A transferência compulsória dos 744 mil usuários da Unimed Paulistana para outras operadoras, decretada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na manhã de 2 de setembro, pegou desprevenidos milhares deles, principalmente aqueles em tratamento médico, com indicação cirúrgica e gestantes. A comerciante Evelyn Casolato Felipe, 28 anos, grávida de 36 semanas do primeiro filho, fazia pré-natal pela Unimed Guarulhos, que atendia a clientes da Paulistana. O atendimento foi suspenso.
“Não estão atendendo consultas nem exames. Procurei a maternidade da Unimed Guarulhos e informaram que serei atendida só se o parto for de urgência, e com médico plantonista. Procurei o hospital Santa Helena (na capital paulista), da Unimed Paulistana. Está sobrecarregado”, diz. “Na ANS me disseram que não há negativa de atendimento na rede em São Paulo e que a de Guarulhos não tem obrigação de me atender. Meu medo é não ter onde fazer o parto. Será que os outros planos vão realmente me aceitar?” O temor faz sentido. A mãe de Evelyn estava grávida quando a Golden Cross enfrentou crise no final dos anos 1990. “Minha irmã nasceu em um hospital público em São Miguel Paulista apesar de pagarmos convênio particular. E agora a história parece se repetir”, relata.
No mesmo 2 de setembro em que a ANS escancarou a situação da Unimed Paulistana, a dona de casa Vania Nogueira, do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, recebeu um telefonema do hospital Central Towers, onde seria submetida a cirurgia bariátrica autorizada um mês antes. A cirurgia para a qual ela se preparava havia cinco meses seria realizada dali a alguns dias, mas foi cancelada. “Fiquei arrasada. Durante uma semana só chorava e mal dormia. Passei a viver em função de uma solução para o meu caso”, conta, com inúmeros protocolos do serviço de atendimento da própria Unimed Paulistana, da Fundação Procon de São Paulo e da ANS.
Até o final de setembro, Vania não obteve resposta. Entrou na Justiça com pedido de liminar para a realização da cirurgia. E mesmo que a decisão seja favorável, seu médico não deverá operá-la. De tudo que ouviu dos serviços ao consumidor, causou revolta o atendimento da ANS, de que teria de esperar porque seu caso não era de urgência. “Há 13 anos luto para melhorar a minha saúde. Tenho problemas de coluna, IMC (índice de massa corporal) elevado e corro risco de doença cardíaca. A cirurgia foi recomendada porque outros tratamentos falharam. Nesses meses, gastei dinheiro com psicóloga e nutricionista e mobilizei familiares para virem cuidar do meu filho enquanto me recupero. A ANS não regula os planos e agora é essa a resposta que tem?”, desabafa.
Vania faz parte de um grupo em uma rede social em que mais de 20 mulheres compartilham as angústias e frustrações de um sonho que virou pesadelo. “Quem vai pagar por isso?” Para completar, seu plano é familiar por adesão, contratado há 16 anos. Nele estão incluídos o pai, de 77 anos, a mãe, de 78 – que a cada dez anos tem de trocar uma válvula no coração –, e o filho de 1 ano e 3 meses. O custo total mensal é de R$ 1.700. Porém, recebeu da administradora Qualicorp a proposta de um plano ligeiramente inferior e bem mais caro: R$ 2.400. “Não tem como pagar para todos. Deveremos manter minha mãe, que já passou por quatro cirurgias cardíacas. E iremos para o SUS”, diz Vania.
