A Associação Americana de Psiquiatria está prestes a publicar a nova versão do DSM, o 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', livro conhecido como a "bíblia da psiquiatria". Com ele, são criadas novas doenças e ressurgem velhos temores de mais epidemias de transtornos mentais.
A partir deste final de semana, algumas coisas na psiquiatria vão mudar — durante o encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria (APA, sigla em inglês), será divulgada a nova edição do manual que define os critérios para diagnóstico de todos os transtornos mentais classificados pela entidade. Conhecido como a "bíblia da psiquiatria", esse documento é resultado de uma década de debates entre 1.500 especialistas e de um compilado de novas descobertas feitas desde a publicação da última versão revisada do manual, há 13 anos. Esta será a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla em inglês para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). A primeira versão do documento, o DSM-I, foi publicada em 1952, e a mais recente, o DSM-IV, saiu pela primeira vez em 1994 e foi atualizada em 2000.
A importância do DSM é gigantesca. Apesar de ser feito por um entidade americana, ele é influente em todo o mundo. É nele que a Organização Mundial da Saúde (OMS) se baseia para classificar os transtornos psiquiátricos presentes na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, o CID, adotado pela maioria dos países, inclusive o Brasil. "O DSM é frequentemente utilizado por médicos brasileiros para que eles façam um diagnóstico, principamente médicos de entidades universitárias. Na área de pesquisa, o DSM é a principal referência", diz Teng Chei Tung, médico do Instituto de Psiquiatria da USP. Ou seja, qualquer mudança no DSM é refletida em consultórios, hospitais, clínicas e laboratórios do mundo inteiro.
Com a nova versão do documento, a psiquiatria ganhará algumas novas doenças que não eram listadas anteriormente e também sofrerá mudanças importantes em condições como a depressão e o autismo. E como consequência natural dessas mudanças, reacende-se o debate sobre qual é, de fato, o limite entre o comportamento humano normal e os sintomas de uma doença psiquiátrica que precisa ser tratada com remédios. E sobre quais são as consequências da criação de mais diagnóstico que acusam uma doença mental.
Novas doenças — Uma das mudanças que estarão presentes no novo manual é a criação de um novo diagnóstico para crianças que têm humor instável, mas que não seguem todos os critérios para serem diagnosticadas com transtorno bipolar. Trata-se do "transtorno disruptivo de desregulação do humor", que pode ser apresentado por "crianças que apresentam irritabilidade persistente e episódios frequentes de surtos de comportamento três ou mais vezes por semana por mais de um ano."
A decisão de criar esse novo diagnóstico gerou muita discussão entre os psiquiatras. Por um lado, especialistas acreditam que o novo diagnóstico pode evitar que crianças com um determinado transtorno psiquiátrico deixem de ser identificadas e sejam privadas de receber tratamento. Ou então que sejam diagnosticadas de forma incorreta — o mais provável, neste caso, com o transtorno bipolar — e recebam medicamentos indevidos. Uma vez que a psiquiatria não é uma ciência exata, no entanto, é difícil determinar quais serão as consequências da criação de um novo diagnóstico — se ele vai ajudar a tratar pacientes que realmente precisavam ser tratados, ou então se vai desencadear uma epidemia artificial.
Para Rajiv Tandon, psiquiatra da Universidade da Flórida que participou do grupo que revisou os transtornos psicóticos para o DSM-5, a criação do diagnóstico do transtorno disruptivo de desregulação do humor é algo positivo. "A preocupação é que crianças com dificuldades para regular o seu humor sejam classificadas como bipolares. Essas crianças não são más, não são antissociais. Elas têm um distúrbio de humor que precisa de atenção", disse o médico ao site de VEJA.
Um exemplo, porém, da falta de consenso entre os próprios psiquiatras é a opinião do psiquiatra Allen Frances, presidente da comissão que produziu o DSM-IV e um dos maiores críticos da nova versão do manual. Para ele, o novo diagnóstico "é uma ideia terrível que transforma a birra infantil em uma desordem mental e que pode aumentar o uso inapropriado de medicamentos", afirmou ao site de VEJA.
Excesso de diagnósticos? — É difícil precisar se o DSM, quando é republicado com um maior número de doenças, de fato desencadeia um aumento do número de diagnósticos psiquiátricos. E é mais difícil ainda dizer até que ponto tal aumento é positivo e quando ele passa a ser prejudicial. É só pensar no caso do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), que se tornou cada vez mais comum entre crianças nos últimos anos. Nos Estados Unidos, onde os dados sobre essa condição são constantemente atualizados, o número de crianças com TDAH no país aumentou 41% na última década, segundo dados divulgados em abril pelo Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês), órgão federal de saúde do país. Porém, é preciso lembrar, o último DSM foi publicado há quase 20 anos – ou seja, os critérios para diagnóstico dessa condição não muda desde então.
