16/09/2012

Juristas veem novo rumo no STF, mas evitam falar em jurisprudência no mensalão

Desde o último dia 2 de agosto, as atenções da opinião pública do País estão voltadas ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), onde os ministros da Corte – inicialmente 11, hoje dez em atividade – têm se debruçado sobre a ação penal 470, o processo do mensalão . Após a conclusão do item 4 da denúncia, o terceiro dos sete que serão analisados no julgamento, dez dos 37 réus do mensalão já foram condenados, e três, absolvidos. A partir desta segunda-feira (17), o STF passa a discutir se a engrenagem criminosa foi utilizada para a compra de apoio político no Congresso Nacional ou para o pagamento de caixa 2 eleitoral. De acordo com advogados e juristas ouvidos pela reportagem do iG , ainda é cedo para falar em uma nova jurisprudência para outras ações penais no Brasil, mas a Suprema Corte já emite sinais de que deverá haver, por parte dos agentes públicos, uma maior preocupação na análise de crimes praticados por agentes públicos.
“Em nenhum dos outros grandes crimes contra a administração pública houve condenação, porque sempre se analisavam os casos individualmente”, aponta o jurista Ives Gandra Martins. “Essa individualização faz com que as defesas tenham maior possibilidade de questionar as provas indiciárias, de alegar a necessidade de provas mais robustas (...) A falta de uma prova mais concreta, nesses casos, pode favorecer o réu. Entretanto, de acordo com o entendimento do STF neste julgamento, para os crimes sistêmicos essa visão tem sido diferente.” Ele se refere à decisão do ministro relator, Joaquim Barbosa, de dar um voto fatiado, em blocos – entendimento seguido pelo tribunal, que está votando o processo por núcleos –, em vez de analisar a conduta dos réus individualmente. 

