Uma foto do ex-presidente Juscelino Kubitschek em visita a Portugal ilustra com destaque a primeira edição da Revista do Instituto de Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no ano em que a faculdade completa 100 anos de atividades. A imagem é de janeiro de 1963, quando o então senador por Goiás ensaiava nova candidatura à Presidência, projeto abortado pelo golpe militar de 1964. Tanto a foto quanto a revista refletem o grande interesse dos portugueses pela política e, mais recentemente, pelo Direito brasileiro, sobretudo o Direito Constitucional.
A Revista, em formato exclusivamente digital, foi lançada no ano passado, mas já reúne cerca de 250 textos de autores dos dois países, em um intercâmbio de ideias jurídicas, o objetivo maior do IDB. Do lado português, os artigos precisam ser inéditos, exigência que, por enquanto, não atinge os trabalhos produzidos no Brasil. O Instituto de Direito Brasileiro planeja um futuro em que a publicação "se torne predominantemente, se não mesmo exclusivamente, uma publicação de artigos originais sujeitos a peer review", consolidando o papel da RIDB como importante canal para o pensamento jurídico e a doutrina predominante no Brasil e em Portugal.
O primeiro número da revista em 2013 traz 19 artigos, com pequena maioria de autores brasileiros. Entre os temas em destaque, chamam a atenção um instigante estudo sobre ética e "sorte moral", assinado por Fernando Araújo, professor catedrático da centenária Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; uma oportuna radiografia sobre o mestrado e o doutorado jurídico no Brasil, traçada por Celso Fernandes Campilongo; e uma análise comparada sobre a legislação tributária brasileira e nos países da Comunidade Europeia, sustentada por Hugo de Brito Machado Segundo, coordenador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.
A sorte existe
Sorte Moral, Caráter e Tragédia Pessoal é um ensaio filosófico. Fernando Araújo parte da constatação de que inúmeros atos escapam por completo ao controle do agente, condição que colocaria em xeque princípios da ética, da moral e do próprio direito. Se por um lado acreditamos que só é justo louvar ou censurar alguém por ações que lhe sejam imputáveis, por outro, não podemos desconsiderar que há muito de fortuito nos elementos em que baseamos nossa avaliação moral, como sustenta o autor. O problema, adverte, é que "o afastamento da condição do controle, âmago da Ética porque alicerce dos juízos de imputação individualizados, não pode fazer-se sem extensas e graves sequelas — uma delas o ostensivo divórcio da Ética face ao Direito, outra, mais amplamente, a da perda da dimensão normativa da Ética".
A partir dessa encruzilhada, Fernando Araújo discorre sobre as variadas facetas como a sorte se apresenta no "mundo da vida" e de que forma elas interferem no caráter e até na própria identidade do ser humano. O ponto central da questão, segundo ele, reside no fato de os nossos juízos morais violarem rotineiramente a ideia de autonomia moral, ou seja, a ideia de que moral é apenas aquilo que depende em exclusivo da vontade do agente. "Mas essa circunstância também implica que a preservação da ideia de autonomia moral, e da ideia de responsabilidade a ela conexa, se transformem num objetivo separado, dotado da sua própria lógica", afirma.
O jurista português ressalta que uma das "soluções logicamente possíveis" seria o expurgo de toda e qualquer influência da "sorte" nos atos praticados, mas chega à conclusão de que também isso deixaria "incólume o rosto cultural da Ética", além de resultar em efeitos perversos e gritantemente injustos. "A sorte moral pode ter surgido como uma expressão apelativa para designar um paradoxo, uma curiosidade, uma trivialidade, mas veio para ficar, como um daqueles problemas cuja fertilidade advém precisamente de não consentir uma solução aparente ou fácil, um daqueles problemas radicais com fundas ramificações não apenas na Ética como em todas as disciplinas que lhe estão próximas", conclui o jurista português.
