11/03/2017

Barriga de aluguel: os dilemas éticos e legais de gestar o filho dos outros

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Durante meses, Cristina, de 40 anos, submeteu-se a inúmeros exames médicos. Fez tratamentos hormonais e uma punção no ovário. Tomou comprimidos que lhe provocaram enxaqueca, vômitos e descontrole emocional. Chorava quando lhe diziam, pela enésima vez, que não havia engravidado. Da mulher que em janeiro deu à luz a gêmeos são conhecidos o nome, a idade e a nacionalidade (albanesa). Que é casada e tem dois filhos. “É preciso ter coragem para fazer isso através de outra pessoa. Não sei até onde compensa para essas mulheres... boa vontade devem ter, pois colocam a saúde em risco”, diz Cristina. Só viu a mulher duas vezes. Escolheu ter um contato limitado. Encontrou-se com ela uma vez, num tribunal de Salônica, na Grécia, em fevereiro passado, durante o procedimento estabelecido pela lei deste país para dar início a uma gravidez por substituição (popularmente chamada no Brasil de “barriga de aluguel”). E depois no hospital, quando os bebês nasceram. A mulher albanesa abriu mão de todos os direitos sobre as crianças. Os pais são Cristina e seu marido, David.
A viagem feita pelo casal é realizada todo ano por centenas de espanhóis, que recorrem à barriga de aluguel para ter filhos. Como a prática é ilegal na Espanha, a única opção deles é ir ao exterior. Se tudo dá certo, os casais ficam nas mãos de intermediários confiáveis que, em troca de dinheiro, contratam mulheres, a maioria em países mais pobres, dispostas a se submeterem a tratamentos hormonais para engravidar de bebês com os quais não têm um vínculo genético. E que se comprometem a entregá-los depois do parto. No caminho, entra em ação uma indústria lucrativa e opaca, que opera no limite da legalidade e da ética, capaz de ultrapassar fronteiras e burocracias variadas. Um processo complexo, que se transformou num debate global com duas perguntas centrais. Deve ser regularizado? E de que forma?
Todo ano, pelo menos 20.000 crianças nascem no mundo inteiro com o método da barriga de aluguel, segundo cálculos da ONG suíça International Social Security. Entre 800 e mil são filhos de espanhóis. Esta última cifra é uma mera estimativa feita por associações de pais e agências. Não existem dados oficiais porque a prática é ilegal. Há mais precisão sobre as adoções internacionais na Espanha, que caíram de 5.541 em 2004 para 799 em 2015. Várias razões explicam o fenômeno, inclusive a maior proteção da infância nos países de origem, segundo o Ministério da Saúde da Espanha. Mas se a estimativa sobre os meninos nascidos por doação temporária de útero estiver correta, essa via já supera a da adoção, um caminho que muitos descartam porque o consideram mais longo e tortuoso (são necessários até oito anos para percorrê-lo). Preferem usar um trajeto proibido na Espanha — embora depois seja permitido registrar os bebês como espanhóis, desde que se cumpram certos requisitos. E pagar entre 45.000 e 60.000 euros (entre 148.500 e 198.000 reais), custo médio na Ucrâniae na Rússia, até 120.000 euros (396.000 reais) na Califórnia, um dos 14 estados que permitem a prática nos EUA.
A legislação varia segundo o país. A Ucrânia permite a barriga de aluguel para estrangeiros, mas apenas heterossexuais. Canadá, Reino Unido e Portugal só autorizam a modalidade altruísta — num sentido estrito, não pode haver benefício econômico para a gestante, e só podem ser pagos os gastos extras que ela possa ter — e estes dois últimos países só a permitem a nacionais. A Índia, potência em barriga de aluguel até há pouco tempo, primeiro vetou a opção aos estrangeiros e agora está a ponto de proibir a modalidade comercial.
A exploração também está por trás da decisão tomada pela Tailândia, em 2015, de restringir a prática aos nacionais — após um caso que escandalizou o mundo, conhecido como Baby Grammy. Um casal australiano havia contratado uma tailandesa para gestar seus gêmeos. Quando o casal descobriu que um deles, o menino, tinha síndrome de Down, era tarde para um aborto. Além disso, a gestante se negou a interromper a gravidez. Os australianos decidiram então levar somente a menina ao seu país. Meses depois, soube-se que o pai australiano havia sido preso em 1997 por abuso sexual de crianças.