“Em relação à administração pública, isso representa uma concepção diferente. Acredito que o STF não vá mudar o entendimento para os crimes comuns. Mas, nos crimes contra a administração pública, nos crimes sistêmicos, o interesse público estaria prevalecendo”, continua Ives Gandra. “Vamos ver como o STF se comporta nos crimes individuais a partir de agora. Mas a grande diferença deste julgamento em relação a outros é o entendimento dos ministros de que envolve um crime sistêmico. Isso representa não uma nova jurisprudência, porque para chegarmos a essa conclusão ainda precisamos aguardar novos julgamentos, mas pelo menos uma sinalização para crimes contra a administração pública.”
O jurista e ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Wálter Maierovitch também é cauteloso ao falar sobre a possibilidade de se estabelecer uma nova jurisprudência após o julgamento do mensalão. “Acho que é uma questão ainda difícil para a gente falar”, diz.
Um dos fundadores do PT, hoje rompido com o partido, o jurista Hélio Bicudo considera que as decisões tomadas até agora pelo STF nos 23 dias de julgamento constituem um “marco histórico”. “No meu entendimento, a Justiça não tem que ser nem mais nem menos dura. Tem que ser justa. As decisões do STF nesse processo até aqui, sem dúvida, são um marco histórico, principalmente porque é a primeira vez que um caso dessa magnitude é analisado. A meu ver, o que o STF fez é abrir caminho”, aponta.
Julgamento 'fatiado', ato de ofício e outras polêmicas
Entre os temas mais sensíveis deste julgamento no STF, discutidos exaustivamente pelos ministros desde o início das sessões, em agosto, estão as provas indiciárias, a chamada teoria do “domínio do fato” e os atos de ofício. Até aqui, a maioria dos ministros entendeu que os indícios podem ajudar o juiz a formar sua convicção, sobretudo nos crimes do colarinho branco. A tese do “domínio do fato”, também muito evocada durante o julgamento, dá conta de que em vários crimes dessa natureza os maiores beneficiários agem nos bastidores e deixam a execução dos ilícitos para “laranjas”.
Em relação ao ato de ofício, um caso emblemático é o julgamento do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1994, quando o STF o absolveu do crime de corrupção passiva porque não conseguiu se estabelecer um vínculo direto entre o recebimento de um carro Fiat Elba, dado de presente por Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha de Collor à Presidência, e um ato oficial do próprio presidente. É justamente a esta tese que se apegaram advogados de defesa de alguns dos réus do mensalão acusados de corrupção passiva – de que, para a condenação, haveria a necessidade da existência de uma ação realizada pelo agente público, em suas funções, em benefício de quem supostamente o teria corrompido.
“As defesas dos réus foram muito bem feitas no sentido de demonstrar que não houve nexo causal, que foi o entendimento majoritário do STF no caso do Collor. Na ocasião, ele não foi condenado pelo Fiat Elba”, analisa Ives Gandra. Entretanto, o ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha (PT-SP) foi condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e peculato, pois a maioria dos ministros entendeu que os indícios eram tão fortes que dispensavam a necessidade de ato de ofício. Ele foi o primeiro político condenado no mensalão.
Ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça do governo Collor, o jurista Célio Borja discorda da tese da defesa de alguns réus de que a Corte mudou o entendimento na análise do mensalão por conta de pressões da opinião pública ou do componente político envolvido no caso. “A jurisprudência do tribunal em matéria penal é antiga. O que está acontecendo é que os fatos são novos”, afirma. “Não há nada novo. A avaliação da prova testemunhal, e não meramente indiciária, foi apreciada pelo tribunal. E também as provas documentais. O tribunal analisou cuidadosamente as duas coisas. Não é uma mensagem no sentido de que o tribunal é mais rigoroso hoje do que no passado. O que ocorreu nesse caso é que a investigação policial, a investigação parlamentar e a investigação do Ministério Público surtiram efeito. No passado, o que pode ter acontecido é que a acusação não era completa, não era cabal. Hoje, estamos diante de um libelo acusatório exaustivo. É um trabalho bem feito, apenas isso.”
Hélio Bicudo também rechaça as críticas ao julgamento. “O STF está pautando esse julgamento por decisões que já tomou em julgamentos anteriores. Não há qualquer mudança de jurisprudência ou novidade em relação aos fatos analisados”, diz. “Quando a gente fala em prova indiciária, é uma prova como qualquer outra. Isso já está tipificado. A pessoa pode ser condenada quando existem indícios de que praticou um crime. Não precisa ter um documento, algo documentando o ato ilícito. Até aqui, pelo que tenho acompanhado, não vi nenhuma ruptura por parte do STF de qualquer garantia individual a que os réus tenham direito. As coisas estão fluindo normalmente no julgamento.”