Anomalia
De acordo com a ANS, a transferência obrigatória da carteira de clientes, tecnicamente chamada de alienação compulsória, foi determinada para garantir o atendimento aos usuários da Unimed Paulistana. Segundo a agência, desde 2009 foram instaurados quatro regimes especiais de direção fiscal e dois de direção técnica, espécie de intervenção, por causa dos persistentes problemas administrativos e financeiros que foram levando hospitais, clínicas e laboratórios conveniados a suspender o atendimento. O aumento do número de reclamações resultou na proibição da venda de várias modalidades de planos da operadora. Em 2013, foi imposto um programa de recuperação financeira da ordem de R$ 64 milhões. Em uma assembleia suspeita de irregularidades, foi criado um fundo cobrando dos médicos cooperados e diretores contribuições desproporcionais. Mais de 300 médicos entraram com ações, que ainda tramitam na Justiça, questionando a legalidade do fundo.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) entende que as medidas foram insuficientes para proteger o consumidor. Para a advogada e pesquisadora do órgão, Joana Cruz, o processo de alienação compulsória – ou quebra, como diz – já deveria ter sido aberto quando os problemas se agravaram. “A portabilidade para outros planos, sem carência, poderia ser feita antes, com mais tranquilidade. Por que fazer todo mundo esperar?”, questiona.
Mais do que expor a doença crônica da maior cooperativa de serviços médicos do país, o episódio evidenciou a saúde frágil de uma agência reguladora criada em janeiro de 2000 para estabelecer normas, controlar e fiscalizar o setor em defesa do interesse público. Entre outras atividades, cabe à ANS criar critérios para a concessão, manutenção e cancelamento de funcionamento de empresas do setor, monitorar e controlar o acesso e qualidade dos serviços e a evolução dos preços, além de critérios para garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos planos e, se for o caso, liquidar extrajudicialmente a operadora, requerendo sua falência ou insolvência. Isso tudo para que as pessoas que pagam pela saúde privada tenham, no mínimo, consultas, exames, cirurgias, tratamento e ações preventivas.
Um dos mais graves males que acomete a agência é o desrespeito às leis. Segundo Joana Cruz, há descumprimento da Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde) e do Código de Defesa do Consumidor, que obrigam a cobertura integral à saúde do cliente. “Em vez de cobrar, a ANS criou uma lista de procedimentos de cobertura obrigatória, editada bem depois dessas legislações, que deixa de fora a maioria dos direitos assegurados em lei. Só isso já configura a regulação ilegal da agência”, afirma.
A ANS afronta a Justiça também ao ignorar as determinações dos juízes. Processos movidos por consumidores por negativa de atendimento normalmente são acolhidos pelos magistrados, confirmando esse direito à cobertura integral. “São decisões que já estão sumuladas, reiterando o entendimento dos tribunais quanto a essa obrigação dos planos de cobrir todos os exames e procedimentos, e não apenas aqueles mais baratos ou que dão lucro”, diz. “Diante da complacência da agência reguladora, os planos seguem descumprindo a lei e não cobrem os que não interessam economicamente.”
A advogada do Idec assinala ainda como anomalia um dogma criado pela ANS, sem base legal, de que está fora das suas responsabilidades a regulação de reajustes de planos coletivos empresariais ou por adesão, que acabam sendo negociados entre as partes, sem critérios objetivos. “A agência entende que este papel não consta da lei que a criou, numa interpretação em desacordo com outros princípios de eficiência, transparência e moralidade de uma agência reguladora que não regula 80% do mercado de plano de saúde e se limita a monitorar. Acompanha, fica sabendo qual foi o novo valor e não interfere, quando deveria estabelecer um teto para os reajustes.”
Joana destaca ainda que os bancos de dados da Justiça mostram casos de reajustes altíssimos, com índices de até 100%. Outros, menos frequentes, são de consumidores que apelam contra planos que rescindiram seus contratos, à revelia, em momentos em que mais precisam, como durante uma internação ou mesmo cirurgia, quando passam a representar prejuízo. “Sem respaldo da agência, o consumidor vai à Justiça, que dá ganho de causa. E mesmo assim a ANS não muda sua conduta. Pelo contrário. Assinou cooperação com o Tribunal de Justiça de São Paulo para dar pareceres técnicos aos juízes.”
