Para Pilar Calveiro, Brasil pode seguir Argentina e julgar militares após Comissão da Verdade.
As ditaduras militares vivenciadas na América Latina foram expressões do poder estatal, e não ‘acidentes’ de percurso ou desvio de rotas. Essa é a defesa feita pela pesquisadora Pilar Calveiro, autora de “Poder e desaparecimento”, recém lançado no Brasil pela editora Boitempo. Em entrevista a Opera Mundi, Pilar, que foi sequestrada e ficou presa durante um ano e meio pela ditadura argentina, ressalta que é ‘perigoso’ tratar o regime ditatorial como “assunto do passado”, pois se “esses fatos continuam impunes, é uma permissão para que eles continuem acontecendo”.
A autora também comenta o papel da Comissão Nacional da Verdade, e não vê a lei da anistia como impeditivo para julgamentos de repressores no Brasil. Ela lembra que, na Argentina, primeiro foi feita uma comissão, que interpretou e documentou os fatos, que depois foram levados à Justiça. Pilar reconhece e identifica, nas mais cruéis práticas da ditadura, a expressão de um projeto político e de poder, e não apenas resultado de um desvio de conduta de um grupo que chegou ao poder. Leia a entrevista abaixo:
Opera Mundi: Em “Poder e desaparecimento”, é construída a ideia de que as ditaduras militares e as suas práticas não são “fatos isolados” ou “acidentes da história”. No caso da Argentina, cita que o sequestro de militantes já ocorria antes da ditadura (1976-1983). Como foi o processo que levou a formação dos campos de concentração e o sequestro de pessoas?
Pilar Calveiro: Acredito que o elemento comum entre o Brasil e a Argentina, e com a maior parte dos países da América Latina, foi o uso da prática da desaparição forçada para reprimir a dissidência, isto aconteceu em praticamente todos os países da nossa região, ou pelo menos na maior parte deles. Se há antecedentes na sociedade argentina, eles se deram em uma lógica diferente da realizada pela ditadura. Há casos de desaparecimentos forçados antes de 1966. Existe, por um lado, a existência de grupos paramilitares, como é o caso principalmente da “tríple A” (Aliança Argentina Antincomunista), um organismo privado, com a proteção de parte do estado, o ministério do Bem Estar Social, que sequestrava e assassinava pessoas, mas, na maioria dos casos, os cadáveres apareciam. Também ocorreram casos de desaparição forçada, com intervenção militar na província de Tuculmán, em 1975. Há estes antecedentes, mas o que não há é este enorme aparato de desaparecimento que tem cobertura nacional, feito dentro do próprio aparato do Estado e seguindo a estrutura das instituições militares.
OM: Você acredita que é importante que a sociedade discuta esse período? Alguns argumentam que as ditaduras são fatos do passado, que não deveriam ser revirados. Como você vê essa discussão?
PC: Isso não é um assunto do passado, ou seja, apesar dessas coisas terem ocorrido no passado, se esses acontecimentos permanecem impunes, significa uma permissão para que continuem ocorrendo. O julgamento dos crimes contra a humanidade não é uma questão do passado, tem relação com o estado atual da nossa democracia, necessita ser visto como uma questão do presente, do que estamos dispostos a aceitar ou não.
OM: Na Argentina, houve o julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura. No Brasil, está em curso à Comissão da Verdade, que estuda este período, mas não vai realizar nenhum julgamento. Qual a diferença na forma como os dois países tratam o seu passado? Quais são os efeitos sobre a organização política dessas sociedades?
PC: Na Argentina, assim como no Brasil, as comissões tiveram um papel semelhante: estabelecer qual é a verdade, investigar e identificar os fatos ocorridos. Posteriormente, pode haver, a partir disso, algum processo que, mesmo não fazendo parte da comissão da verdade, tome conta de discutir a pertinência dos juízos. No Brasil, aconteceu um processo de anistia, mas também há muitos grupos que consideram que esse processo não foi legal e deveria ser questionado. Então, o que aconteceu na Argentina, foi que posteriori as investigações, se deu a decisão política de submeter a juízo aquelas pessoas que estavam envolvidas em delitos contra a humanidade. Houve uma reorganização da sociedade civil, e não somente organizações de familiares, dos sobreviventes, mas também de outros tipos de grupos ligados a memórias. Tudo isso fez com fosse mantida a discussão e a demanda por justiça, a qual se incorpora ao sistema político e logo se chega aos julgamentos que estão atualmente abertos.
OM: Em seu livro, é muito forte a ideia da “retirada da subjetividade” e da “quebra psicológica” dos presos. Por que isso acontecia e qual o peso disso?
