Nos Estados Unidos, na Índia ou no Brasil, uma criança com 12 meses já associa o que assiste na tevê com as marcas de fast food, material escolar e brinquedos que patrocinam a programação – Burguer King ou McDonald’s na maioria dos países ocidentais. Com 18 meses, será capaz de reconhecer logotipos de empresas e antes do segundo aniversário pede os produtos que quer consumir citando as marcas. Aos três anos e meio, as crianças manifestam a crença de que as marcas lhes comunicam qualidades e valores e um aluno da primeira série escolar já reconhece cerca de 200 marcas e ganha em torno de 70 novos brinquedos por ano. Estratégias de marketing direcionadas à primeira infância, à base de relações diretas com as crianças e exclusão dos pais e professores, além da exposição demasiada à TV e à internet, explicam a imersão cada vez mais intensa da infância no mundo do consumo.
A mestre em Marketing e professora da ESPM Sul, Liliane Rohde, alerta que as crianças exercem poder de compra e passam a exigir produtos e marcas específicas cada vez mais cedo. Uma pesquisa realizada por ela em 2009 demonstrou que a relação entre infância e consumo vem se estabelecendo ao longo do tempo. “Antes uma criança se vestia de acordo com o gosto da mãe até os sete anos de idade. Hoje, aos dois, a criança já define suas preferências”. Liliane afirma que a infância está cada vez mais impactada pelo consumo, pois a pressão vem de todos os lados, com influências das redes sociais ou dos grupos de convívio das crianças, que reivindicam produtos e serviços. “Dos anos 2000 em diante, o marketing descobre a criança como tomadora de decisões, o que determina o deslocamento do foco das campanhas para faixas etárias cada vez mais precoces, dos cinco aos sete anos”, analisa.
Do ponto de vista ético, a publicidade tem sido mais nociva do que responsável, avalia a professora, “pois trata-se de uma faixa etária em que a criança não consegue discernir muito bem o que é realidade e o que é fantasia”. “Na faixa etária dos oito aos 13, elas assistem a mais de 3,5 horas de tevê, são atingidas por 110 anúncios diários e solicitam 3 mil produtos e serviços por ano”, exemplifica Juliet Schor, professora de Sociologia na Faculdade de Boston, autora de livros sobre a exposição cada vez mais precoce das crianças à publicidade e ao consumo nos Estados Unidos, como “Nascidos para comprar” (editora Gente, 2009).
“Tecer uma rede de referenciais, objetivo de vida e valores de uma criança em cima de objetos para consumo pode transformá-la em um adulto que vai precisar muito da posse dos objetos para ter a noção de pertencimento ao mundo”, alerta a professora do Instituto de Psicologia da UFRGS, Inês Hennigen. Para ela, o problema não são os brinquedos, roupas e materiais escolares que reproduzem o universo infantil, mas o condicionamento das crianças a consumir cada vez mais, sem espaço para a imaginação, a criatividade e as relações.
“Os pais devem negociar com as crianças, colocar oposições, retirar as embalagens dos produtos e analisar o valor do seu conteúdo, qualidade e possibilidades. Todos nós consumimos e adquirimos imaginários, criamos histórias em cima dos nossos brinquedos. O problema é que hoje o brinquedo já vem com a história, a criança só vai aderir, viver como aqueles personagens e objetos. É problemático quando se tem um único referencial, sem contato com o contraditório”, aponta a especialista em Psicologia Social e da Educação.
O Brasil é o quarto país em faturamento com a venda de produtos licenciados de marcas do mundo, atrás de EUA, Japão e México, e projeta um faturamento de R$ 13 bilhões em 2014, com um crescimento de 4% ao ano desde 2012. As licenças são reproduções de personagens do cinema e da tevê em cadernos escolares, mochilas, adesivos, vestuário etc., feitas por indústrias que pagam aos proprietários das marcas royalties, uma remuneração sobre os direitos de propriedade. As vendas de material escolar, alimentos, roupas e calçados, acessórios, eletrônicos, cosméticos, cadernos, brinquedos e publicações com a carinha e o logotipo de personagens criados pela tevê e o cinema não param de crescer e de inundar o mercado com novidades a cada final de ano ou início de período letivo.
