20/12/2013

“Na América Latina as pessoas já sentem que têm direitos e podem exercê-los”


O peruano Diego García-Sayán (foto acima) termina em 31 de dezembro seus quatro anos à frente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e se deslocou até Washington para entregar na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) um informe extraordinário sobre sua gestão na presidência que pretende ser um balanço da evolução do tipo de casos com que lidou no tribunal ­ – com sentenças históricas sobre os direitos dos homossexuais e a fecundação in vitro – e do crescente vigor de uma Corte cuja jurisprudência começa a ser vinculante nos ordenamentos nacionais.
Ao longo desses quatro anos, García-Sayán lidou com o peso de dirigir o tribunal internacional com menor orçamento do mundo; teve de aplicar a tortuosa reforma do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH); acompanhou a denúncia da Convenção Americana por parte da Venezuela – o que significa que esse país está fora da jurisdição da Corte – e foi duramente questionado pela sentença no caso Mémoli vs Argentina, que muitos viram como uma mudança perigosa, com intenções políticas, na jurisprudência da Corte sobre a proteção da liberdade de imprensa.
Com a experiência e a bagagem de seus anos na magistratura e na vida pública – foi ministro da Justiça e chanceler do Peru –, García-Sayán defende com veemência e, sobretudo, com convicção um mandato de que se sente orgulhoso e passa ao largo com diplomacia assuntos que a corte poderá estudar em breve, como a destituição do prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, que esta semana irá a Washington para apresentar seu recurso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humano (CIDH), o seu futuro pessoal, que alguns situam à frente da OEA ou de outros órgãos regionais.
Pergunta. O que destacaria do informe que na quarta-feira vai apresentar ao Conselho Permanente da OEA?
Resposta. Em primeiro lugar, o modo como o SIDH está tratando de uma gama cada vez mais variada de temas que, em outro contexto do sistema interamericano, teriam parecido esquisitices ou sutilezas, se comparados com as matanças ou desaparecimentos, os casos que mais se estudavam havia alguns anos. A avalanche de denúncias pressupõe a multiplicação da demanda democrática e esse é um fator que contribui para a saúde do sistema democrático porque significa que os cidadãos sentem que têm direitos e que podem exercê-los.Isso é uma revolução na relação entre o indivíduo e o Estado. Além do mais, há um fortalecimento notável das instituições nacionais que descobrem que ao se nutrirem do SIDH se apoderam de mais armas de jurisprudência para a proteção de direitos humanos. No México, Colômbia e Peru nossa doutrina é vinculante, o que permite a seus juízes resolverem casos que, de outro modo, acabaríamos tendo de analisar na Corte.
P. A Colômbia é precisamente um país muito respeitador do SIDH. No entanto, seu presidente, Juan Manuel Santos, pediu há algumas semanas à OEA e à Corte flexibilidade e respeito ao processo de justiça de transição para resolver de modo interno as violações de direitos cometidas pelas Farc, para não ameaçar o êxito do processo de paz. Qual a sua opinião, como presidente da Corte?
R. A justiça de transição é perfeitamente compatível com a Corte porque faz parte de sua jurisprudência desde o caso Mozote, o único caso de anistia vinculado à saída negociada de uma guerra que este tribunal conheceu. Ali se expõe um desdobramento da justiça de transição como um processo triangular no qual se combinam a justiça, a verdade e a reparação, um processo no qual a ponderação desses três componentes pode ir gerando respostas que façam com que a justiça não seja um fator que impeça a paz, mas um fator que a fortaleza.
P. O prefeito Petro pediu a Santos que, tal como contempla a Constituição colombiana, solicite um parecer consultivo à Corte sobre a interpretação da proteção dos direitos políticos. Caso ele fízesse isso – o ministro da Justiça já disse que não – o que o tribunal lhe responderia?
R. Todos os Estados têm a faculdade de apresentar uma solicitação de opinião consultiva. Se fosse apresentada, a Corte teria de considerá-la, mas esse não é um processo de poucas semanas, é um processo em que a Corte tem de velar para que haja o maior número de avaliações e de opiniões, para que não se transforme em um fórum sagrado.
P. Petro argumenta que a decisão do procurador sobre a destituição dele é uma violação dos direitos políticos reconhecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos. No caso do venezuelano Leopoldo López, a Corte decidiu que as normas internas não poderiam prevalecer sobre a legislação internacional em se tratando de cargos preenchidos por eleição popular e que somente um juiz poderia destituir uma pessoa que ocupasse um posto desse tipo, depois de um processo com provas suficientes. Essa sentença poderia ser aplicada como jurisprudência no caso do prefeito de Bogotá?
R. Teria de ser estudado, porque cada caso tem mérito em si mesmo e, no momento, não conhecemos um caso essencialmente igual ao de Petro. Mas na jurisprudência da Corte está estabelecido que para o exercício dos direitos políticos vigoram plenamente as normas fixadas na Convenção, incluídas as que correspondam à sua limitação e suspensão. Em todo o caso, conhecendo o vigor e o dinamismo da institucionalidade colombiana, estou certo de que saberão encontrar uma saída que compatibilize um processo disciplinar efetivo contra as autoridades, eleitas ou não, com a garantia dos direitos políticos das pessoas que foram eleitas para um cargo público.
P. Como afetou a Corte a saída da Venezuela de sua jurisdição, depois que se tornar efetiva sua decisão de renegar a Convenção?