Maierovitch, por sua vez, também não acredita que o STF tenha sido influenciado por pressões da opinião pública ou esteja julgando sem isenção, mas afirma que a opção pelo julgamento fatiado “não é o melhor dos critérios”. “Eles optaram por um caminho de blocos e fatias. Não é o melhor dos critérios, mas também não é a primeira vez que o STF faz isso. Existem vários outros casos em que o STF fez isso”, pondera. “Não vejo como um juiz possa decidir fora dos autos, fora da lei, sob pressão. Isso parece mais um direito de espernear ( dos advogados ), o chamado ‘jus sperniandi’, de se justificar para o cliente.”
Não é o que pensa o advogado José Roberto Leal de Carvalho, que defende o ex-ministro da Secretaria de Gestão Estratégica da Presidência da República Luiz Gushiken. Seu cliente, inicialmente acusado por peculato, foi excluído da denúncia pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, por falta de provas, e depois absolvido por unanimidade pelo STF. “Óbvio que houve (influência da opinião pública ). A imprensa criticou o fato de fulano ou beltrano estarem pedindo o adiamento do julgamento para após as eleições. Só que o inverso não é criticado pela imprensa ( a pressa no julgamento )”, afirma Leal, que preferiu não se manifestar especificamente a respeito da análise feita pela Corte sobre o caso de Gushiken. Ele também critica o fatiamento do julgamento, que, em sua visão, prejudica os acusados. “Diminui, sim ( as chances de absolvição ). Eles ( os réus ) foram denunciados individualmente, de acordo com os crimes que lhes foram imputados. O que acontece é que houve uma nova ordem concebida pelo relator ( Joaquim Barbosa ).”
Apesar de dizer que confia na isenção do STF, Wálter Maierovitch faz uma ressalva em relação a dois ministros da Corte, José Antonio Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
“O juiz tem que ter independência e não pode ser parcial. E aí eu já vejo um problema nesse julgamento, pois qualquer um pode ver que há dois juízes que não se enquadram nessa isenção sobre o caso. Eles ( Toffoli e Mendes ) estão visivelmente impedidos de se manifestar com isenção sobre o caso. O que há é a suspeição por parcialidade. Eles podiam se declarar impedidos, mas não o fizeram. Os advogados deveriam buscar alguma coisa nesse sentido, e ninguém fez nada”, afirma o jurista.
Toffoli já foi advogado do PT e assessor jurídico do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, um dos réus do processo. Mendes relatou um encontro com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva , em abril, no escritório do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, em que Lula teria dito que o julgamento do mensalão deveria acontecer somente no ano que vem, longe do período eleitoral. 
Embargos e lentidão
Ainda em relação à condenação dos réus do mensalão, Walter Maierovitch se diz preocupadocom o desenrolar do julgamento a partir da análise sobre o chamado "núcleo político" do mensalão, que começa na segunda-feira. O jurista lembra o caso envolvendo o deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO), condenado pelo STF, em outubro de 2010, a 13 anos e quatro meses de prisão pelos crimes de peculato e formação de quadrilha. Ele foi acusado de participar do desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia entre 1995 e 1998, quando era diretor financeiro da Casa,mas ainda está em liberdade graças aos chamados embargos de declaração apresentados por seus advogados e ainda não analisados pela Corte. Ele alerta para a possibilidade de o mesmo se repetir em relação a réus condenados no mensalão.
“Se tiver quatro votos absolutórios, cabem embargos infringentes. Isso pode envolver um novo julgamento sobre aquele tema e para aquele réu. E aí haveria um novo relator e um novo revisor. O João Paulo Cunha, por exemplo, tem quatro votos absolutórios sobre lavagem de dinheiro”, destaca Maierovitch. “E certamente teríamos mais um longo tempo. E há uma série de outras questões ( que podem atrasar o desfecho do julgamento )”, completa o jurista. Ele cita a aposentadoria do presidente da Corte, ministro Carlos Ayres Britto, que acontecerá em novembro, quando ele completa 70 anos – é o mesmo caso do ministro Cezar Peluso, que se aposentou do STF no último dia 3 de setembro E também a possibilidade de o ministro recém-indicado pela presidenta Dilma Rousseff, Teori Zavascki, que assumirá o lugar de Peluso, de participar do restante do julgamento . Para tanto, teria de pedir vista do processo, já que não conhece os autos.
Hélio Bicudo se diz temeroso quanto ao real cumprimento das penas. “O que eu quero saber é se vai haver prisão ou se haverá a tolerância com os possíveis condenados, como a prisão domiciliar. Todos nós sabemos que no Brasil a prisão domiciliar é uma grande brincadeira”, critica.
Para a nova etapa do julgamento, com a análise das condutas imputadas aos integrantes do  núcleo político do mensalão, a tendência é que os debates sejam mais acirrados, segundo Maierovitch. “O problema é a condenação dos políticos. A questão que vai ser analisada neste momento é: teve o mensalão? Ou seja, o pagamento destinado à compra de votos dos parlamentares? Ou não teve? E a segunda questão é: teve uma organização criminosa comandada pelo José Dirceu?”, questiona. “Acho que ainda é cedo para dizer o que vai acontecer mais adiante. Mas, sem dúvida, o que se viu até agora é uma prova farta e tranquila para levar à condenação. 

Reportagem Fábio Matos
foto:abracrim.adv.br



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