Artigo do desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia e atual corregedor das Comarcas do interior do estado, Antonio Pessoa Cardoso.
O bom funcionamento da sociedade depende muito do respeito e da obediência que se presta às autoridades públicas, seguindo as regras estatuídas pelas leis.
Se os governantes não respeitam as leis, os juízes não as aplicam com isenção, os militares desafiam seus superiores hierárquicos, enfim se os demandantes de uma ação judicial desrespeitam as decisões judiciais o caos se instala na sociedade e o Judiciário fica limitado a apenas reconhecer o direito do cidadão, sem autoridade para garantir sua execução. Não se pode viver em comunidade, buscando sempre algo somente do agrado pessoal, sem observar o direito do outro.
Assim é que, para a garantia integral de seus direitos o cidadão pode recorrer sempre ao Judiciário que dispõe do poder de decidir, após o que, indispensável o respeito e obediência, sob pena de agigantar a impunidade. Ademais, a legitimidade das instituições situa-se mais nos limites éticos de suas atividades do que mesmo no terreno de sua legalidade.
A ineficiência dos Poderes Legislativo e Executivo, no atendimento aos direitos constitucionalmente garantidos ao cidadão, provocou ampliação de poderes para o Judiciário, que recebeu competência para efetivar a aquisição dos direitos sociais. É a judicialização política do Poder, estampada na Constituição Cidadã. Insurgindo contra essa situação, a Câmara dos Deputados apresenta Proposta de Emenda Constitucional, já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça, permitindo ao Congresso Nacional vetar decisões judiciais. Apesar da absoluta inconstitucionalidade, pela indevida interferência, não causa tanta perplexidade, porquanto os legisladores já conseguiram o privilégio da vedação das liminares contra atos ilegais do Poder Público.
É a abusividade permitida ao Estado para negar ao servidor o direito de receber imediatamente, com a tutela antecipada, os salários cortados com a prática de arbitrariedade!.
Esse não é o caminho para assegurar o pleno funcionamento da democracia, mas significa legalizar procedimento que já vem sendo adotado pelas autoridades públicas, quando desrespeitam as leis e não obedecem às decisões judiciais. A todo o momento, depara-se com atos do Executivo, recusando-se a efetivar pagamentos de precatórios ou de não nomear candidato aprovado em concurso público, o Legislativo que não afasta o deputado das funções consideradas ilegais e o próprio Judiciário que, em seu beneficio, aplica interpretações corporativistas às leis. O acinte, nesses casos, reclama providências e causa preocupações.
Para impedir o desrespeito às decisões judiciais, no campo civil, aplica-se a multa coercitiva, trazida pelos artigos 84 CDC e 461 CPC, destinada a forçar o agente político a cumprir a determinação judicial. Antes desses dispositivos, a Ação Cominatória e a Lei de Ação Civil Pública já contemplavam essa punição, objetivando sempre evitar a transgressão da ordem judicial.
Todavia, a multa mostra-se imprestável e sem nenhum efeito quando aplicada contra a pessoa jurídica do Poder Público, não recaindo sobre o agente político, único responsável pela violação. Nesse caso, o transgressor nada sofre com a punição pelo descumprimento da ordem, mas, ao revés, pode até obter alguma vantagem política. Os posicionamentos de quantos defendem a restrição, ou seja, a penalidade aplicada somente ao ente público, mostra-se incoerente, porquanto se a multa presta-se para vencer a vontade resistente do agente não se sabe como induzirá um ente abstrato a ceder na pretensão de continuar desrespeitando a ordem judicial.
O gestor e, portanto o mandatário não sofre penalidade alguma e não se sente coagido para tomar qualquer providência contrária à sua vontade, apesar de clara violação à lei, na administração do que é público. Daí porque indispensável o direcionamento da penalidade ao administrador, único responsável pelo retardamento da eficácia judicial e único capaz de efetivar o cumprimento da obrigação imposta. E o raciocínio é muito simples: a pena aplicada pelo julgador destina-se a fazer com que alguém cumpra decisão judicial; somente este alguém, pessoa que pensa, sente e pode ser convencida a tomar essa ou aquela posição, somente esse agente político é capaz de imprimir qualquer direcionamento à pessoa jurídica, ente inanimado e, portanto, destituído de vontade para praticar ato, muito menos para intimidar-se com a pena. E tanto é assim, que o magistrado ao aplicar a multa deverá observar o caráter psicológico, social e econômico do agente.
Todos sabem que o bolso é a parte mais sensível do homem, mas o Judiciário insiste em duvidar dessa assertiva, resistindo na aplicação da pena de astreintes a ser paga pelo agente político. Juízes, desembargadores e ministros experimentaram punir o representante do órgão público, responsável maior pelo descumprimento da decisão judicial, mas não há guarida nos Tribunais.
