Nos últimos 20 anos, primeiro lentamente, mas de forma cada
vez mais perceptível, o telefone de Yvonne Bezerra de Mello parou de tocar.
Por duas décadas, Mello, de 66 anos, manteve o mesmo número
fixo em seu espaçoso apartamento em uma área nobre da orla do Rio de Janeiro,
para que sobreviventes de um dos piores episódios de violência na história do
Brasil mantivessem contato.
Mais de 60 crianças e adolescentes que dormiam do lado de
fora da igreja da Candelária, no centro da cidade, escaparam com vida depois
que a polícia atirou sumariamente nelas em uma noite de inverno em 1993. Oito
morreram, seis menores e dois maiores de idade.
"Eu nunca mudei meu número de casa, então nos primeiros
dez anos eles me ligavam o tempo inteiro", diz Mello, bebendo chá de
camomila.
"Eu fiquei em contato com os sobreviventes por muitos
anos. Muitos deles morreram. Pouco a pouco, eles não ligam mais, então o fim
foi trágico."
Ligação agitada
Para Mello, uma professora que já trabalhava com as crianças
da Candelária anos antes da chacina, os eventos do dia 23 de julho começaram
com uma chamada telefônica.
"Eles me ligaram e disseram que havia muito tumulto.
Havia um protesto no local e muitos policiais", relembra.
"Eu fui para lá às 17h. De repente, a polícia veio e
prendeu um menino que não pertencia ao grupo. Ele estava cheirando cola. Eles
(as crianças) ficaram muito aborrecidos e jogaram pedras nos policiais. Eu
fiquei lá até as 20h."
"Não havia celulares e nenhuma maneira de fazer uma
ligação a cobrar de um telefone público. Então eu dei a eles três moedas e
disse: 'Se algo acontecer, me liguem'."
"Naquele dia, toda a minha família foi para a cama e eu
fiquei acordada vendo televisão, completamente vestida. Eles disseram que eu
fui a primeira pessoa a receber uma ligação", diz.
Quando Mello chegou ao local, ela encontrou as crianças, que
a esperavam agitadas.
Depois de tentar prestar os primeiros socorros aos que
estavam feridos ou morrendo, ela organizou os sobreviventes e os levou em sua
van, oito a oito, para a delegacia de polícia.
Há depoimentos conflitantes a respeito do motivo da chacina,
que aconteceu às 23h daquela noite. Alguns dizem que os policiais queriam
vingança por uma briga anterior e outros afirmam que os atiradores eram
policiais de folga que teriam sido pagos para "limpar a cidade" de
crianças de rua.
A justiça foi feita?
De acordo com um relatório da Anistia Internacional, nove
homens estariam envolvidos na chacina. Após anos de processos judiciais, três
policiais foram presos. Nelson Oliveira dos Santos Cunha foi condenado a 261
anos de prisão em novembro de 1996, Marcos Aurélio Dias Alcântara foi condenado
a 204 anos em 1998 e, após uma série de apelos, Marcos Vinicius Borges Emanuel
foi condenado a 300 anos de prisão em 2003.
Atualmente, os três estão soltos. O terceiro, Marcos Emanuel,
foi o último a deixar a prisão, após receber um indulto da Justiça em junho de
2012. Um ano depois, após apelos do Ministério Público estadual, ministros do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) anularam o indulto e o ex-policial é
procurado pela polícia.
"O aniversário do crime é motivo de reflexão sobre a
persistência da violência policial no Brasil" disse a Anistia
Internacional em um comunicado. "No caso do Rio de Janeiro, após duas
décadas, tem havido uma sucessão de execuções extrajudiciais do mesmo
tipo."
Vidas curtas
Depois de 20 anos, suspeita-se quase todos os sobreviventes
da chacina já tenham morrido, a maioria deles em circunstâncias igualmente
violentas.
"Dos últimos dois de quem ouvi falar, um morreu com um
tiro há três anos e uma garota foi presa e levada para um hospital
psiquiátrico. Gina. Eles me ligaram e disseram que ela falou de mim", diz
Yvonne de Mello.
Elizabeth Cristina Borges de Oliveira Maia, conhecida como
Beth, teria 35 anos hoje, mas foi morta com um tiro na porta de sua casa em
2000, um mês antes de testemunhar em uma das audiências relacionadas ao apelo
para a redução da pena de Emanuel. A imprensa local disse que a morte foi
relacionada com o tráfico de drogas.
Sandro do Nascimento, de 21 anos, tornou-se o sobrevivente
mais conhecido da chacina depois de assaltar um ônibus e fazer todos os
passageiros reféns em 12 de junho de 2000. Sandro foi morto após ser capturado
por policiais, numa disputa que culminou na morte de uma das reféns. Sua
história foi transformada em um filme e um documentário.
Em uma missa especial na igreja da Candelária da sexta-feira
passada, peregrinos católicos, ativistas e participantes de projetos sociais se
reuniram antes da Jornada Mundial da Juventude para homenagear as vítimas que
morreram na chacina e nos anos seguintes.
Rosas brancas foram empilhadas sob a cruz do lado de fora da
igreja, onde os nomes das oito crianças e adolescentes mortos estavam pintados.
"Até hoje nós não sabemos por que o massacre
aconteceu", disse Patricia Oliveira, de 39 anos, uma das organizadoras da
homenagem. "É hora de refletir mais uma vez."
Nova geração
As autoridades do Rio de Janeiro se recusaram a comentar o
aniversário da chacina, dizendo estarem ocupadas com as preparações para a
visita do papa Francisco, que chegou à cidade na segunda-feira.
Olhando desenhos de crianças da Candelária que mostravam
mensagens coloridas de paz e esperança, Yvonne Bezerra de Mello fala sobre como
a situação nas ruas mudou.
Depois de continuar a ensinar a crianças nas ruas por quatro
anos, ela abriu sua própria escola no Complexo da Maré. A ONG Projeto Uerê é
uma escola-modelo que atende 480 crianças.
"Trabalhar nas ruas era muito complicado e eu tinha que
fazer trabalho de prevenção, por isso abri minha própria escola", diz.
"Hoje seria impossível fazer esse tipo de trabalho (nas
ruas) com o (aumento do consumo de) crack. Com o crack, eles são como
zumbis."
Mas Mello observa também o que não mudou. "Acho que há
a mesma quantidade de crianças negligenciadas. Há muitas crianças de rua no
Rio. Elas vão para as ruas porque não podem ir para casa. Isso acontece ainda
hoje. Se você vê as crianças pequenas trabalhando, é porque as famílias
mandaram", relata.
Ela critica ainda o desfecho do caso na justiça. "(Os
policiais responsáveis pela chacina) ficaram na cadeia por 11 anos, não mais do
que isso. É terrível. Se eles são condenados a 30 anos, deveriam cumprir 30
anos. O problema no Brasil é a impunidade. Esse sistema eu não posso
mudar."
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