Na Califórnia, médicos contratados pelo Departamento
estadual de Correções e Reabilitação esterilizaram sem a aprovação do Estado
necessária cerca de 150 internas femininas entre 2006 e 2010. Ao menos 148
mulheres foram submetidas a cirurgias de ligação das trompas durante esses
cinco anos, o que viola as regras carcerárias. Além disso, estima-se que haja
mais 100 vítimas desde o fim dos anos 1990, de acordo com entrevistas e
documentos obtidos pelo Center for Investigative Reporting.
Entre 1997 e 2010, o governo do estado da Califórnia pagou
US$ 147.460 pelo procedimento médico, de acordo com dados oficiais. As
cirurgias foram agendadas enquanto elas ainda estavam grávidas, na Instituição
para Mulheres Corona, ou na Prisão Estadual para Mulheres Valley State Prison,
em Chowchilla – que hoje é uma prisão para homens.
Ex-detentas e defensores de prisioneiras acusam a equipe
médica das prisões de coagir as mulheres, visando principalmente àquelas
consideradas com maior chance de voltar novamente à prisão.
Crystal Nguyen, uma ex-detenta da Valley State Prison que
trabalhou na enfermaria da prisão em 2007, disse que frequentemente ela ouvia a
equipe médica perguntando para prisioneiras com várias detenções anteriores se
elas aceitavam ser esterilizadas.
“Eu pensava ‘Meu Deus, isso não está certo’” Nguyen, 28,
disse. “Eles pensam que elas são animais e não querem que elas continuem
procriando?”
Outra ex-detenta da Valley State que deu a luz a um filho em
outubro de 2006 disse que o obstetra e ginecologista da instituição, o doutor
James Heinrich, a pressionava repetidamente para concordar em fazer a cirurgia
de ligação das trompas.
“Assim que ele descobriu que eu tinha cinco filhos, ele
sugeriu que eu considerasse fazer a cirurgia. Quanto mais perto eu chegava de
dar à luz, mais ele falava sobre isso”, conta Christina Cordero, 34, que passou
dois anos presa por roubo de carro. “Ele me fez sentir que se eu não fizesse
seria uma mãe ruim.”
Cordero, que foi solta em 2008 e agora vive em Upland,
California, concordou na época, mas diz “hoje eu queria que nunca tivesse
feito”.
As alegações dão eco àquelas feitas quase meio século atrás,
quando esterilizações forçadas de mulheres prisioneiras, doentes mentais e
pobres eram comuns na California. Essas práticas foram banidas pelos deputados
locais em 1979.
"Crianças
indesejadas"
Em entrevista para o Center for Investigative Reporting,
Heinrich disse que ele provia um importante serviço para mulheres pobres
sujeitas a risco de saúde em alguma gravidez futura por conta de cesarianas
feitas no passado. Com 69 anos, o médico da região de Bay Area negou que tenha
pressionado as pacientes e se disse surpreso ao saber que os profissionais
locais cobraram pelas cirurgias. Segundo ele, o valor de US$ 147.460 pago é
pequeno.
“Em um período de 10 anos, esta não é uma enorme quantidade
de dinheiro comparada com o que você economiza em bem-estar por essas crianças
indesejadas, se as mulheres continuassem procriando”, disse Heirinch.
O chefe da equipe médica da Valley State Prison (entre 2005 e
2008) qualificou as cirurgias como um
“empoderamento” para as mulheres detentas, oferecendo a elas as mesmas opções
que outras têm fora das cadeias. Daun Martin, um psicólogo, também argumentou
que algumas mulheres grávidas, especialmente aquelas viciadas em drogas ou que
viviam nas ruas, cometiam crimes para voltar para prisões e receber melhores
cuidados médicos.
“Eu critico essas mulheres por manipularem o sistema porque
estão grávidas? É claro que não,” diz Martin, 73. “Mas eu não acho que isso
deva acontecer. E eu gostaria de achar maneiras de diminuir isso.” Martin negou
ter aprovado essas cirurgias, mas ao menos 60 laqueaduras foram feitas em
Valley State enquanto ele era o responsável, de acordo com a base de dados de
contratos do Estado.
A doutora Jacqueline Long, que ocupa o mesmo cargo que
Martin na California Institution for Women, se recusou a discutir porque
internas sob sua responsabilidade foram submetidas a cirurgias de ligação das
trompas sem a devida autorização. Porém, um ex-oficial da prisão de Corona,
William Kelsey, disse que havia desacordo sobre o procedimento entre os membros
da equipe.