Os negócios nunca foram tão bem quanto na primeira metade desta década, confirma a presidente da Associação Brasileira de Licenciamento (Abral), Marici Ferreira. “Os fatores que justificam esse desempenho nos últimos anos são economia estável, melhor infraestrutura de varejo, melhor compreensão do conceito de licenciamento pela indústria, distribuidores e varejistas, grande potencial de empresas que podem utilizar licenciamento e crescimento no poder de consumo”.
O mercado é dominado pelas marcas internacionais, que detêm 75% de participação, mas as licenças brasileiras vêm conquistando cada vez mais espaço. Além das mais consagradas como a Maurício de Sousa, que licencia especialmente cadernos, mochilas, bonés e vestuário com os personagens da Turma da Mônica, Marici destaca o fenômeno da Galinha Pintadinha, que fatura R$ 20 milhões por ano com a venda de mídias digitais, pelúcias, infláveis, jogos, livros para crianças de dois anos e até uma linha para bebês.
Criação da Bromélia Filminhos, empresa dos publicitários Marcos Luporini e Juliano Prado, o personagem Galinha Pintadinha surgiu por acaso em 2006, com a postagem de um vídeo de demonstração que em seis meses recebeu 500 mil likes. O primeiro DVD, lançado em 2008, vendeu 400 mil cópias e o segundo, em 2012, foi o segundo mais vendido do ano, com 1,5 milhão de cópias – o primeiro lugar foi da cantora britânica Adele. A marca, que não permite a reprodução da personagem em embalagens de refrigerantes, mas já lançou um tablet personalizado, é administrada pela Redibra Licensing, mesma empresa que cuida dos licenciamentos de produtos que fazem a cabeça de bebês, crianças e adolescentes: a Coca-Cola, o cantor Luan Santana, os desenhos animados Peixonauta e Os Simpsons e as revistas Capricho e Mundo Estranho.
“A licença Peppa Pig se tornou nosso maior lançamento de 2014. Não se trata de caso isolado, pois a cada ano o mercado é capaz de trazer novos personagens e ‘febres’. O apelo em si é para aquela faixa de público que vai até os cinco ou seis anos de idade. O próprio desenho faz muito sucesso, então, basta criar uma linha que seja condizente com o público que o acompanha”, revela Aires Leal Fernandes, diretor de marketing da Estrela. Os licenciados equivalem a 30% do faturamento anual da companhia, que encerrou 2013 com receita de R$ 131 milhões, 8,7% de crescimento.
Para o empresário Eliseu França, que mantém uma rede de lojas de brinquedos nos três estados do Sul e em São Paulo, os principais personagens idolatrados pela criançada já deixaram de ser fenômenos de venda. A boneca Barbie, que vendia uma unidade a cada meio segundo no mundo no começo dos anos 2000, é um exemplo de queda nas vendas. “As licenças da Mattel estão quase quebradas, a Barbie puxa o mercado de brinquedos para baixo. Mas mesmo os novos como a linha Monster High, Frozen e Peppa Pig já cansaram”, confidencia. O segmento representa 50% do faturamento, com margem de 5%. “Os licenciamentos são uma aposta segura devido à venda em escala, garantida pela estrutura de marketing que coloca o brinquedo na mão das crianças”, explica França.
“Não há nada de negativo em oferecer à criança o brinquedo que ela escolheu e com o qual ela se identifica, desde que os pais consigam orientar os filhos em meio a tantas opções, propaganda e apelos ao consumo”, ressalta a pedagoga Angela Albeche, que levou a filha, Sofia, de cinco anos, a uma loja de shopping da capital para comprar uma fantasia do longa de animação Frozen, da Disney.
