As esferas da dignidade em Hegel
Se, por um lado, não há como deixar de constatar que o conceito kantiano de dignidade repercutiu no pensamento de Hegel, por outro, há que verificar a relevante contribuição deste pensador, notadamente quanto as questões relativas ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana que encontra respaldo predominantemente na família, na sociedade civil e no Estado, este enquanto instituição geral que “possibilita o reconhecimento do sujeito, isto é, a pessoa em sua peculiaridade individual de forma inclusiva em suas necessidades especiais”.
Hegel indubitavelmente avançou, em determinado aspecto, com relação a Kant. Envergando o processo histórico como o “processo de concretização ou realização de idéia da liberdade”, verificou que o reconhecimento, via mediação de vontades livres, é a chave para a concretização da liberdade e indo adiante de Kant concebeu a esfera da eticidade (moralidade objetiva) como o plano em que se dá a “mediação social da liberdade”. E como se dá esse processo de mediação de vontades livres? Hegel apontou um caminho:
“Com efeito, a natureza da humanidade consiste em esforçar-se por alcançar um acordo com os outros, e sua existência reside somente na instituição da comunidade das consciências. O anti-humano, o animal, consiste em permanecer no sentimento e em não poder comunicar-se senão por meio do sentimento”.
Nesse contexto é importante destacar alguns pontos de passagens das idéias hegelianas baseadas em elementos da compreensão kantiana, substancialmente complementadas.
Em uma primeira esfera Hegel enfatizou o reconhecimento da pessoa, isso no plano do direito abstrato. Ante a insuficiência do reconhecimento do homem como ser abstrato, em que se reconhece o outro como “pessoas” (sem quaisquer diferenciações), seguiu para um plano um pouco mais concreto, o plano da moralidade subjetiva, uma conquista da modernidade, em que se reconheceu o homem como ser concreto, como sujeito concreto e distinto em relação aos outros e dotado de peculiaridades.
De outra banda, o reconhecimento do homem em contextos sociais concretos demarca a esfera da moralidade objetiva, quando se concretiza nas instituições da família, da sociedade civil e no Estado.
Examinando as relações humanas no âmbito familiar, afirma-se a família como ponto de partida, como o início, por excelência, da mediação das vontades:
“Ela (a família) é o ‘lugar’ em que se inicia, propriamente, o movimento do processo de mediação e concretização das vontades no contexto social. A pessoa passa a ser considerada como ‘membro’ de uma instituição: uma pequena comunidade ética, que tem hábitos e tradições dentro de uma coletividade maior”.
Longe dos laços de afeto e amor da família e em um contexto marcado pela diversidade, impõe-se na sociedade civil um aprimoramento do processo de mediação social das vontades. Algo fica claro: “o indivíduo não pode realizar-se isoladamente”.
Essa busca de reconhecimento, uma luta permanente dos homens, concretiza-se no Estado, enquanto instituição social que viabiliza a realização da liberdade individual, no plano concreto. Quanto ao problema de uma possível debilitação das liberdades individuais, durante o processo de mediação de vontades particulares, Hegel em sua Filosofia do Direito, segundo Weber traçou parâmetros norteadores para uma conciliação dos interesses particulares e dos interesses coletivos, como objetivo fundamental do Estado:
“A liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares tenham seu total desenvolvimento e o reconhecimento de seu direito (no sistema da família e da sociedade civil), ao mesmo tempo em que se convertem, por si mesmos, em interesse geral, que reconhecem com seu saber e sua vontade como seu próprio substancial e tomam como fim último de sua atividade. Desse modo o universal não se cumpre nem tem validade sem o interesse, o saber e o querer particular, nem o indivíduo vive meramente para estes últimos como uma pessoa privada sem querer ao mesmo tempo o universal e ter uma atividade consciente dessa finalidade".
Para Seelman é com a institucionalização das relações de respeito na sociedade civil e no Estado que se garante a concretização externa daquele reconhecimento ora da pessoa e ora do sujeito, no plano do direito abstrato e da moralidade subjetiva, respectivamente. Destaca o autor ainda que Hegel, em sua obra Filosofia da Religião, foi adiante, tratando especificamente do conceito de dignidade em sentido mais estreito:
“O homem não possui dignidade por meio daquilo que ele é como vontade imediata, mas apenas na medida em que conhece um ser-em-si e um ser-para si, algo substancial, e submete a este ser a sua vontade natural e a adapta a ele. Apenas suprassumir da indomabilidade natural e pelo reconhecimento de que um universal, um ser-em-si e um ser-para-si, seria verdade, ele possui uma dignidade e só então a vida vale algo”.
Em síntese, verifica-se a permanente atualidade da concepção hegeliana no sentido de que o “reconhecimento recíproco é o fundamento da dignidade e ao mesmo tempo, a conseqüência da opção por um estado juridicamente ordenado”.
Uma recusa de reconhecimento da dignidade já foi inclusive vivida pelos homens, notadamente após os horrores da Segunda Guerra. Estas vivência não só reabriram a discussão em torno da dignidade da pessoa humana como colocaram em evidência a importância da experiência humana no próprio reconhecimento da dignidade enquanto parâmetro norteador das ordens estatais.
Vistas as contribuições de Kant e Hegel serão examinadas nos próximos artigos as concepções de dignidade de Ronald Dworkin e de Jürgen Habermas, filósofos da contemporaneidade que seguiram na esteira das vertentes clássicas.
foto: ici.ufba.br
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