aos direitos históricos da classe trabalhadora”.


“Nas últimas décadas e com o governo Monti, colocou-se em contraposição o trabalho com os direitos adquiridos em tantos anos de luta. Hoje em dia, na Itália, se você quer trabalhar, deve renunciar aos seus direitos trabalhistas”, salientou dirigente sindical.
Também para o professor Gallino, as reformas do mercado de trabalho impulsionadas no início do novo século se focaram na flexibilização e precarização do emprego, supostamente para criar mais postos de trabalho. “Não existe um estudo empírico que prove a relação da flexibilidade trabalhista com o aumento do emprego, antes disso, demonstrou-se o contrário”, explicou o catedrático aAltreconomia.
Segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), o índice de rigidez do emprego na Itália diminuiu muito durante a última década, passando de 3.5 em 2003 para quase 1.8 em 2012, em uma escala de 0 a 5, em que o valor máximo (5) significa quase a impossibilidade de se demitir.
Direitos ou desfeitos?
Entre os direitos trabalhistas históricos que foram fortemente afetados pelas reformas do trabalho, o coordenador da Organização da FIOM-CGIL aponta uma profunda revisão do sistema de aposentadorias com, entre outros, o aumento da idade para se aposentar, a eliminação da aposentadoria por velhice e a passagem do sistema retributivo para o contributivo.
Também se aboliu, para vários setores ou seções, o Convênio Coletivo Nacional; implementaram-se diferentes instrumentos de flexibilidade e precarização trabalhista; e se reformou o artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, que proibia a demissão sem justa causa.
“Na Itália, vem sendo impulsionada com força a ideia de que o trabalho é uma mercadoria e não mais um direito. Com essas reformas, buscou-se o objetivo de pulverizar, dividir e debilitar as organizações sindicais, modificando drasticamente as relações de força entre os trabalhadores organizados e o “capital”, afirmou Giudici.
Para ele, o artigo 1° da Constituição já perdeu seu significado mais profundo porque o trabalho já está em função das exigências do capital. “A Itália se transformou em uma República fundada no trabalho precário”, disse.
Uma situação extremamente grave que se insere no contexto de um país caracterizado pela forte concentração da riqueza, pelos altos índices de evasão fiscal, corrupção e esgotamento de recursos naturais, assim como falta de medidas para tributação das transações financeiras ou de passos firmes para alcançar tratados internacionais sobre os “paraísos fiscais”.
“Há uma crise ecológica mundial e estamos acabando com os recursos naturais. No entanto, seguimos vendo a ganância como motor imprescindível do desenvolvimento do país. Ao endividamento financeiro, estamos respondendo com o endividamento ecológico, isto é, cimentando o território e postergando seus efeitos desastrosos. A crise não é apenas econômica, mas moral e de falta de legitimidade e representatividade da classe política tradicional”, analisou Raitano.
Para Colmegna, é imprescindível focar-se nos direitos de cidadania e em um estado social (welfare) mais justo, necessariamente incluindo no debate político a relação entre ética e finanças, para assim definir os pilares da economia do futuro. “Precisamos de uma cultura antropológica econômica que se meça com o futuro. Para isso, precisamos de uma visão que acabe com o individualismo exasperado do capitalismo e o individualismo orgástico do berlusconismo, que produziu um enorme dano de caráter ético”, opinou o diretor da Casa della Carità.
Uma crise evitável?
Em seu livro A luta de classes depois da luta de classes, Luciano Gallino assegura que a luta de classes hoje é uma luta empreendida desde cima, por parte do grande capital, que nunca abandonou sua luta ideológica. Agora, quer recuperar os privilégios e o poder que havia perdido durante as décadas passadas, produto da luta do movimento trabalhador.
Nesse sentido, a crise que se está vivendo, não apenas na Itália, mas em toda a Europa, é o resultado de uma ideologia muito bem definida que o capital impôs durante as últimas décadas, cujos impactos eram previsíveis.
Uma classe dominante, assegura Gallino, que é a expressão de um poder político e econômico que diz aos 90% da população o que eles devem fazer. “Aqui não é o sistema que está em crise, mas é o próprio sistema capitalista-neoliberal que precisa da crise para se manter e se renovar”, sublinhou o diretor da Altreconomia. Segundo ele, o problema é sair da crise eliminando um sistema que não funciona e no qual “os ricos mantiveram ou aumentaram sua riqueza, os sonegadores continuam evadindo impostos, enquanto que os trabalhadores e suas famílias se afundam na pobreza.”
Um plano que, para Giudici, baseia-se em “receitas” que foram experimentadas “exitosamente”. “As políticas de precarização e terceirização trabalhista que foram impulsionadas na América Latina, por exemplo, são as mesmas que agora estão sendo implementadas na Europa e que nos estão levando em direção ao abismo”, disse Giudici.
Para o dirigente sindical da FIOM, é preciso não apenas voltar a impulsionar uma democratização dos processos e das atividades produtivas, mas principalmente “retomar a autonomia de análise da situação e reativar as relações com o mundo, levando em conta a dimensão mais global desse fenômeno.”
A resposta passa também por uma tomada de consciência do que está ocorrendo de verdade, impulsionando um consumo que aponte para a sustentabilidade ambiental, econômica, e para a solidariedade entre os consumidores, voltando à modalidade cooperativa, cujo objetivo não é o lucro, mas dar trabalho a todos, garantindo o bem-estar dos seus sócios. “É através da decisão de cada dia que podemos começar a mudar este modelo. Devemos analisar e falar do que está acontecendo, pois o silêncio ajuda que essas doutrinas nefastas tenham êxito”, concluiu Raitano.



Reportagem de Giorgio Trucchi
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/27054/na+italia+ditadura+da+austeridade+impoe+toque+de+recolher+para+direitos+dos+trabalhadores.shtml
foto:http://economico.sapo.pt/noticias/crise-em-italia-afecta-coracao-da-zona-euro_132379.html

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