Embora singular, o caso tailandês é um bom exemplo de tudo o que pode dar errado e de como os direitos das gestantes, e das próprias crianças, podem ficar sujeitos à vontade dos pais que iniciam o processo, das clínicas e dos intermediários, com frequência em países pobres e corruptos. Essa desproteção dá argumentos tanto aos que defendem a regulação como aos partidários da proibição. E o debate voltou a estar em voga na Espanha, após anos soterrado. A brecha entre críticos e defensores é profunda e divide os partidos políticos. No momento, a única proposta é a do Ciudadanos: regular a opção altruísta.
“A solução para que não haja abusos é legislar. É como nos transplantes: ao regular, você evita o tráfico de órgãos”, diz Pedro Fuentes, presidente da associação de pais a favor da barriga de aluguel Son Nuestros Hijos, que agrupa cerca de 400 famílias. Pedro é ginecologista e, junto com seu marido, é pai de um menino de seis anos nascido nos EUA através do método. Ele se emociona ao contar como conheceu a mulher que ficou grávida para eles, a bonita relação que estabeleceram e como ela, que morava com os filhos num chalé com jardim, sabia muito bem que queria fazer isso — e para um casal gay. Pedro considera que a ética deve guiar o processo, mais do que os países onde for feito.
O código da associação recomenda não confiar em “intermediários que não permitam conhecer a gestante, nem naqueles que garantem resultados, nem nos pacotes com os quais você não tem de se preocupar com nada”. Além disso, a mulher precisa já ter sido mãe. O código defende também a modalidade altruísta, mas deixa aberta a possibilidade de uma compensação econômica. “É necessário reconhecer o esforço que isso implica para a gestante. Ela precisa usar outras roupas e perde oportunidade de fazer outras coisas... [A compensação] deveria ser digna o suficiente para não ser um insulto, mas tampouco 100.000 euros (330.000 reais) porque teria o efeito de atrair pessoas em massa. Poderia ser definida por uma comissão nacional”, propõe, questionando: “Se uma mulher é explorada, quando deve ser compensada?”
Para Alicia Miyares, a resposta é clara: sempre. Professora de filosofia, ela é uma das porta-vozes do movimento feminista No Somos Vasijas (Não Somos Recipientes), criado em 2015, quando o debate entrou na política. “Acredito que um dos desejos mais fortes das pessoas é serem pais. Há verdadeiros dramas vitais: mulheres que não têm útero, que tiveram câncer, casos de casais homossexuais... Como não vou entender essa frustração? Mas não se pode colocar os desejos acima dos direitos. O corpo é o limite do que se pode comprar ou vender”, afirma.
A linha entre a opção altruísta e a comercial costuma ser difusa. “Sabemos que os países com essa regulação altruísta não evitam o turismo reprodutivo. É impossível garantir que não existam pagamentos informais”, opina. Para Miyares, é preciso agilizar os processos de adoção, que “permitem constatar a idoneidade da tutela que será concedida. Na barriga de aluguel, os pais não passam por filtros.”
A legisladora socialista Petra de Sutter, especialista em reprodução assistida, redigiu em outubro um relatório para os 47 países do Conselho da Europa sobre gravidez por substituição. No final de outubro, votou-se contra a sua recomendação de criar diretrizes internacionais. Ela defende a necessidade de regular a prática de maneira muito restritiva, permitindo apenas a modalidade altruísta.
“Na Bélgica já temos 20 anos de experiência. Não há fins de lucro, não se aceitam estrangeiros, existem comitês e é necessário cumprir com numerosos critérios. Há situações, por exemplo, em que uma mulher quer ajudar a irmã a gestar o seu bebê”, conta.
