Para o cientista político Leon Victor de Queiroz, especialista na relação entre o Legislativo e o Judiciário, o caminho após uma eventual queda do presidente Michel Temer deveria ser o da Constituição, que prevê eleições indiretas, mesmo que a decisão fique na mão de um Congresso com graves problemas de legitimidade. Queiroz, professor-adjunto de Ciência Política da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisador do Praetor, grupo de estudos sobre Poder Judiciário, Política e Sociedade na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), elogia a decisão do STF de discutir se a lei eleitoral de 2015 vale ou não para presidente o quanto antes.
Pergunta. Há um debate jurídico em torno se o TSE pode decidir por eleição direta (seguindo a jurisprudência de governadores) ou usando uma lei de 2015 sobre a qual há uma ação tramitando no STF e que o ministro Barroso acaba de liberar para julgamento. O que acha do cenário?
Resposta. O art. 80 da Constituição federal faz uma distinção entre impedimento (impeachment) e vacância. Ocorrendo uma dessas duas situações, as eleições serão pelo Congresso Nacional. É diferente da cassação da chapa por nulidade dos votos em função de irregularidades (compra de votos, abuso de poder econômico etc.). A regra da Constituição Federal para impedimento ou vacância não obrigava as constituições estaduais e leis orgânicas municipais a seguirem o mesmo procedimento, cabendo a elas regulamentar a matéria. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral foi no sentido de diferenciar irregularidades de campanha das causas de impedimento e das hipótese de vacância. Aconteceu no Maranhão e na Paraíba, onde chapas vencedoras foram cassadas após serem empossadas, e foram convidadas a tomar posse as chapas que ficaram na segunda colocação, desconsiderando o que diziam as constituições estaduais para casos de impedimento e vacância. Para evitar empossar o segundo colocado, dirimindo a controvérsia, a Lei 13.165 (minirreforma eleitoral) incluiu os parágrafos 3 e 4º no art. 224 do Código Eleitoral, determinando eleições diretas para casos em que a maioria dos votos fosse nula. Com uma cassação de chapa, esse cenário se desenha e uma nova eleição é convocada, cabendo eleição indireta (pela Casa Legislativa respectiva) apenas em nos casos em que o trânsito em julgado ocorresse a menos de 6 meses do término do mandato, afastando a figura do segundo colocado, e disciplinando a matéria.
Dito isso, não se deve desconsiderar o fato de a Constituição Federal ter apenas se referido ao Presidente e Vice-presidente da República. É preciso não confundir Presidente da República com Governadores de Estado e Prefeitos. Aquele, além de Chefe de Governo, é o Chefe de Estado. Estes, gestores estaduais e locais. A vacância ocorre quando o cargo está vago. E ele pode ficar vago por morte, renúncia ou cassação do mandato ou chapa. A Constituição, nesse caso, deve prevalecer, mesmo que o TSE casse a chapa. O problema é que o envolvimento de parte do Congresso nos escândalos de corrupção cria um ambiente de desconfiança e de questionamento da legitimidade da eleição indireta. Essa matéria ainda não está definida e é preciso refletir sobre uma eleição direta, cujo momento político pode permitir a projeção de candidatos extremistas com discursos de limpeza moral e/ou de apelo populista, com tendências de by-pass no Congresso. Há uma ação do PSD que pede que a lei de 2015 seja aplicada para presidente e há uma ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da República que questiona justamente esse ponto da minirreforma eleitoral. A liberação da ação para julgamento do STF é bom, porque isso tem que ser discutido uma vez que quanto menor for a incerteza, melhor. Seria complicado cassação da chapa Dilma-Temer e isso seguir indefinido. Quanto mais cedo definirem, melhor.
P. Com a crise, também se discute a possibilidade de uma eleição indiretacom regras pouco claras, até onde se sabe. Será preciso uma lei para regulamentar uma eleição indireta?
R. A legislação realmente não é clara, e não há lei que regulamente a eleição indireta para presidente da república. Diferentemente do que ocorrer para prefeitos e governadores, em que a jurisprudência tem sido no sentido de novas eleições diretas, uma vez que a eleição indireta é prevista apenas para presidente da República, quando ambos os cargos de presidente e de vice ficam vagos, a menos de 2 anos do término do mandato. A Constituição é clara quando fala da eleição indireta dentro de 30 dias. O procedimento eletivo (inscrição dos candidatos, etc.) pode ser resolvido pelo regimento do Congresso.