"Os números mostram que, no caso do TDAH, as taxas subiram por alguma outra razão que não tem a ver com o DSM. Pode ser que isso esteja relacionado à pressão das indústrias farmacêutica para vender mais remédios ou à pressão que os pais fazem para que seus filhos se saiam melhor na escola, por exemplo. Mas esse aumento também revela que casos de TDAH que não seriam reconhecidos agora são tratados, e que agora os médicos finalmente são capazes de diagnosticar uma criança com o problema", diz Michael First, psiquiatra da Universidade Columbia, em Nova York. "O lado ruim é que pode haver crianças normais que são normalmente hiperativas, mas que recebem o diagnóstico e passam a tomar remédios."
Diagnóstico impreciso — Talvez o grande responsável por todas as controvérsias que acompanham cada edição do DSM seja o próprio método de diagnóstico do manual, que, atualmente, é feito a partir do número e da duração de sintomas que um paciente apresenta. O problema desse sistema é o fato de ele não explicar o que, de fato, está acontecendo no organismo e no cérebro de um paciente que apresenta algum distúrbio. "É muito frustrante para nós vermos que as classificações do DSM, embora sejam muito úteis em comunicar aos pacientes sobre os transtornos, não vão longe o suficiente para nos ajudar a entender as doenças", diz Michael First.
Diante disso, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH, sigla em inglês) criou, em 2009, o Projeto de Pesquisa em Domínio de Critérios (RDoc na sigla em inglês), programa que tem como objetivo de investir em novos estudos que possibilitem, no futuro, o diagnóstico psiquiátrico feito com base nos genes, nos circuitos cerebrais e nos biomarcadores — ou seja, nas causas biológicas das doenças, e não apenas nos sintomas. A ideia não é criar um concorrente ou um substituto para o DSM, mas sim produzir estudos cujos resultados ajudem a melhorar as futuras versões do manual.
Na opinião de First, que além de consultor do DSM-5, também trabalha como consultor do RDoc, passar a usar esses conhecimentos científicos na prática clínica pode diminuir as disputas em torno do DSM, mas não acabar com elas. "Qualquer sistema que tenha a ver com transtornos mentais vai levantar preocupações, pois isso envolve estigmatizar o comportamento das pessoas. O RDoc pode fazer com que o diagnóstico psiquiátrico seja mais objetivo, mas mesmo assim ele vai lidar com a mente e com o potencial de prejudicar as pessoas ao rotular algum problema como um distúrbio mental", diz.
As principais mudanças no DSM-5
Depressão
Como era: O diagnóstico do "transtorno depressivo maior", ou depressão, podia ser feito caso o paciente apresentasse ao menos cinco entre nove sintomas – como humor deprimido na maior parte do dia, perda ou ganho significativo de peso, problemas de sono e fadiga. No entanto, o DSM-IV contém uma norma em que exclui o diagnóstico caso os sintomas depressivos sejam apresentados por um paciente que está de luto. "Após a perda de um ente querido, mesmo que os sintomas depressivos tenham duração e número suficientes para satisfazerem os critérios para eu Episódio Depressivo Maior, eles devem ser atribuídos ao luto em vez da depressão, a menos que persistam por mais de dois meses", diz o texto do manual.
A mudança: No DSM-5, a exceção feita ao luto será retirada. Assim, uma pessoa que está de luto por ao menos duas semanas pode ser diagnosticada com depressão. No lugar da regra, haverá duas notas pedindo cautela aos médicos na hora de fazer o diagnóstico em casos como esse. O restante da descrição do transtorno depressivo maior será mantido.
Humor instável
Como era: Depois da publicação do DSM-IV, em 1994, houve um aumento excessivo de diagnósticos de transtorno bipolar em crianças. Em 15 anos, esse número aumentou em cerca de 40 vezes, o que acabou criando uma "falsa epidemia" de bipolaridade entre pacientes infantis, segundo Allen Frances, presidente da comissão do DSM-IV. Muitas crianças que apresentavam humor instável foram diagnosticadas com a doença e medicadas com antipsicóticos mesmo sem corresponderem aos critérios para diagnóstico de transtorno bipolar.
