Artigo de Ivone Zeger, advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da
Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança:
Perguntas e Respostas e Família:
Perguntas e Respostas.
Em uma situação ideal, as coisas deveriam ocorrer mais ou menos
assim. Ao propor uma nova lei — ou mudanças em leis já existentes — o
parlamentar deveria, primeiro, sair de seu gabinete e ter contato direto com a
realidade. De que forma essa realidade será afetada pela nova lei? A mudança é
realmente para melhor? Ela atende aos anseios da população? As pessoas que
serão mais afetadas por essa lei foram ouvidas? Suas considerações foram
levadas em conta?
Depois dessa reflexão, o parlamentar se reuniria com uma equipe
técnica para identificar como a nova lei interage com outras já existentes,
seus possíveis desdobramentos a curto, médio e longo prazo e que ajustes
deveriam ser feitos para que ela cumpra a função a que se destina — se não for
pedir demais, a função da nova lei deveria ser melhorar alguma coisa. E, é claro,
espera-se que o fruto de todas essas pesquisas, debates, reflexões e estudos
seja redigido de forma clara e precisa, em bom português. Se, mesmo assim,
alguma coisa não saísse como deveria, ainda haveria oportunidade de conserto.
Afinal, o projeto de lei ou de emenda ainda passará pelo crivo de comissões da
Câmara e do Senado.
Ocorre, porém, que estamos muito longe da situação ideal.
Veja-se, por exemplo, o que está acontecendo com a Emenda Constitucional
66/2010, que permite a realização do divórcio sem a necessidade da separação
prévia. A emenda extinguiu ou não extinguiu a separação judicial? Por incrível
que pareça, essa questão básica que a mudança constitucional deveria responder
não ficou clara na forma como o texto foi redigido. O texto da emenda diz que o
parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal passa a vigorar com a
seguinte redação: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Notem
que o verbo “poder” não indica obrigatoriedade, mas possibilidade. Conclusão:
para alguns juristas, a emenda não extingue a separação judicial, apenas a
torna opcional. Para outros, como a emenda removeu o termo separação judicial
que constava originalmente no parágrafo 6º, entende-se que esse procedimento
foi extinto.
Só para complicar um pouco mais, mudou-se a Constituição, mas
não se mudou o Código Civil. Naturalmente, nossa Carta Magna tem prevalência
sobre o Código. Contudo, é o Código que regulamenta uma série de assuntos que
não cabe à Constituição tratar. Para tentar resolver essa confusão, o Projeto
de Lei 7.661/2010, de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA),
propõe a revogação de todos os artigos do Código Civil que tratam da separação
judicial. Na interpretação do deputado, o instituto da separação judicial foi
extinto no Brasil.
Mas revogar os artigos que tratam da separação judicial é uma
coisa. Regulamentar o divórcio direto é outra. Tudo indica que as dúvidas irão
continuar — e novos projetos de lei irão surgir para tentar esclarecê-las. O
curioso é que esse vaivém, que consome tempo e recursos, poderia ter sido
evitado se a emenda possuísse uma redação mais precisa e se as alterações no
Código Civil tivessem sido feitas concomitantemente.
Se toda essa controvérsia envolvendo a interpretação das duas
linhas de texto que constituem a mudança constitucional pode atrapalhar quem
está se divorciando, outro caso de lei malfeita teve efeitos ainda piores.
Refiro-me à Lei 12.015/2009, cujo objetivo era aumentar a pena do estuprador.
Antes de a lei entrar em vigor, obrigar alguém a praticar os chamados atos
libidinosos (como sexo anal e oral, entre outros) era considerado atentado
violento ao pudor. O estupro só ocorria quando havia conjunção carnal. A nova
lei mudou isso, transformando conjunção carnal e os demais atos libidinosos
forçados num único crime: o de estupro.
A princípio, a mudança parece sensata e necessária — é absurdo
imaginar que um indivíduo que obriga outro a praticar sexo anal, por exemplo,
não seja considerado um estuprador. Entretanto, a grande falha da lei é desconsiderar
a forma como as penas por estupro e atentado ao pudor eram somadas, o que
resultava em penas maiores.
Agora esse recurso não é mais possível. Como tudo isso constitui
o mesmo crime — o de estupro — aplica-se uma única pena.
Os estupradores agradecem. Um importante princípio do Direito
Penal diz que a lei só pode retroagir para beneficiar o réu. Ou seja, se a nova
legislação for benéfica para o condenado, ele pode utilizá-la — mesmo para um
crime cometido antes de sua promulgação. Resultado: os tribunais têm recebido
uma enxurrada de pedidos de revisão criminal e Habeas Corpus da parte de
pessoas que foram condenadas por estupro e atentado violento ao pudor. Elas
alegam que, como a nova lei transformou os dois crimes em um, a pena deve ser
referente a apenas um crime e, portanto, reduzida. A tese tem sido aceita pelos
juízes.
Só para resumir o que eu dizia no início deste artigo, numa
situação ideal, as coisas deveriam ocorrer mais ou menos assim: as leis seriam
feitas para melhorar, e não para bagunçar a vida do cidadão.
Foto:debatesculturais.com.br
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