P. Você vê condições políticas e de opinião pública para que esse Congresso faça uma eventual eleição?
R. Não há nem condições políticas, nem de opinião pública. Mas a questão por trás dessa é outra: Quem é capaz de governar o país, e que não esteja envolvido de algum modo em uma das investigações da Polícia Federal? Quando boa parte dos poderes eleitos está envolvida em corrupção, fica difícil pensar em como alguém de fora do esquema teria condições de governar. É paradoxal, não é uma minoria envolvida, que poderia ser insulada por um presidente probo. Há três grupos no Congresso, um está envolvido nos escândalos, outro não está e um terceiro grupo pode estar, mas a polícia ainda não descobriu. Qual deles é maioria, independentemente de ideologia, capaz de escolher indiretamente um presidente? Essa situação lembra o Teorema da Impossibilidade de Arrow e o Paradoxo do Voto. Se esses três grupos mantiverem preferências intransitivas não teremos decisão.
Já é o segundo presidente em menos de um ano que pode cair por envolvimento em corrupção. Qual a certeza de que o próximo ou próxima não cairá (admitindo que Temer renuncie)? A minha preocupação é a de que a Constituição prevê eleições indiretas para presidente, mas não há mecanismo de eleições gerais. Ou seja, uma pessoa digna e proba terá forças para negociar de maneira lícita com legisladores envolvidos em escândalos? Infelizmente o presidencialismo é um sistema que não lida bem com crises dessa natureza, por ser bastante rígido com relação à manutenção dos mandatos, não prevendo dissolução do parlamento nem novas eleições, antes das previamente estabelecidas.
Uma emenda constitucional prevendo eleições diretas, mesmo a menos de 2 anos do mandato, seria juridicamente viável embora politicamente casuística. Em termos institucionais é danoso mudar a regra do jogo com ele em curso. A eleição indireta é a saída institucional, para não abrir o precedente da mudança das regras ao sabor das circunstâncias.
P. Alguns juristas e analistas criticam a possibilidade de uma PEC pedindo eleições presidenciais ou gerais como algo casuística. O que diz? É a favor?
R. Nesse momento é casuística sim. Mas, passada essa fase, é necessário se pensar em eleições diretas para quaisquer circunstâncias, até porque a jurisprudência do TSE para casos correlatos em Estados e Municípios é o da eleição direta. Neste caso, sou contra. Os parlamentares devem, nesse momento, pensar no conjunto, no país e na nação, e escolher uma pessoa digna, mesmo que isso lhes custe a reeleição ou mesmo o mandato (em caso de serem presos ou cassados). Pode parecer irracional pensarem no coletivo à frente do indivíduo, mas um comportamento egoísta em vez de altruísta pode custar a própria estabilidade política e social do país no curto prazo, o que inviabilizaria satisfações egoístas mais à frente.
P. Há quem acredite que o próprio impeachment da forma como foi feito e pela própria natureza falha da lei já abriu essa caixa de Pandora de mudanças ao sabor das circunstâncias. Já não estamos neste ponto de não retorno?
R. O impeachment foi operacionalizado dentro das regras do jogo. O problema não foi de mudança de interpretação, onde há argumentos de que presidentes anteriores praticaram as mesmas pedaladas que Dilma e nada lhes aconteceu, mas isso foi em função de julgamento político do Congresso e veto do presidente da Câmara. A legislação permite isso, por mais que possa parecer injusto. Como eu já havia dito, a diversidade institucional é grande, e a nossa variação do presidencialismo ideal incorporou uma espécie de voto de confiança travestido de impeachment, tornando presidentes vulneráveis ao Congresso.
P. O que há contra o presidente até agora e que ele admite - reunião secreta com investigado, conversa que é vista como indício de prevaricação, é suficiente para um processo criminal no supremo, e ou, impeachment?
