Carlos Drummond de Andrade
— Este Natal anda muito perigoso — concluiu João Brandão, ao ver dois PM travarem pelos braços o robusto Papai Noel, que tentava fugir, e o conduzirem a trancos e barrancos para o Distrito. Se até Papai Noel é considerado fora-da-lei, que não acontecerá com a gente?
Logo lhe explicaram que aquele
era um falso velhinho, conspurcador das vestes amáveis. Em vez de dar
presentes, tomavaos das lojas onde a multidão se comprime, e os vendedores,
afobados com a clientela, não podem prestar atenção a tais manobras. Fora
apanhado em flagrante, ao furtar um rádio transistor, e teria de despir a
fantasia.
— De qualquer maneira, este
Natal é fogo — voltou a ponderar Brandão, pois se os ladrões se disfarçam em
Papai Noel, que garantia tem a gente diante de um bispo, de um almirante, de um
astronauta? Pode ser de verdade, pode ser de mentira; acabou-se a confiança no
próximo.
De resto, é isso mesmo que o
jornal recomenda: "Nesta época do Natal, o melhor é desconfiar
sempre”.Talvez do próprio Menino Jesus, que, na sua inocência cerâmica, se for
de tamanho natural, poderá esconder não sei que mecanismo pérfido, pronto a
subtrair tua carteira ou teu anel, na hora em que te curvares sobre o presépio
para beijar o divino infante.
O gerente de uma loja de
brinquedos queixou-se a João que o movimento está fraco, menos por falta de
dinheiro que por medo de punguistas e vigaristas. Alertados pela imprensa, os
cautelosos preferem não se arriscar a duas eventualidades: serem furtados ou
serem suspeitados como afanadores, pois o vendedor precisa desconfiar do
comprador: se ele, por exemplo, já traz um pacote, toda cautela é pouca. Vai
ver, o pacote tem fundo falso, e destina-se a recolher objetos ao alcance da
mão rápida.
O punguista é a delicadeza em
pessoa, adverte-nos a polícia. Assim, temos de desconfiar de todo desconhecido
que se mostre cortês; se ele levar a requintes sua gentileza, o melhor é chamar
o Cosme e depois verificar, na delegacia, se se trata de embaixador aposentado,
da era de Ataulfo de Paiva e D. Laurinda Santos Lobo, ou de reles lalau.
Triste é desconfiar da saborosa
moça que deseja experimentar um vestido, experimenta, e sai com ele sem pagar,
deixando o antigo, ou nem esse. Acontece — informa um detetive, que nos inocula
a suspeita prévia em desfavor de todas as moças agradáveis do Rio de Janeiro. O
Natal de pé atrás, que nos ensina o desamor.
E mais. Não aceite o
oferecimento do sujeito sentado no ônibus, que pretende guardar sobre os
joelhos o seu embrulho.
Quem use botas, seja ou não
Papai Noel, olho nele: é esconderijo de objetos surrupiados. Sua carteira, meu
caro senhor, deve ser presa a um alfinete de fralda, no bolso mais íntimo do
paletó; e se, ainda assim, sentir-se ameaçado pelo vizinho de olhar suspeito, cerre
o bolso com fita durex e passe uma tela de arame fino e eletrificado em redor
do peito. Enterrar o dinheiro no fundo do quintal não adianta, primeiro porque
não há quintal, e, se houvesse, dos terraços dos edifícios em redor, munidos de
binóculos, ladrões implacáveis sorririam da pobre astúcia.
Eis os conselhos que nos dão pelo Natal, para que o atravessemos a
salvo. Francamente, o melhor seria suprimir o Natal e, com ele, os
especialistas em furto natalino. Ou — idéia de João Brandão, o sempre inventivo
— comemorá-lo em épocas incertas, sem aviso prévio, no maior silêncio, em
grupos pequenos de parentes, amigos e amores, unidos na paz e na confiança
deDeus.
(14-12-1966)
Texto extraído do livro "Caminhos de João Brandão", José Olympio
Editora - Rio de Janeiro, 1970, pág. 84.
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