Além disso, outra dificuldade para promover a coerção no cumprimento das ordens judiciais está no entendimento pretoriano de que a cobrança de multa só é possível depois de transitada em julgado a decisão, e, mesmo assim, através da instauração de processo de execução, medidas que provocam maior descrédito do Judiciário, porque morosas.
A interpretação restritiva que os Tribunais oferecem ao parágrafo 5º do artigo 461 CPC, aplicável somente ao réu, porque não anotada também contra terceiro, não se coaduna com a finalidade da multa coercitiva e distancia da interpretação ampla oferecida no mesmo artigo ao parágrafo 4º, quando se estabelece ser a “multa diária”; todavia, nem por isso a doutrina e jurisprudência se atrelam à literalidade e entendem de estender a punição para outra periodicidade, que não a diária fixada na lei.
Portanto, apenas para ser coerente, não se pode impor a interpretação literal e restritiva para um dispositivo, parágrafo 5º, que não traz a possibilidade de aplicação também à terceira pessoa, e extensiva para outro, parágrafo 4º, que inclui a palavra diária, mas nem por isso há aplicação literal, estendendo para outra periodicidade, mesmo sem anotação na lei. A incongruência prossegue na interpretação oferecida para a prisão civil do depositário infiel, terceiro que não restitui a coisa na forma do parágrafo 3º do artigo 666 CPC.
O juiz, mesmo sem ser provocado, pode usar de quaisquer meios necessários para que haja efetiva obediência ao comando judicial. O rol de providências enumeradas no parágrafo 5º do artigo 461 CPC, presta-se apenas para exemplificação, pois outras poderão ser usadas pelo julgador.
A multa deve está carregada de certa violência do Estado para evitar que o infrator jamais tome a opção de vê-la concretizada; daí porque não se entende como admitir sua cobrança somente após o transito em julgado da decisão, mesmo porque a matéria é de ordem processual e não material. Há quem defenda seja a cobrança da multa feita pelo próprio magistrado, de ofício, desde o momento no qual se deu a desobediência, devendo, inclusive, valer-se da penhora online; aliás, isso já ocorre na justiça trabalhista, mas direcionada para os grevistas. A justificativa é de que a medida serve para dar satisfação à sociedade e assegurar a intolerância com o descumprimento da ordem judicial.
Sempre que há uma greve, seguida de interrupção dos serviços públicos, sem retorno ao trabalho mesmo depois de considerado o movimento ilegal, a imprensa fala muito em desobediência civil; é a polícia militar que deixa de comparecer aos seus postos e nega a segurança ao cidadão comum; os rodoviários que não dirigem os ônibus e todos ficam impedidos de exercer sua atividade porque não podem se deslocar; os professores que não dão aulas e os alunos ficam prejudicados no seu currículo escolar; os servidores do Judiciário que não comparecem às suas atividades e deixam a justiça sem funcionar.
Efetivamente, essa prática, em muitos momentos, mostra mais a face cretina e imoral dos governantes do que mesmo o desrespeito às decisões judiciais. A mídia só chama a atenção do desacato à Justiça pelos grevistas, esquecendo-se de que o guardião da legalidade desobedece a legislação, não respeita acordos firmados, deixando para os trabalhadores a única alternativa da greve. E enquanto estes são imediatamente punidos com pesadas multas pagas pelos sindicatos, os governantes não sofrem constrição alguma, porque as penalidades não lhes atingem e o desrespeito à decisão se prolonga até por anos a fio.
A desobediência às decisões judiciais não é obra dos grevistas, como a imprensa costuma alardear. Essa infração é sistemática entre as autoridades do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário, tanto na ordem estadual quanto federal. Na verdade, os governantes defendem o cumprimento irrestrito das decisões judiciais somente quando são beneficiados, mas, se vencidos buscam todos os recursos legais e ilegais para não cumpri-las.
Essa infração situa-se mais nas decisões judiciais de concessão de Mandados de Segurança. O Estado não cumpre, recorrendo até a última instância ou mesmo desrespeitando às decisões que determinam a nomeação de concursado aprovado e que não é nomeado; para integrar funcionário indevidamente exonerado; para pagar salário que, arbitrariamente, foi retirado de folha.
Efetivamente o cidadão comum não compreende tamanha aleivosia aos princípios democráticos, mas tem sido comum no meio das autoridades públicas. O juiz decide e o Estado não cumpre. De nada adianta a permissão legal conferida ao juiz para arbitrar multa, pois esta não se concretiza.