Em uma reunião no fim de 2005, alguns oficiais corregedores
discordaram da equipe médica de Long a respeito da inclusão do procedimento de
laqueadura a um contrato com um hospital local, segundo Kelsey. Os oficias
consideraram que as cirurgias não eram essenciais para os cuidados médicos e
questionaram se o estado deveria pagar por elas.
“Eles não achavam que criminosas e internas tinham o direito
aos cuidados que estávamos proporcionando e deixaram suas opiniões pessoais
prevalecerem”, disse Kelsey. No entanto, o serviço foi incluído e Kelsey diz
que as reclamações diminuíram.
Leis estaduais e federais proíbem a esterilização de
detentas com recursos federais, o que reflete a preocupação de que as
prisioneiras se sintam pressionadas a se submeter ao procedimento. Em vez
disso, a Califórnia usou verba estadual, mas desde 1994, o procedimento precisa
ser aprovado caso a caso por médicos oficiais da cidade de Sacramento.
"Nos sentimos
nauseados"
Até agora, nenhum pedido de ligação de trompas foi
apresentado para o comitê de saúde responsável para aprovar cirurgias mais
sensíveis, segundo o médico Ricki Barnett, que acompanha os serviços médicos e
gastos para a Corporação de Recebimento de Saúde das Prisões da Califórnia.
Barnett está à frente do comitê desde 2008.
“Quando ouvimos falar nas laqueaduras, nos sentimos um pouco
nauseados,” disse Barnett. “A questão não era que as pessoas estavam
conspirando, ou sendo coercitivas ou descuidadas. O que me preocupa é que as
pessoas nunca deram um passo para trás para imaginar o que elas sentiriam se
estivessem no lugar das detentas, e o que o futuro delas reservava caso
realizassem o procedimento.
Jeffrey Callison, porta-voz do departamento de correções do
Estado da Califórnia, disse que o órgão não poderia comentar porque não tem
mais acesso aos arquivos médicos das internas. “Todos os cuidados médicos para
as detentas, do passado e do presente, estão sob controle do Escritório da
Recebedoria,” Callison escreveu em um email.
O recebedor supervisionou os cuidados médicos em todas as 33
prisões estaduais desde 2006, quando o juiz Thelton Henderson, do distrito
norte da Califórnia, decidiu que o sistema de saúde era tão precário que
violava a proibição constitucional a punições cruéis e incomuns. Registros
mostram que o Escritório da Recebedoria estava ciente de que as esterilizações
estavam acontecendo.
Em setembro de 2008, o Justice Now, grupo de direitos
prisionais, recebeu uma resposta sobre o tratamento dado a internas grávidas
escrita por Tim Rougeux, recebedor-chefe na época. A carta dizia que as duas
prisões ofereciam a cirurgia de esterilização para mulheres.
Mas nada mudou até 2010, quando a organização com sede em
Oakland entrou com um pedido de acesso aos arquivos públicos e fez uma
reclamação ao escritório da senadora Carol Liu, diretora do Comitê para
Mulheres e Crianças no Sistema de Justiça Criminal do Senado americano.
Por telefone, Barnett disse que o Escritório do Recebedor
pediu a ela para pesquisar sobre o tema. Depois de analisar arquivos médicos e
financeiros, Barnett se encontrou em 2010 com funcionários em ambas as prisões
femininas e contratou profissionais de saúde afiliados a hospitais na região.
Durante esses encontros, disse a eles para parar com as
esterilizações das prisioneiras. Em resposta, segundo ela, eles lhe deram uma
bronca.
Barnett relembra que a restrição de idade de 16 anos para
fazer ligações das trompas parecia novidade para os administradores de saúde da
prisão, médicos, enfermeiras e clínicos. Segundo ela, nenhum dos médicos pensou
que precisasse de permissão para realizar as cirurgias nas internas. “Todos
estavam agindo com base no fato de que era uma coisa perfeitamente normal de se
fazer”, diz ela.
Fatores de risco
Martin, gerente médica da Prisão Estadual Valley, diz que
ela e sua equipe descobriram que o procedimento era restrito cinco anos atrás.
Alguém havia feito uma reclamação sobre a esterilização de uma interna que
tinha pelo menos seis filhos, e isso a levou a pesquisar as regras médicas da
prisão. Depois de descobrir sobre as restrições, Martin disse ao CIR que ela e
Heinrich começaram a procurar jeitos de burlá-las. Segundo conta, os dois
acreditavam que as regras eram injustas para as mulheres.
“Tenho certeza que em pelo menos duas ocasiões, (Heinrich)
veio falar comigo dizendo ‘Mary Smith está passando por uma emergência médica e
nós precisamos fazer uma ligação de trompas. Ela tem seis filhos. Podemos
fazer?’”, diz Martin. “E eu disse, ‘Bem, se você documentar como emergência
médica, talvez.’”