A forma comercial da gravidez por substituição perfaz 98% dos casos em todo o mundo. Os EUA são o país mais caro, mas também o que mais garantias oferece. Tudo ali é regulado. No entanto, inclusive num país rico, com um sólido sistema jurídico, grupos feministas denunciam a vulnerabilidade das mulheres. Kelly Martinez, uma padeira norte-americana de 32 anos, deu à luz oito bebês. Três são dela e os outros cinco foram concebidos com barriga de aluguel. “Queria ajudar outras pessoas sabendo que esse milagre acontece graças a mim”, explica pelo telefone. “Nas primeiras vezes, trabalhei com casais fantásticos.”
A terceira e última gestação foi para um casal de espanhóis. Sua voz muda quando relata a história. Tudo estava indo bem, até que os espanhóis descobriram que, “em vez de menino e menina como queriam, eram dois meninos”, diz. “Começaram a me tratar de um jeito diferente. Deixaram de perguntar como estava, então comecei a me preocupar com os bebês. Ainda fico muito triste e me arrependo de ter feito”, afirma. O parto aconteceu antes do previsto. Kelly teve pré-eclâmpsia, uma complicação séria da gravidez. “O médico disse que era preciso tirá-los antes. Do contrário, alguém — os meninos ou eu — não conseguiria sair desta.” Os pais, diz ela, a acusaram de querer acelerar o parto para receber o pagamento antes. “Quando vi como o homem ficou quando soube que eram dois meninos, tive medo de que não os quisessem e não viriam buscá-los. Foi muito duro não saber se os bebês estariam bem. Não tive mais notícia deles.”
No final, os espanhóis levaram os filhos e devem os 10.000 dólares (30.000 reais) que cobradores de dívida têm lhe exigido. Segundo a versão de Kelly, o casal alega uma suposta violação do contrato da parte dela — dizem que Kelly fez uma radiografia sem a sua autorização, algo que ela nega — para não pagar. Quase um ano depois, ela sofre de estresse pós-traumático diagnosticado. Os médicos lhe recomendaram ligadura de trompas devido à dificuldade do parto. “Pensava que estava protegida pelos advogados da agência, mas não”, afirma.
Alguns contratos têm uma linguagem direta e são muito detalhados. Um deles, com 40 páginas, registrado em 2015 na Califórnia e proporcionado por uma ativista, diz o seguinte sobre “a compensação [da gestante] pela perda de um órgão como consequência direta da gravidez”: “Extração das trompas de Falópio e de ovários, 2.500 dólares cada”; “extirpação do útero, 5.000 dólares”. Estipula também que os pais, e não ela, decidem quando dar fim à gravidez se algo der errado; a abstinência sexual da mulher enquanto tenta engravidar; e o compromisso dela em não sair do estado, além de não nadar no mar e não ingerir sacarina, entre outras coisas.
Em outro contrato recente, assinado no México, pode-se ler: “A avaliação psicológica [da mulher] certificou (...) as condições psicológicas pertinentes para não sentir apego pelo embrião que gestará em seu ventre.” A mulher também reconhece que “sua intervenção é unicamente emprestar o útero”.
Kelly entrou em contato com Jennifer Lahl, uma das feministas mais conhecidas por se opor à prática. Presidente do Center for Bioethics and Culture Network, da Califórnia, Lahl é uma das fundadoras da plataforma internacional Stop Surrogacy Now (Pare com a Gravidez por Substituição Agora). No final de outubro, esteve em Madri a convite da fundação de bioética Jérome Lejeune, de perfil católico. O ato onde esteve deixou claro que o tema da barriga de aluguel é capaz de conseguir um acordo entre as feministas e os grupos antiaborto.
Lahl é irônica sobre a possibilidade de regular para evitar abusos. “Sabemos que há um mercado negro de órgãos, redes de tráfico de pessoas... de modo que vamos regulá-los para proteger os indivíduos.” Segundo ela, a modalidade altruísta tampouco é uma opção: “Pense em quantas mulheres querem passar por uma gravidez grátis para um desconhecido.” Cita como exemplo o Canadá, que segue esse modelo e permite compensar os gastos da gravidez, “de forma que todo [tipo de gasto] cai dentro desse conceito”, diz, lembrando que há “muitas brechas jurídicas.” Caso a prática seja feita com familiares, adverte, a situação, como ela constatou nos últimos anos, pode ser “desastrosa”.