Conflitos de interesse
A professora Ligia Bahia, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entende que a ANS até que adota medidas regulatórias e de controle. Porém, ex-post facto. “Ou seja, só depois que o caldo entornou, que a empresa está insolvente, é punida pela fiscalização com ações de proteção aos seus clientes.” No entanto, deixa de lado funções primordiais, como a produção e difusão de informações sobre coberturas e preços, assegurando que o mercado seja de fato competitivo. “Isso acontece por razões diversas e complexas, da confusão entre público e privado, mercado e Estado, capitalismo e saúde pública. A ANS foi moldada como uma instituição ambígua, ora se comporta como mercado, ora como Estado, como se a ambiguidade fosse uma defesa, um ponto de apoio e não um problema em si.”
É a famosa porta giratória da ANS, expressão que define a presença de executivos das empresas de planos de saúde ou profissionais que prestam serviços às empresas reguladas na direção da agência – a raposa tomando conta do galinheiro. Eles saem do mercado para a agência e findo o mandato, para lá voltam.
O caso mais conhecido é o do advogado Elano Figueiredo, que renunciou ao cargo em outubro de 2013, dois meses depois de tomar posse. Entidades como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Idec, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres) denunciaram que por dez anos ele foi diretor jurídico da operadora de saúde privada HapVida, que atua no Nordeste, além de advogado da Unimed de Mossoró (RN), tendo assinado diversas ações contra a ANS. A Comissão de Ética da Presidência da República recomendou a destituição de Figueiredo por ter omitido tais informações de seu currículo, e não por ter essas ligações com o mercado.
O atual diretor-presidente e diretor de Normas e Habilitação de Produtos, o médico José Carlos de Souza Abrahão, teve sua indicação pela Presidência da República, e sua aprovação pelo Senado, repudiadas. Para as entidades de saúde, ficou claro o conflito de interesses, que coloca em risco os princípios éticos e do interesse público. Abrahão presidiu a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS), entidade sindical que representa estabelecimentos de serviços de saúde no país. E comandou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da CNS contra a obrigação de ressarcimento ao SUS pelas operadoras, conforme determina a Lei de Planos de Saúde. Abrahão chegou a se manifestar publicamente contra o ressarcimento, mas foi mantido no cargo da agência vinculada ao Ministério da Saúde.
Outro exemplo é o médico Maurício Ceschin, diretor-presidente da ANS entre 2009 e 2012, que dirigiu a Medial Saúde (hoje Amil) e o Hospital Sírio-Libanês. Foi ainda vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) e entre 2008 e 2009 presidiu o Grupo Qualicorp, maior administradora de planos de saúde do país.
“O calote dos planos de saúde ao SUS é incalculável: toda urgência e emergência, tratamentos de câncer, transplantes, hemodiálise, que os planos negam cobertura e o SUS acaba fazendo. Desde 2009 a ANS descumpre determinação do Tribunal de Contas da Uniãs (TCU) sobre o ressarcimento desses atendimentos. Os valores que o SUS recebe correspondem a 25% do total devido. E dessa parte, 20% se perde com recursos na Justiça, tramitação, prescrição”, diz o professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
Como ele costuma dizer, “a ANS foi capturada pelos planos privados de saúde e o SUS é que sai perdendo”. Pela chamada teoria da captura, os reguladores são dominados pelo setor que regulam, buscando maximizar benefícios políticos, financiamento de campanhas, votos, cargos ou acumulação de poder.
A captura explica também as vistas grossas da agência à regulação dos maiores do setor. E numa situação de insolvência como a da Unimed Paulistana e de outras que estão por vir, a liquidação das operadoras vai favorecer os mais fortes – em condições de absorver a clientela desses planos ou a melhor parte dela. E prejudicar os prestadores sem capacidade de barganha e os consumidores.
Reportagem de Cida de Oliveira, na RBA
fonte:http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/no-caso-unimed-as-miserias-da-medicina-privada/
foto:http://andreestefane.com/2011/09/01/afinal-o-que-e-seguro-governamental/
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