Tributo indireto
Mestre e doutor em Direito, com larga experiência na área fiscal, Hugo de Brito Machado Segundo ocupa generosas "páginas" da revista digital com uma questão mais prática, porém não menos polêmica do que a sorte. Em Restituição do Tributo Indireto na Jurisprudência Brasileira: Notas sobre uma Análise Comparada, o professor da Universidade Federal do Ceará critica o fato de os tribunais brasileiros conferirem tratamento "bastante peculiar" à restituição de tributos que considera “indiretos”, tornando-a muito difícil, ou mesmo impossível, em face da exigência de que o contribuinte “prove” não ter repassado o ônus correspondente a terceiros.
No estudo, ele examina a forma como esse mesmo problema surgiu e foi tratado no plano da Comunidade Europeia com o objetivo de oferecer subsídios que permitam que os tribunais brasileiros reflitam um pouco mais sobre o assunto "e corrijam equívocos que há décadas cometem em seu enfrentamento". Para o autor, alguns argumentos desenvolvidos e utilizados no exterior no trato do assunto já haviam sido suscitados por brasileiros com alguma antecedência, sendo a solução encontrada pela Corte Europeia de Justiça, parecida com aquela contida no “anteprojeto” de Código de Processo Tributário elaborado por Gilberto de Ulhôa Canto na década de 1960.
"A principal distinção, no caso, não reside tanto no que os estudiosos da matéria afirmam, mas no posicionamento das Cortes em torno dela", ressalta o autor. "Mesmo na Europa, há diferença perceptível entre o entendimento manifestado por tribunais nacionais e aquele acolhido pela Corte Europeia de Justiça, fruto, talvez, de uma menor subserviência desta ao Poder Tributante de cada país membro, ou de uma preocupação mais evidente na imposição de respeito às normas comunitárias violadas pelos países-membros", compara.
Hugo de Brito explica no estudo que a objeção que o fisco brasileiro coloca à restituição de tributos indiretos parte da premissa de que o tributo indireto é aquele que tem um contribuinte legalmente definido como tal, o chamado “contribuinte de direito” e um contribuinte que suportaria o ônus econômico do tributo, sendo chamado, por isso, “contribuinte de fato”. O repasse aconteceria por meio da fixação dos preços cobrados pelos produtos ou serviços consumidos pelo “contribuinte de fato” e sujeitos à incidência do tributo correspondente. Nesse contexto, ao efetuar o repasse do tributo, o “contribuinte de direito” já se teria ressarcido do ônus e, assim, a restituição ensejaria o seu enriquecimento sem causa. Mas "permitir que o Estado permaneça com a quantia paga a título de tributo indevido implica, por igual, enriquecimento sem causa deste", argumenta.
Ele lembra que a tese defendida pela Fazenda firmou-se na jurisprudência e culminou com a edição da Súmula 71 do STF, que considera indevida a restituição de tributo indireto. Posteriormente, com o reconhecimento de que, em certas hipóteses, tributos considerados “indiretos” não eram repassados a terceiros, o Supremo criou exceções à aplicação da Súmula 71, mas não a cancelou. "Seu conteúdo apenas foi 'esclarecido' pela Súmula 547, segundo a qual cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo.", afirma o autor.
Outra questão que se coloca, de acordo com o professor, é saber quais são os tributos considerados “indiretos”, uma tarefa que nem mesmo o artigo 166 do CTN se arriscou a enumerar. "Teria feito, certamente, se isso fosse possível", arrisca o autor, lembrando que sem uma fundamentação mais detalhada, o STJ considera, atualmente, que tal artigo é aplicável ao ICMS, ao IPI, e ao ISS, este último quando calculado sobre o preço do serviço, e não por número de profissionais.
"Relativamente a tais tributos, o STJ presume que sempre ocorre a repercussão total do tributo e exige do contribuinte dito 'de direito', como condição para lhe reconhecer legitimidade ativa ad causam, a prova de que não houve o repasse do ônus, ou de que o contribuinte 'de fato' o autorizou a pleitear a restituição", analisa o autor. "Como essa prova é praticamente impossível, assim como a identificação e a localização dos contribuintes 'de fato' para que se consiga a tal 'autorização', a restituição do tributo, mesmo indevido, dificilmente acontece".