Heinrich diz que ofereceu ligações de trompa somente para
internas grávidas que tinham histórico de pelo menos três cesarianas. Segundo
ele, nesse caso uma nova gravidez poderia ser perigosa porque o tecido do útero
poderia romper-se, resultando em uma grande perda de sangue e possibilidade de
morte. “Era um problema médico que nós tínhamos que avisar,” diz Heinrich. “É
responsabilidade do médico que está trabalhando no parto… fazer com que ela
saiba o que está acontecendo. Até corremos risco se não dizemos a elas.”
Mas ex-internas contam uma história bem diferente.
Michelle Anderson, que teve um bebê em dezembro de 2006
enquanto estava na prisão de Valley, diz que ela tinha feito apenas uma
cesariana. Anderson, 44, foi questionada várias vezes se concordava com a
esterilização, mas jamais lhe disseram que havia fatores de risco envolvidos.
Ela recusou.
Nikki Montano também tinha somente uma cesariana antes de
aterrisar em Valley em 2008, grávida e batalhando contra o vício em drogas.
Montano, 42, estava cumprindo pena por roubo, falsificação e recebimento de
propriedade roubada. Mãe de sete crianças, ela disse que nem Heinrich, nem a
equipe médica disseram a ela o porquê da necessidade de uma ligação de trompas.
“Eu pensei que era o que acontecia na prisão – eque esse era
o melhor médico que iria conseguir”, diz Montano. “Ele nunca me disse nada
sobre nada.” Montano concordou com a cirurgia e diz que ainda considera o
procedimento como positivo em sua vida.
A Dra. Carolyn Sufrin, obstetra e ginecologista no Hospital
Geral de São Francisco, que também é professora na Universidade de São
Francisco, diz que não é uma prática comum oferecer ligações de trompas a
mulheres que já realizaram cesarianas. Ela confirma que ter múltiplas
cesarianas aumenta o risco de complicações, mas mesmo assim, segundo ela, é
mais apropriado oferecer à mulher maneiras reversíveis de controle de
natalidade, como aparelhos intrauterinos ou implantes.
“Cada cesariana, cada situação, é diferente”, diz Sufrin.
“Algumas mulheres com cesarianas prévias não têm nenhum problema ou risco.”
Histórico de Eugênia
As ligações de trompa representam uma pequena porção do
tratamento médico fornecido a internas grávidas. Estatísticas e um relatório do
Escritório de Acolhida na Prisão mostram que entre 2000 e 2010, 2.423 mulheres
realizaram partos enquanto estavam presas, na Califórna, custando ao Estado
americano US$ 2,7 milhões de dólares. Menos de uma em cada dez foram
cirurgicamente esterilizadas.
Mas os números não contam a história inteira. A Califórnia
ainda lida com um passado feio: sujeitos a leis de esterilização compulsória na
Califórnia e em outros 31 estados dos Estados Unidos, minorias pobres,
deficientes físicos, doentes mentais e criminosos foram apontados como
inferiores e esterilizados como maneira de prevenir a propagação de seus genes.
Essa prática ficou conhecida como eugenia.
Entre 1909 e 1964, cerca de 20 mil mulheres e homens na
Califórnia passaram por cirurgias para evitar a reprodução – fazendo do estado
o mais prolífico em esterilização nos Estados Unidos. Historiadores dizem que,
nos anos 1930, a Alemanha nazista chegou a buscar conselhos com líderes
eugenistas do Estado.
Em 2003, o Senado realizou duas audiências para expor essa
história, com os depoimentos de pesquisadores, acadêmicos e funcionários do
governo. Em resposta, o então Procurador Geral Bill Lickyer e o governado Gray
Davis apresentaram desculpas oficiais.
“Nossos corações estão pesados pela dor que a eugenia
causou. Foi um capítulo triste e lamentável da história do nosso estado. Algo
que nunca mais deve ser repetido”, diz Davis na declaração.
O que faltou nas audiências foi a perspectiva dos
funcionários das prisões estaduais. O então diretor de correções, Edward
Alameida Jr, informou o comitê do Senado que o sistema prisional não tinha
registros sobre esterilizações.
“Enquanto obviamente esse foi um capítulo negro da história
da Califórnia, o CDC (sigla em inglês para Departamento de Correções e
Reabilitação da Califórnia) representou um papel minúsculo”, escreveu Alameida
em uma carta datada de junho de 2003. “Nossa participação, portanto, em sua
audiência não forneceria nenhuma informação substancial nessa questão e eu não
acredito que nossa presença iria contribuir de alguma maneira para seus
objetivos.”
