Um dispositivo único na França permite acolher jovens que se rebelaram. Parabéns França!
Antes, ela morava praticamente ao lado do colégio. Quando saía da classe, podia papear um pouco, embromar. Hoje, mal a aula termina e Shéhérazade (um pseudônimo, para preservar sua identidade) já desliza suas sapatilhas para fora. Ela leva mais de uma hora, de ônibus, para voltar para a “casa de Michel e Béatrice”.
Nessa noite, ela encontra ali Anissa Reguieg, assistente social em Montpellier, que veio fazer uma avaliação com sua família hospedeira. A “casa de Michel e Béatrice” é uma construção escondida no interior do Languedoc. Uma espécie de refúgio para as vítimas de casamentos forçados que, como Shéhérazade, fogem da reprovação, ou até da repressão, de sua própria família. Essa jovem de 19 anos já não fala mais em “minha casa”. Mas, enquanto ela não arruma uma, esse peculiar casal faz questão de lhe oferecer hospedagem e comida. Voluntariamente.
O Dispositivo Família Hospedeira (DFA, sigla em francês) do departamento de Hérault é uma iniciativa única na França. Coordenado pelo braço local do setor de planejamento familiar, ele permite que jovens maiores de idade obrigadas a se casar sejam acolhidas por cidadãos comuns.
Os pilares foram erguidos em 2000, com a criação da Rede Jovens Vítimas de Violência e de Rupturas Familiares. Os parceiros, tanto instituições estatais quanto associações, logo se depararam com o problema da hospedagem de urgência para as jovens maiores de idade. Em 2003, eles publicaram no jornal “La Gazette de Montpellier” um pequeno anúncio para recrutar famílias hospedeiras. Cinco famílias responderam ao apelo.
Béatrice e Michel fazem parte delas, da “equipe do começo”. Ela era feminista, militava na área de planejamento familiar, e via nesse mecanismo a promessa de uma nova forma de engajamento; ele era aposentado, tinha tempo para dedicar aos outros, e a acompanhou com prazer. Os dois juntos garantiram 1,5 mil dias de recepção desde 2004: 18 jovens mulheres passaram por sua casa, em estadias que variaram entre uma semana e sete meses. Shéhérazade é a mais recente.
Em torno da mesa, nessa noite, estão dois de seus cinco filhos. O mais jovem lança vários olhares apaixonados para sua vizinha. Shéhérazade de fato é bonita, com seu esmalte descascando e sua franjinha. Mas não diz palavra. Michel e Béatrice só conhecem sua história por cima. Eles deduziram que ela organizou sua partida, pois chegou com seus documentos e uma pequena mala. E que ela não estava em perigo, pelo menos não mais, uma vez que não ficava enclausurada em seu quarto como outras antes dela.
Mas é preciso esperar penetrar na intimidade de seu quarto para que ela finalmente se abra. Ela conta sobre uma noite de inverno em que sua mãe, cheia de orgulho, clamou: “Vamos organizar para você uma grande festa de casamento no Marrocos!” Ela conta sobre esse homem, o sobrinho de seu padrasto, um tipo já careca que ela viu então pela primeira vez e que estava lá, em sua sala, como em um terreno conquistado. E ela conta sobre seu desgosto: “Pensei em tudo aquilo que seria obrigada a fazer se me casasse com ele. Fiquei com nojo.” Ela solta com raiva as palavras seguintes: “No outro dia, quando meu pai voltou, a coisa esquentou. Ele me disse: ‘Quer ser uma vagabunda? A escolha é sua. Mas não quero mais que os vizinhos vejam você entrando em minha casa. Vá embora!” E ela foi. Com seus documentos e sua malinha.
Ela procurou a assistente social, que a redirecionou para a rede. Foi Anissa Reguieg que a reabilitou, e que a levou, pela primeira vez, para a “casa de Michel e Béatrice”. Nesse dia, tudo mudou, e não somente o tempo que ela leva na condução. Shéhérazade não bate mais papo na saída do colégio porque ela só manteve uma amiga “de antes”: “Senão, de uma maneira ou de outra, meus país vão me encontrar”. Ela trocou o número de seu celular e até esconde a verdade de seu novo namorado, que acredita que ela está em um abrigo em Montpellier: “Quando você começa a mentir, precisa mentir o tempo todo”, garante.
Sobre seu criado-mudo, há um fichário aberto. Depois que terminar a escola técnica na área de saúde, ela quer prestar o bac [exame equivalente ao vestibular na França]. E, todas as noites, ela revisa três páginas do programa. Ela diz que precisa pensar em si mesma, agora. “Tive sorte de cair com uma família como essa”, ela diz, contando que, quando chegou, Béatrice lhe deu, muito solenemente, um sabonete e uma escova de dentes. “Mas meu sonho é ser independente e ter meu próprio apartamento”. Um “minha casa”, em suma.
“O que é complicado é se posicionar em relação a uma adulta”, confirma Béatrice. “Somos famílias hospedeiras sem missão educativa. Mas se não impusermos regras, em breve vamos virar um hotel-restaurante...”
Evidentemente, Shéhérazade não recebe mais um centavo de seus pais. E a rede só paga às famílias pelas refeições. Não o suficiente para que elas possam dar uma mesada. Às vezes, Michel compra cigarros e revistas para elas. “Mas elas não gostam dessa privação”, ele lamenta. O casal foi roubado duas vezes. No DFA, algumas desistiram; outras entraram no lugar. O dispositivo mobilizou oito famílias desde que foi criado. E desde 2007, nada menos que 23 jovens foram abrigadas. Um sucesso.
No entanto, para Michel e Béatrice, tudo isso lhes parece mais com uma improvisação. “Para as famílias hospedeiras do conselho geral que cuidam das menores, tudo é definido. Nós temos de dançar conforme a música”, diz Béatrice. Claro, eles tiveram direito a um treinamento inicial em problemática de casamentos forçados, e são acompanhados por um psicólogo. Anissa Reguieg também acompanha essas famílias do jeito que pode.
Mas isso lhes rende um cotidiano confuso, uma filha ciumenta e um filho que não se atreve mais a sair de seu quarto só de roupas de baixo por correr o risco de cruzar com estranhas: “Tornar-se família hospedeira é nossa escolha, nossa escolha de adultos militantes. Não a de nossos filhos”, diz Béatrice.
Shéhérazade irá embora algum dia. Certamente sem deixar endereço. “Não pedir nada em troca, de maneira geral, faz parte de nossos princípios”, diz Béatrice, sem esconder a emoção. Ela a acompanhará por um tempo na busca de seus objetivos. Um bac, um “minha casa”, e certa confiança no outro. “Eu gostaria de me casar”, garante a jovem. “Tenho certeza de que existem casamentos respeitosos. Não é porque tudo isso aconteceu comigo que preciso me desesperar”.
Reportagem de Marion Guillard para o jornal francês Le Monde
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2011/08/27/na-franca-familias-oferecem-refugio-para-vitimas-de-casamentos-forcados.jhtm
Tradução: Lana Lim
foto:dementia.pt
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