PC: Tem um enorme peso porque todo o “sistema concentracionário’’, como aconteceu na Argentina, tem a ver com esse desconstrução da pessoa e da sua condição de sujeito. A primeira coisa é retirar a sua condição mínima de sujeito de direito, logo depois, em lugar de um nome, que é um elemento básico da identidade, ele será chamado por um número, após isso, com um capuz cobrindo o rosto, o sequestrado passa a ser uma pessoa sem nome e nem rosto. Se proíbe também o contato entre prisioneiros e o direito de se comunicarem uns com os outros, por meio disso é retirado o direito a palavra, que é um dos signos mais claros da humanidade. Dessa maneira se retira a dignidade, pois com essa pessoa se pode fazer qualquer coisa, até que finalmente lhes tiram a vida. É um ambiente no qual se vai o expropriando os rastros de humanidade da pessoa, isso é parte do objetivo do campo de concentração que é a destruição do sujeito, antes da sua destruição física e o desaparecimento dos seus corpos.
OM: Você faz algumas comparações entre os campos da Argentina e da Alemanha, o controle sobre a vida, a remoção da subjetividade. No que eles eram semelhantes e no que eram diferentes?
PC: Eu tomo as semelhanças do caso argentino com o dos alemães - de onde retiro o conceito de campo de concentração - porque são um conjunto: uma constelação de espaços, em diferentes partes do território, administrados pelo Estado, que funcionam como lugares de concentração e extermínio de prisioneiros. Neles se pode realizar qualquer coisa, ou seja, se utiliza práticas ilegais e funcionam como lugares de exceção, em que não há direitos, pois as pessoas perdem sua condição de sujeito. Essas são algumas características principais que conectam essas instituições tanto na Argentina como na Alemanha. Há também as diferenças importantes com o modelo do nazismo, com o sistema de alojamento e a prática de trabalho forçado, que extenuava e muitas vezes levava o prisioneiro à morte. No caso argentino isso não ocorreu, o que existiu foi a separação física, ao vendar os olhos, o rosto e impedir a comunicação verbal e, em lugar de trabalho, a imobilidade mais absoluta. São formas diferentes, mas, ainda sim, meios de anular o sujeito, a sua dignidade, sua individualidade e sua força física. O isolamento, a imobilidade e a obstrução da comunicação são pontos que o modelo argentino mantêm em comum com sistemas de prisão contemporâneos como o caso Guantánamo.
OM: Ao citar essas semelhanças, entre Guantánamo e as práticas da ditadura argentina, você acredita que os princípios por trás do poder de desaparecer com pessoas ainda estão vigentes?
PC: Os Estados Unidos e as grandes redes de poder global públicas e privadas, o que significa falar do uso de aparatos estatais e de grandes corporações, recorrem a desaparição forçada, portanto, esse é um princípio que tem se mantido. Também está vigente algo que podemos denominar como “modelo concentracional”, que relação não só com Guantánamo, mas com todos esses grandes lugares de prisões clandestinas, operados principalmente pela CIA, mas também por aparatos de inteligência de estados europeus. Eles funcionam em diferentes lugares do mundo e são espaços de sequestro, com a retenção clandestina de pessoas, pois estão fora de toda proteção dos direitos humanos, muitas vezes nem se pode saber seus nomes e acesso à advogados, Em Guantánamo, faz pouco tempo se começou a pensar no acesso a advogados, mas, por muito tempo, nem sequer se soube quem estava lá. Estas instituições têm vinculação com o desaparecimento forçado e também com uma atualização do poder concentracionário, que continua sendo um problema importante na sociedade atual.
OM: Alguns militares usavam como justificativa a máxima de que apenas “cumpriam ordens”. Você pode explicar o pensamento por trás dessa ideia e também porque a fragmentação das funções dentro do campo de concentração eram consideradas tão importantes? As pessoas envolvidas no processo, na verdade, não deveriam ser consideradas "responsáveis" ou "culpados"?
PC: Eu acredito que esse processo de fragmentação das responsabilidades, que aconteceram no sistema repressivo argentino, é algo que é característico de todos os modelos burocráticos onde há uma forte divisão das funções dentro dos aparatos do Estado, cada parte cumpre uma função. Assim ninguém se sente responsável pela totalidade dos acontecimentos, a não ser as “cabeças”, que são aqueles que dão as ordens. Creio que isso ajuda a diluir a responsabilidade, apesar dela nunca desaparecer ao todo. Ajuda com que cada uma das pessoas que compuseram esse aparato, se sinta parcialmente responsável, mas ninguém se sinta totalmente responsável. Outro dispositivo utilizado era fazer com que todos os membros da força de segurança participasse de alguma maneira, isso também foi uma forma de fazer com que todos fossem parte e nesse sentido é quase o mesmo que ninguém fizesse parte, ou seja, distribuindo-a, pretende-se diluí-la, mas a responsabilidade permanece.
Reportagem de Paulo Pastor Monteiro
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