R. A Venezuela estava em seu direito ao renegar a Convenção, mas esse gesto não teve maiores repercussões quanto a ter um efeito dominó, como chegou a ser prenunciado. O prejuízo não é tanto para a Corte ou para a CDIH, mas para os cidadãos que vivem na Venezuela. Mas isso também não é o fim do mundo. Há muito países membros da OEA que não estão nem nunca estiveram submetidos à Corte e isso não é nem nunca foi a antessala do inferno.
P. Na sentença Mémoli vs Argentina (os proprietários do diário argentinoLa Libertad foram condenados a penas e prisão e embargo de bens por denunciar em dois artigos as irregularidades na venda de jazigos por parte do cemitério e de uma sociedade mutuária) este verão, a Corte considerou pela primeira vez que uma condenação penal por difamação não afetava a liberdade de expressão. A sentença foi duramente criticada por organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, que chegou a dizer que a Corte “havia tirado pelas bordas a jurisprudência sobre liberdade de expressão”, e a relatora para a Liberdade de Expressão da CIDH, Catalina Botero, que alertou que com a resolução “se deixava sem defesa os jornalistas regionais”. Qual a sua opinião?
R. Aí há um erro porque não houve mudança na jurisprudência. Creio que esse é um tema muito raro, é uma tormenta em um dedal de água, porque o Estado foi condenado e os Mémolis, no dia seguinte, deram como manchete de seu jornal: Ganhamos, a Argentina perdeu. Haverá outras pessoas que interpretarão melhor que as vítimas quem ganhou ou perdeu, mas a sentença condenava a Argentina por violação da Convenção e estabelecia que fosse removido o congelamento de bens decretado contra os Mémolis, que era a parte essencial do processo, porque a sentença penal nunca chegou a se tornar efetiva. É preciso rever essa afirmação. Se alguém se submeteu a um caso que não saiu como queria, está em seu direito divergir, mas daí a dizer que houve mudança de jurisprudência ou que se atacou a independência dos juízes há uma distância.
P. Há também quem insinue que por trás dessa sentença há certa intenção política para obter o favor da Argentina para potenciais apoios a futuros cargos.
R. Qualquer insinuação de favoritismo político me parece inaceitável, principalmente porque, no essencial, o Estado argentino foi condenado.
Futuro num organismo internacional
P. Dois órgãos de mídia, La Razón, do Peru e Semana, da Colômbia, informaram na última semana que o senhor tem intenção de apresentar sua candidatura à OEA ou outro órgão regional, e conta com o apoio do presidente Ollanta Humala. O que está certo nessas afirmações?
R. Se Humala decidisse apresentar a minha candidatura, tenho certeza que primeiro ele me consultaria.
P. Se ele lhe pedisse, aceitaria?
R. Como dizem na Colômbia, amanhecerá e veremos. Fala-se dos problemas quando eles se apresentam. Não existe nada, e tudo o que se está falando é mera especulação.
P. O que o atrairia?
R. Não parei ainda para pensar. Estive tão dedicado á presidência que o que tenho de começar a fazer é posicionar-me no exercício da função de advogado e consultor. Provavelmente os outros estão pensando mais em meu futuro do que eu mesmo, o que é bom porque me ajuda a pensar no que poderei fazer depois.
P. De que sentença se sente mais orgulhoso em sua permanência como presidente da Corte? Qual sentença que sentiu que seria um marco na jurisprudência latino-americana?
R. É difícil porque todos os casos têm um elemento de novidade fundamental. Mas há alguns que foram mais inusitados porque saem da inércia de casos anteriores, como o de não discriminação por orientação sexual [caso Atala vs Chile] ou o da fecundação in vitro [caso Artavia Murillovs Costa Rica], porque através deles você mexe com a sensibilidade e a realidade de muitos milhões de indivíduos que hoje em dia, se têm uma violação a seus direitos, se são discriminados por sua orientação sexual, têm aí um elemento fundamental de defesa embora a lei de seu país diga outra coisa. O efeito que isso pode ter na afirmação dos direitos é importante e enormemente esperançoso.
P. É nesse tipo de caso de grande profundidade que a Corte deveria se concentrar no futuro, para fomentar sua transcendência e torná-la mais incisiva?
R. Eu não posso dar à CIDH nenhuma sugestão ou instrução sobre o que eles têm de fazer, mas é útil que se leve em conta que, para um tribunal que nunca será estatisticamente relevante sempre será interessante explorar áreas inusitadas, áreas sobre as quais a Corte ainda não se pronunciou e a cuja jurisprudência os Estados podem recorrer.
P. A CDIH lamenta que a Corte esteja desconsiderando cada vez mais casos que lhe envia e, por outro lado, o tribunal e muitos juristas se queixam da lentidão con que a Comissão resolve as denúncias apresentadas. O qu podem fazer ambos organismos para conseguir maior coesão, dinamismo e coordenação?
R. Não há uma crítica de minha parte à CIDH e, se a CIDH tem alguma crítica à Corte, não conheço. Mas cada qual tem as próprias especificidades, são órgãos autônomos e assim têm de continuar sendo. Este ano, depois de muitos outros, tivemos uma reunião plenária entre os membros da CIDH e a Corte. Ali não se falaram de casos mas se definiram, sim, alguns passos em matéria de regulamentação que foram acolhidos. A comunicação é melhor e acredito que neste último ano a CDIH compreendeu que falar de reformas era sinônimo de debilidade e que é normal que toda a instituição esteja aberta ao diálogo e à mudança. Quando a CIDH saiu do esquema pré-histórico, que considerava que qualquer um que falasse ou pusesse em discussão seus procedimentos estava atacando a CIDH, muitos Estados começaram a dar suas opiniões, demonstrando que não existia essa espécie de avalanche monocórdica de que todos estavam contra.

Reportagem de Eva Saiz

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