Porém, Alexandra Minna Stern, professor da Universidade de
Michigan e especialista no processo de esterilização da Califórnia, cita a
atividade da prisão estadual entre as questões pendentes daquela era. Stern
depôs durante as audiências, dizendo que ela encontrou em mãos privadas e em
arquivos de universidade provas de 600 esterilizações realizadas na Prisão
Estadual de San Quentin, anteriores a 1941, que não estavam incluídas nos
números oficiais. Segundo disse ao comitê, os esterilizadores da Califórnia
viam seu trabalho como humano e econômico.
“Um dos objetivos – e isso é crítico para entender a
história da eugenia na Califórnia – era economizar dinheiro: como reduzir os
gastos com bem-estar social,” disse Stern, de acordo com a transcrição de sua
audiência. “E a esterilização está muito ligada a isso.”
Pressionada à
esterilização durante o parto
A Corte Suprema dos Estados Unidos, depois da indignação
pública e dominante sobre a eugenia e abusos similares com esterilizações no
Alabama e em Nova York, gerou novos requisitos nos anos 1970 para que médico
informassem completamente os pacientes. Desde então, é ilegal pressionar
qualquer pessoa para que ela seja esterilizada ou pedir seu consentimento
durante o trabalho de parto ou o nascimento da criança.
Ainda assim, Kimberly Jeffrey diz que foi pressionada por um
médico enquanto estava sedada e amarrada a uma mesa cirúrgica para uma cesárea
em 2010, durante uma temporada em Valley por violação da condicional. Jeffrey,
43, estava horrorizada, conta, e resistiu.
“Ele disse, ‘Então, nós vamos fazer a ligação das trompas,
certo?’”, conta Jeffrey. “Eu disse, ‘Ligação de trompas? Do que você está
falando? Eu não quero que seja feito nenhum procedimento. Só quero ter o meu
bebê’. Eu entrei em pânico.”
Jeffrey forneceu cópias dos arquivos oficiais hospitalares e
de sua prisão ao CIR. Os arquivos mostram que Jeffrey rejeitou a ligação de
trompas oferecida durante um check-up pré-natal em dezembro de 2009, no
consultório de Heinrich. Um relatório médico da cesária de Jeffrey um mês
depois aponta que ela novamente havia recusado a ligação de trompas depois que
chegou ao Hospital Comunidade Madera. Segundo ela, em nenhum momento, ninguém
deu qualquer justificativa médica para realizar a ligação de trompas.
Essa experiência ainda assombra Jeffrey, que vive em São
Francisco com seu filho de três anos, Noel. Ela trabalha com grupos buscando
melhorar as condições para prisioneiras e tem feito lobby com legisladores em
Sacramento. Jeffrey recentemente realizou a prova do vestibular e espera lutar
por um diploma na Universidade Federal de São Francisco.
“Ter sido tratada como se eu fosse menos que um ser humano
gerou em mim um desespero”, diz.
Os funcionários das prisão estadual “são os verdadeiros
ofensores”, acrescentou ela. “Eles repetidamente me ofenderam ao negar o meu
direito à dignidade e humanidade.”
Dorothy Roberts, professor de direito na Universidade da
Pensilvânia e especialista em esterilização, diz que tribunais concluíram que
solicitar aprovação para o procedimento de esterilização durante o trabalho de
parto é coercitivo, isso porque a dor e o desconforto podem comprometer a
habilidade da mulher em tomar a decisão.
“Se isso acontecesse em uma prisão federal, seria ilegal”,
diz Roberts. “Existem situações específicas em que não se pode dizer que houve
consentimento, e uma delas é durante o nascimento da criança ou o trabalho de
parto. Nenhuma mulher deve dar consentimento enquanto está em uma mesa de
operação.”
Heinrich considera as questões levantadas sobre seu
tratamento médico injustas e diz que suspeita dos motivos das mulheres. Ele
insiste que trabalhou duro para dar às internas tratamento médico de alta
qualidade, e acrescenta que centenas de prisioneiras poderiam confirmar isso.
“Todas queriam que fosse feito”, afirma ele sobre as
esterilizações. “Se elas vem um ou dois anos depois dizendo ‘alguém me forçou a
fazer isso’, isso é mentira. Isso é alguém procurando receber esmola do
Estado”, diz. “Eu acho que o único motivo para elas fazerem isso não é porque
se sentem injustiçadas, mas porque querem continuar com o subsídio do Estado,
de algum jeito.”
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