O dinheiro que os pais podem gastar é um critério importante na hora de escolher no mapa entre os países que permitem o contrato. As empresas sabem disso. Didac Sánchez, de 24 anos, preside a Subrogalia, uma das firmas que alcançaram maior notoriedade. A sede fica em Barcelona, mas Sánchez diz que responde à entrevista de Kiev, a nova capital da barriga de aluguel, onde quase não existe regulação. “Vou recomendar qual país se adapta melhor ao seu caso. Se você é heterossexual, recomendo um lugar. Se tem HIV, outro. Mas tornarei o seu sonho realidade”, afirma. A empresa tem escritório em vários países e acaba de abrir mercado na Grécia, um nicho atrativo porque está na União Europeia e porque lá um juiz autoriza o início do processo — o que dá mais garantia na hora de estabelecer a filiação. Ele está convencido de que a Grécia será “a alternativa real aos EUA. Por que vou gastar 120.000 se podem ser 65.000?”, justifica.
Além de espanhóis, Sánchez diz ter clientes “italianos, chineses, franceses e alemães”. Sobre a forma em que contrata mulheres que ficam grávidas para terceiros, ele explica: “Na Rússia e na Ucrânia, nós as captamos. Na Ucrânia é permitido fazer propaganda nos jornais. Em vez de colocar um anúncio da Coca-Cola, você bota um de mães gestantes. Na Grécia, existem clínicas que lhe oferecem as mulheres diretamente.”
Cristina e David tiveram sorte. Fizeram todo o processo com a Subrogalia. Mas pelo menos três famílias processaram a empresa por não cumprir o contrato. “Alguns de meus clientes se endividaram até 2030 com créditos para pagar esse processo”, explica a advogada Joana Marín. “Quando chegaram ao México, descobriram que os embriões nem sequer tinham sido enviados da Espanha.”
Outro risco de quem inicia um processo desse tipo é ficar preso num emaranhado de jurisdições e documentos. Não existe nenhum marco legal internacional sobre a gravidez por substituição. Em 2015, o Parlamento Europeu condenou a prática porque “solapa a dignidade das mulheres” e transforma seu corpo em mercadoria. No momento, somente a Conferência de Haia, o organismo multilateral que é referência em direito internacional privado, tem um grupo de especialistas desde 2015 analisando a viabilidade jurídica de estabelecer diretrizes comuns sobre os problemas da filiação dos menores.
Nessa situação incerta está José Borrallo, um funcionário de 43 anos que empreendeu uma batalha judicial para que seu filho, de dois anos e nascido em Tabasco (México), seja reconhecido como espanhol e como seu filho. Borrallo teme deixar o garoto desamparado se lhe acontecer algo. É difícil saber quantas pessoas estão na mesma situação na Espanha. Embora não seja algo propalado, o próprio registro Civil admite que isso acontece “às vezes”. O menino, até o momento, é mexicano.
Como funciona no Brasil
Atualmente, o procedimento no Brasil é conhecido como Doação Temporária de Útero, já que ele só pode ser realizado da maneira altruísta. A legislação brasileira também explicita que o procedimento deve acontecer dentro da família. Uma parente de até segundo grau, como mãe, avó, irmã ou tia, pode se voluntariar para a gestação. Antes disso, porém, a mulher deve passar por uma avaliação psicológica. A fecundação será realizada pelo método in vitro antes de ser implantado no útero. Os casais homossexuais não são beneficiados pela regra.
Como é em outros países
Grécia
Benefício econômico para a gestante (não mais de 33.000 reais)
Famílias heterossexuais e mulheres solteiras com menos de 50 anos
Os estrangeiros podem alugar barriga
Geórgia
Benefício econômico para a gestante
Famílias heterossexuais
Os estrangeiros podem alugar barriga
Rússia
Benefício econômico para a gestante
Famílias heterossexuais
Os estrangeiros podem alugar barriga

Reportagem de Silvia Blanco
fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/17/internacional/1487346402_358963.html
foto:https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26557025/barriga-de-aluguel

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