R. É suficiente para abrir processo, o que não significa dizer que é suficiente para condenar. O impeachment pode vir pela via do art. 9º, item 7 "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" da Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950). Em caso de prevaricação, por ser crime comum, o julgamento é no STF, após autorização da Câmara dos Deputados. Entretanto, é prudente a cautela, uma vez que novas denúncias surgem, inclusive sobre a licitude das provas. Cometimento de crime (seja comum ou de responsabilidade) é condição necessária, porém não é suficiente para haver impeachment. Em ambos é necessário que o Presidente da Câmara dos Deputados receba a acusação e instaure a comissão especial que analisará o caso. O atual Presidente da Câmara pode funcionar como um gate keeper da Presidência da República, arquivando os pedidos de impeachment.
P. Acha que Temer tem condições de continuar presidente? Você aposta em debandada da base?
R. Já se mostrou que não há como controlar a Lava Jato. Temer não tem condições de continuar presidente, mas uma debandada da base é complexo de afirmar, pelos efeitos. Um presidente sem o Congresso não governa, e esse é o pior cenário para o país. A base pode se fechar e tentar proteger o presidente em nome da estabilidade econômica e política. O dólar não disparou porque Temer foi flagrado praticando crime, disparou porque não se sabe o que vai acontecer. Quanto mais cedo se responder a essa incerteza, mais rápido se reverte efeitos negativos para a economia.
P. O país entrou em ebulição de novo por causa, num primeiro momento, de um vazamento à imprensa. Os lances midiáticos da Lava Jato parecem ser tão centrais quanto o processo. Esse novo normal não é perigoso?
R. É papel da imprensa investigar, ir atrás, pesquisar, descobrir e expor. O perigoso é as próprias instituições coercitivas fornecerem esse material, escolhendo o que vai a público. Não falo do viés de seletividade (por partido ou grupo político ou ideologia), mas o timing. Não se trata de um mega escândalo, mas uma sequência de mega escândalos. Quem controla o tempo e a intensidade com que isso vem à tona? Uma coisa é o país se chocar de uma única vez e tentar se reconstruir, outra coisa é a cada 6 ou 9 meses o país parar. Essa incerteza passa a sensação de que não há mais saída.
P. Há muitas críticas como as delações são negociadas - apenas pela Procuradoria Geral da República, e sem regras claras de dosimetria (o tamanho das penas de cada caso) e benefícios. Concorda com essas críticas?
R. O direito positivo é bastante rigoroso quanto a regras claras. Entretanto, o que é rígido nem sempre se sustenta. Desde que não fira direitos e garantias fundamentais e demais proteções do rol do art. 5º da Constituição, tendo a concordar em parte, com as negociações feitas pela PGR. O que importa é que o acordo seja publicado e que a negociação (depois de feita e homologada) seja transparente, fazendo com que a PGR possa responder à sociedade e às demais instituições de controle, como o Conselho Nacional do Ministério Público.
P. As delações sugerem que o esquema ilegal jamais se interrompeu. Ponto pros procuradores e moro que defendem as prisões preventivas?
R. Na verdade foram e tem sido vários esquemas em diversas frentes de atuação. Sou um institucionalista e as prisões preventivas tem requisitos específicos. Se eles são satisfeitos, que se prenda. Do contrário, não. O Ministério Público e o Judiciário estão cumprindo com o seu dever, satisfazendo as expectativas da sociedade e mostrando que as instituições de controle funcionam, não como gostaríamos, mas funcionam. Ponto para o país.
P. Mesmo em caso de novas eleições gerais, elas se dariam com base nas regras atuais, antes da reforma política. Seria um erro?
R. Não tem como ser diferente, a reforma política se aprovada agora, só regeria as eleições de 2018. Novas eleições gerais (admitindo que uma PEC mudaria a forma de escolha do presidente em caso de vacância nos dois últimos anos do mandato) neste momento, seriam regidas pelas regras atuais. Há uma crença de que é o sistema que produz o corrupto. Nenhuma reforma política é capaz de fazer com que uma legislatura seja mais honesta ou menos corrupta que a outra. Não é o atual sistema eleitoral que produz corrupção. Ela transpassa o sistema. Quem vende a atuação parlamentar, a venderá, independentemente da forma como foi eleito. Se um parlamentar vende seu mandato, ele venderá em qualquer circunstância, o que irá variar é o preço. As pessoas têm ojeriza à corrupção no setor público, mas são permissivas, omissas e até se beneficiam da corrupção do dia a dia.
Reportagem de Flávia Marreiro
fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/22/politica/1495477278_192827.html
foto:http://blogs.universal.org/bispomacedo/2016/03/18/corrupcao-no-brasil/
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