Já Marcelo Padilha relata que a definição do presente da filha, Amanda, seis anos, foi negociado. “Oferecemos a ela a possibilidade de fazer uma lista com seis presentes, da qual nós elegemos dois”. Ele diz que, ao completar seis anos, a menina já tinha as suas preferências de brinquedos, vestuário e calçados e atribui isso à influência da TV. Para o trabalhador da construção civil Valdeci Lorenz, a preferência do filho por uma mochila do personagem Ben 10 criou dificuldades em casa, já que o produto não cabia no orçamento da família. “A gente tenta explicar que o dinheiro é curto, mas eles sofrem pressão na escola”, explica.
As crianças têm uma longa história como consumidoras, especialmente de literatura e vestuário. O escritor norte-americano Bernard Mergen afirma que em 1870 os brinquedos já eram usados para simbolizar posição social. No entanto, o consumo era modesto em comparação com o trabalho, as brincadeiras, o lazer, a escola, ao contrário do que acontece hoje.
“As horas de ócio estão preenchidas pelo marketing, que substituiu as sociabilidades não estruturadas, e muito do que as crianças realizam durante seus momentos de lazer diz respeito a mercadorias e suas relações de consumo. O poder de compra das crianças explodiu, uma vez que elas passam o dia comprando ou vendo mais televisão”, afirma Juliet Schor. No livro “Nascidos para comprar”, ela constata que propaganda e o marketing deliberadamente influenciam as crianças para que se tornem consumidores autônomos e com mais autoridade graças a uma inversão da antiga fórmula válida na década de 1920, que vendia produtos infantis por meio de uma aliança com as mães. “A nova regra é que crianças e marqueteiros unam as forças para convencer os pais a gastar mais dinheiro”. Atualmente, as crianças estão imersas em um ambiente de consumo tão intenso que torna insignificante qualquer experiência mercadológica de épocas anteriores.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, decidiu em abril de 2014 que toda publicidade voltada para o público infantil e adolescente é abusiva. Como o Código de Defesa do Consumidor proíbe propaganda abusiva, não seria mais permitida publicidade dirigida a ete público.
Entidades de classe de anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação, no entanto, questionaram a decisão, sob o argumento de que a proibição só poderia ser determinada pelo Congresso Nacional por meio de lei. Entre as inúmeras propostas que discutem o assunto, o Projeto de Lei nº 5.921/2001 do deputado Luis Carlos Hauly (PSDB-PR) tramita há 13 anos na Câmara. A proposta que proíbe a propaganda de publicidade para crianças até 12 anos de idade deve ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça. Se for aprovada e nenhum deputado pedir sua votação no plenário, será encaminhada ao Senado.
A publicidade de alimentos para crianças é autorregulamentada somente no Brasil e na Austrália, ou seja, nestes países não há leis nacionais. Quem cria as normas é o próprio setor, que negocia com o governo. No mundo, apenas a cidade de Quebec, no Canadá, e a Noruega não permitem qualquer tipo de publicidade para crianças. França e Chile permitem mensagens que recomendem o consumo moderado e a alimentação saudável. A proibição é parcial no Reino Unido, Irlanda, Itália, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Coreia do Sul e o próprio Chile – nestes países, os comerciais são vetados em determinados horários ou faixas etárias. No Reino Unido e na Suécia, personalidades e personagens da indústria do entretenimento, especialmente desenhos animados, não podem aparecer em anúncios de alimentos infantis.
Reportagem de Gilson Camargo | Jornal Extra Classe | Porto Alegre
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/39051/oferta+de+produtos+com+personagens+infantis+cresce+no+brasil+e+estimula+consumo+entre+criancas.shtml
foto:http://www.mundodastribos.com/mochila-infantil-das-princesas-onde-comprar-precos.html
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