No texto publicado pela RIDB, o professor da UFC analisa vários precedentes da Corte Europeia no sentido de que, ainda que comprovado o repasse, isso, por si só, não é motivo para que se denegue a restituição ao contribuinte. "Pode subsistir um 'prejuízo' a ser reparado por meio da restituição, pois mesmo que o tributo tenha sido integralmente repassado aos preços, é inegável que um aumento destes leva a uma diminuição das vendas", explica Machado. "Em regra, a restituição é medida que se impõe para reparar o dano causado pelo tributo indevido", conclui.
Mestre profissional
Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Celso Fernandes Campilongo ocupa as páginas digitais da RIDB com um tema bem atual nos dois país. Em Mestrados Profissionais em Direito no Brasil, ele traça uma radiografia da pós-graduação em Direito nas escolas brasileiras, ao mesmo tempo em que se debruça sobre a polêmica implantação de cursos profissionalizantes, realidade em praticamente todas as áreas, mas que só agora começa a ganhar corpo também no ensino jurídico.
O elemento condutor do artigo é a proposta apresentada pela Escola Paulista da Magistratura de criação de um programa de mestrado em gestão judicial em parceria com a USP. O assunto foi discutido pela Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em sua última reunião de 2012. Presente à discussão, Campilongo votou contra a proposta. O texto enviado à RIDB contém a íntegra do voto e os argumentos usados por ele para manter a USP e outras universidades de ponta fora do chamado mercado de mestrados profissionais.
Ele reconhece que o tema é controvertido e que tem sido tratado a partir de posições extremadas e passionais. De um lado, aqueles que entendem que os mestrados profissionais ameaçam o status científico do Direito. De outro lado, os que entendem que tais cursos suprem importante lacuna na formação de quadros, tanto para o setor público quanto para o setor privado. "É preciso especial cautela nessa discussão", recomenda Campilongo, para quem não se pode descartar por completo nem tratar como incompatíveis uma ou outra opção.
Na análise, ele classifica como "promissor" o futuro dos mestrados profissionais em Direito no Brasil, principalmente em áreas de rápido desenvolvimento econômico da última década, como gás e petróleo, Direito Agrário, propriedade intelectual, regulação e concorrência, comércio internacional e a própria gestão de serviços judiciais, entre outras. "Não duvido que, muito rapidamente, mestrados profissionais comecem a ultrapassar, e com folga, tanto em qualidade e consistência teórica quanto em produtividade e inovação, alguns programas acadêmicos que, até agora, pouco contribuíram para o desenvolvimento da pesquisa jurídica no Brasil", afirma. "Mas profissionalização não me parece ser a vocação da universidade."
O professor da USP lembra em sua análise que, até o fim da década de 1990, o Brasil possuía apenas quatro cursos de doutorado em Direito e oito em mestrado. Os números atuais são bem maiores — 79 mestrados e 31 doutorados, nenhum dos quais com a nota máxima (sete) conferida pela CAPES, órgão responsável pela regulação e fiscalização dos cursos de pós-graduação no Brasil. "Pelos critérios da CAPES, sem dúvida, discutíveis, a nota máxima nunca foi alcançada em nossa área", lamenta o professor da USP, ressaltando que os melhores programas, "a duras penas, conseguem obter, quando muito, nota seis". Nesse seleto grupo, além da própria USP, ele relaciona as universidades federais do Paraná e de Santa Catarina, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Unisinos e a PUC-SP
Para ele, a principal tarefa dos reduzidos centros de excelência na área do Direito deveria ser aprimorar a capacidade de produção de pesquisas inovadoras. No caso da USP, ele entende que essa importância é ainda maior. "O que ganharíamos drenando quadros valiosíssimos das atividades de pesquisa para as funções de ensino profissional?", indaga o professor. Para ele, muito mais importante do que criar mestrados profissionalizantes — em essência dedicados a tarefas que cursos de especialização, escolas de magistrados, mestrados com baixa capacidade de pesquisa ou mesmo dificuldades de inserção internacional conseguirão realizar — seria ampliar e consolidar projetos de investigação, inclusive aqueles que tenham por objeto de estudo a magistratura.
Reportagem de Robson Pereira
fonte:http://www.conjur.com.br/2013-jan-15/revista-canal-pensamento-juridico-brasil-portugal
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