A mudança: Os responsáveis pelo DSM-5 decidiram criar um novo diagnóstico para crianças que têm problemas em estabilizar o humor, mas que não são bipolares. Foi assim que surgiu o transtorno disruptivo de desregulação do humor, que inclui jovens de cinco a 18 anos de idade que apresentarem episódios frequentes (três vezes por semana e durante um ano ou mais) de irritabilidade e descontrole comportamental. A criação dessa desordem, porém, não impede que crianças sejam diagnosticadas como bipolares.
Autismo
Como era: O transtorno autista, síndrome de Asperger, transtorno desintegrativo da infância e transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação eram quatro categorias de diagnóstico separadas.
A mudança: O DSM-5 terá uma nova classificação chamada "transtorno do espectro autista", que vai abranger essas quatro condições. "O 'transtorno do espectro autista' reflete um consenso científico de que essas quatro doenças separadas são, na verdade, uma mesma condição com diferentes níveis de gravidade dos sintomas", disse a APA (Associação Americana de Psiquiatria) em comunicado. De acordo com a Associação, o "transtorno do espectro autista" se caracteriza por "déficits em comunicação e interação sociais" e "conduta, atividades e interesses restritivos repetitivos". O manual quer simplificar o diagnóstico de autismo, mas vai fornecer aos médicos exemplos de pacientes que se enquadram em cada um dos quatro tipos de condições integradas no transtorno do espectro autista. A comissão responsável pela nova revisão do DSM-5, porém, estima que essa mudança poderia excluir 10% dos casos de autismo já diagnosticados. No entanto, a APA garantiu que o manual vai reforçar que todas as pessoas já diagnosticadas com autismo ou síndrome de Asperger continuarão com o diagnostico após o DSM-5.
Déficit de atenção
Como era: O DSM-IV descreve 18 sintomas do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), sendo que eles estão divididos em dois núcleos: os relacionados à falta de atenção e os relacionados à hiperatividade/impulsividade. Para ser diagnosticada com a condição, uma criança precisava apresentar pelo menos seis sintomas de um dos núcleos — e o surgimento desses sintomas que causaram algum tipo de dificuldade deveria ter ocorrido antes dos sete anos de idade.
A mudança: O DSM-5 manterá os 18 sintomas relacionados ao TDAH, mas alterou a faixa-etária em que eles devem surgir dos sete para os 12 anos de idade — ou seja, estendeu os anos em que é possível surgir o transtorno. De acordo com a APA, essa decisão foi baseada em pesquisas que mostraram que não há diferenças clínicas (gravidade do problema e resposta ao tratamento, por exemplo) entre crianças diagnosticadas com TDAH antes dos sete ou dos 12 anos. Críticos da decisão, porém, temem que essa alteração vá aumentar de forma excessiva o número de adultos diagnosticados com TDAH.
Compulsão alimentar
Como era: O problema estava presente no apêndice do DSM-IV, o que quer dizer que ele não era considerado como um transtorno mental, mas que merecia futuras pesquisas para melhor compreensão.
A mudança: O DSM-5 vai considerar a compulsão alimentar como um transtorno psiquiátrico relacionado à alimentação, que já incluía, por exemplo, anorexia nervosa e bulimia. Para ser diagnosticada com o distúrbio, uma pessoa precisa apresentar episódios de alimentação compulsiva ao menos uma vez por semana e durante três meses ou mais.
TPM
Como era: A desordem disfórica pré-menstrual, a forma mais grave de tensão pré-menstrual, estava no apêndice do DSM-IV, onde foi classificada como um problema que merecia mais atenção (e não como um transtorno psiquiátrico). De acordo com o texto do apêndice, a condição ocorre quando ao menos cinco sintomas são apresentados pela mulher na maior parte do tempo durante a última fase do ciclo menstrual e na maioria dos ciclos do último ano. São sintomas como humor deprimido, ansiedade, tensão, irritabilidade e problemas de sono.
A mudança: No DSM-5, a desordem disfórica pré-menstrual será classificada como um transtorno mental.
Transtorno da escoriação da pele (skin-picking)
Como era: Não era considerada como uma doença psiquiátrica.
A mudança: A doença será uma das condições inclusas nos transtornos obsessivos-compulsivos e doenças relacionadas. A APA não divulgou detalhes sobre como será o diagnóstico desse problema. Mas sabe-se que ele ocorre quando uma pessoa cutuca a sua pele com frequência, resultando em sangramento, dor ou descamação da pele, como forma de aliviar uma situação de stress, tensão ou excitação. Em um comunicado, a APA afirmou que a doença será incluída no DSM-5 por haver "fortes evidências para a validação e a utilidade clínica desse diagnóstico."
Reportagem de Vivian Carrer Elias e Juliana Santos
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