A área tributária é sistemática no descumprimento de decisões judiciais. O desrespeito é tamanho que a própria Receita Federal baixou, em 2008, ato determinando aos auditores o cumprimento de decisões judiciais, “que disponham sobre a compensação de débitos do contribuinte para com a Fazenda Nacional,...”
Há de se encontrar meios para fazer com que os governantes cumpram as decisões judiciais, pois até mesmo o STF é desafiado; recentemente, o ministro Marco Aurélio, no Mandado de Segurança 30.357, determinou ao Presidente da Câmara, Deputado Marcos Maia, (PT-RS), para dar posse ao suplente de deputado, Severino de Souza Silva (PSB-PE), na vaga aberta com o afastamento do deputado Danilo Cabral (PSB-PE). O descumprimento fez com que o relator pedisse providências ao Presidente do STF e ao Procurador-Geral da República, que nada puderam fazer.
Como dissemos em outro trabalho, já se legislou, criando órgãos do Executivo para verificar a implementação das decisões judiciais, ou seja, depois do pronunciamento da justiça, o órgão do executivo é quem dará o posicionamento final de cumprir ou não a liminar, sentença ou acórdão. Trata-se do Decreto 2.839, de 1998 que dispõe sobre o cadastramento, controle e acompanhamento integrado das ações judiciais e seu cumprimento.
Na verdade, trata-se de mais um deboche à ordem constitucional e que agride a dignidade da Justiça. A condicionante instituída no Decreto é perigosa para a própria ordem democrática.
Ao lado da multa, questiona-se sobre a aplicação da prisão do infrator, mas os teóricos fundamentam a impossibilidade de uso dessa coerção e até mesmo a tipificação do crime de desobediência a quem descumpre às ordens judiciais. Alegam que o funcionário público, no exercício de suas funções, não pratica ato que possa ser caracterizado como o crime definido no artigo 330 do Código Penal, apesar de entenderem possível a tipificação do crime de prevaricação, que também não leva a efetiva punição de ninguém.
A Lei 1.079/50 permite o enquadramento do infrator em crime de responsabilidade e até mesmo a intervenção federal, mas são medidas que, na prática, resultam em absolutamente nada.
Os juristas sugerem a criação de um tipo penal especial ou o aumento da pena para o crime de desobediência à ordem judicial, porque punido com apenas 15 dias a seis meses de detenção e multa. Defendem ainda a classificação do crime como de ato de improbidade administrativa, capaz de causar a inelegibilidade do infrator.
A verdade é que o legislador e a jurisprudência não apresentam ferramentas aptas a punir, fundamentalmente, as autoridades pelo descumprimento das decisões judiciais, tornando a situação de impotência do Judiciário, causa do desgaste e descrédito do sistema.
A multa é difícil de ser efetivada e a prisão civil é vedada pela Constituição, porque não há prisão por dívida.
Nos países da common law, o descumprimento às ordens judiciais implica no enquadramento no instituto do contempt of court, que se caracteriza por ser uma ação ofensiva à dignidade da autoridade pública, cabendo ao magistrado o poder de efetivar a prisão civil do infrator.
A figura do inherent powers, instrumento que garante o uso de meios razoáveis para punir a desobediência judicial, assegura autoridade ao Judiciário para tornar efetivas suas decisões, dando credibilidade e segurança ao sistema judicial. As autoridades públicas desses países não se atrevem ao descumprimento de decisões judiciais.
Inspirado nesse instituto anglo-saxônico, a Lei 10.358, de 2001, promoveu alterações no Código de Processo Civil, a exemplo da inclusão do inciso V e do parágrafo único no artigo 14 CPC, para determinar como dever “das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo” o cumprimento das decisões judiciais e a não criação de “embaraços à efetivação de provimentos judiciais de natureza antecipatória ou final”; ou para conceder ao juiz o poder “sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa...”. O parágrafo único do mesmo dispositivo diz que “constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado...” .
Assim, cabe ao juiz, dentre outras penalidades, aplicar a multa para o caso de desobediência às ordens emanadas do Judiciário, mas como já se disse, direcionada ao agente político, único responsável pela infração legal, pois os cofres públicos não devem ser o guardião da irresponsabilidade dos governantes.
Enfim, a imagem que se tem, diante dos inúmeros casos de descumprimento de decisões judiciais, pelos próprios Poderes da República, é de que decisão judicial não se discute, descumpre-se sempre que conveniente ao governante.
fonte:http://www.conjur.com.br/2012-jun-17/decisao-judicial-descumprida-quando-conveniente-governante
foto:portaldacidadania.com.br
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