A temperatura é de transpirantes 38º C no estádio lotado. Jacob Zuma, o presidente do Congresso Nacional Africano (CNA), já está discursando há uma hora e as coisas estão começando a desandar em sua festa cuidadosamente coreografada.
É 8 de janeiro de 2012 e o CNA está celebrando seu aniversário em Mangaung, a cidade conservadora sul-africana onde o movimento de libertação mais antigo e mais admirado do continente foi fundado por profissionais negros há 100 anos. Mais de 100 mil apoiadores compareceram.
À medida que prossegue o penoso discurso de Zuma, a multidão começa partir. Apenas 5.000 apoiadores obstinados permanecem no estádio quando ele termina, uma hora e meia depois. O vice de Zuma, e provavelmente seu adversário para a presidência quando o partido realizar sua convenção em dezembro, Kgalema Motlanthe, propõe um brinde.
"Os líderes agora desfrutarão o champanhe, e é claro que o fazem em nome de vocês por meio de seus lábios", ele diz, erguendo a taça para o estádio quase vazio.
O pronunciamento orwelliano de Motlanthe é a melhor descrição de como o partido do ex-presidente Nelson Mandela se transformou em uma sombra corrupta, divisora e gananciosa do que já foi. O partido que prometia "uma vida melhor para todos", em 1994, agora está cada vez mais preocupado com a riqueza material de alguns de seus membros. O próprio CNA conta com um veículo de financiamento, a Chancellor House, que supostamente lucra com os contratos do governo e deverá ganhar bilhões de rands com a construção de novas usinas elétricas.
Nem sempre foi assim. Após 27 anos na prisão, Mandela saiu para liderar o CNA de debilitantes três décadas no exílio, o transformando em uma organização social democrática que abraçou a reconciliação entre negros e brancos na África do Sul. Com seu adversário, F.W. de Klerk do Partido Nacional (que presidiu durante o apartheid), ele moldou um país profundamente dividido em um Estado unido e selou um pacto para governarem juntos em um arranjo de coalizão, em 1994.
Os dois partidos escreveram e adotaram uma Constituição que garante virtualmente todas as liberdades e direitos desfrutados nas democracias do Ocidente. O governo também criou a Comissão da Verdade e Reconciliação para tratar das atrocidades do passado, e as políticas prioritárias se concentravam em fornecer serviços aos pobres.
Mas passados 18 anos da democracia da África do Sul, rachaduras estão surgindo no acordo político extraordinário conseguido por Mandela e seu partido. Nos últimos meses, o CNA culpou a Constituição por seu próprio fracasso na redução do desemprego e da pobreza. Além disso, o CNA está atolado em corrupção e em uma cultura de "ostentação", que leva muitos dos seus integrantes a pedirem por mudanças na Constituição e por um repensar do consenso liberal da África do Sul.
O CNA se vê repleto de divisões, à medida que várias facções disputam posições de liderança pelas quais possam promover o clientelismo. Em dezembro, será realizada a convenção na qual serão decididos os principais cargos do partido. Isso apenas intensifica as rivalidades. O efeito tem sido uma exposição da paranoia e podridão no coração do CNA.
O ataque à Constituição liberal do país agora vazou para as ruas. Em maio, Zuma apelou à Justiça pela remoção de uma pintura de um ex-ativista antiapartheid. Na pintura, Zuma é retratado como uma imagem de Lenin, mas com a genitália exposta. Os apoiadores de Zuma vandalizaram a pintura e fizeram demonstrações do lado de fora da Goodman Gallery em Johannesburgo, onde a pintura, intitulada "A Lança", estava exposta, levando ao fechamento da galeria.
O que saiu errado no país apelidado de "Nação Arco-Íris de Deus" pelo arcebispo Desmond Tutu, ganhador do Nobel? A corrupção se tornou endêmica, com 83% dos adultos urbanos dizendo em uma pesquisa em janeiro que a corrupção é um modo de vida no país. O mesmo ocorre no CNA.
"O fluxo de caixa é tamanho que o dinheiro tem mais poder do que ideologia política e consciência política –essa é a maior ameaça", diz Gwede Mantashe, o secretário-geral do CNA. O chefe da Unidade Especial de Investigação criada para investigar a corrupção nos altos escalões disse ao Parlamento que entre 38 bilhões e 51 bilhões de rands (US$ 5 bilhões a US$ 6 bilhões) são perdidos por ano para a corrupção e negligência no serviço público.
O maior risco para a democracia sul-africana, entretanto, vem de dentro do próprio CNA. Zuma sucedeu Thabo Mbeki após se esquivar de modo controverso de acusações de corrupção envolvendo uma aceitação de propina em um negócio de armas no valor de 38 bilhões de rands. Desde então, Zuma tem atacado sistematicamente a Constituição do país, o judiciário e a imprensa.
Por meio do controle rígido dos serviços de inteligência, onde ele colocou dirigentes leais do partido e ex-espiões do apartheid, Zuma começou a extirpar de seu partido aqueles que poderiam disputar contra ele a presidência do partido em dezembro. O chefe de notícias e atualidades da South African Broadcasting Corp. foi suspenso, supostamente por ter dado tempo de mais no ar aos detratores de Zuma.
E o que acontecerá agora? O maior ativo do partido é sua rica história –mas ele não durará. Repetidamente ridicularizado pelo CNA como o partido que representa os interesses da minoria branca, a Aliança Democrática de centro-direita de oposição conta com um jovem e dinâmico líder parlamentar negro chamado Lindiwe Mazibuko. A Aliança Democrática recebeu apenas 1,7% dos votos em 1994, que incharam para 16,7% nas eleições gerais de 2009. Seus votos saltaram para 23,8% nas eleições locais de maio do ano passado, levando Mazibuko a declarar: "Nós podemos governar a África do Sul em 2019".
À medida que o CNA perde continuamente apoio, a questão para a África do Sul é se o partido permitirá que uma oposição odiada assuma pacificamente após uma vitória nas urnas. Segundo a maioria das previsões, o CNA se manterá no poder nas eleições de 2014 –mas a eleição seguinte será muito mais apertada.
Moeletsi Mbeki, o respeitado analista político e irmão do ex-presidente, Thabo, diz que esse será o grande teste para a África do Sul. Infelizmente, os sinais já são preocupantes. Quando a Aliança Democrática realizou em maio uma marcha pacífica contra um sindicato aliado do CNA, o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos, ou Cosatu, ela foi recebida por sindicalistas armados com tijolos, armas de eletrochoque e pedras. Na violência resultante, quatro pessoas ficaram feridas.
"O inimigo está em campo aberto... defendam o Cosatu", disse o sindicato. Não é um bom presságio para mudança eleitoral ou para a Nação Arco-Íris.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
Reportagem de Justice Malala
fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/prospect/2012/07/10/corrupcao-ameaca-democracia-na-africa-do-sul.htm
foto:blogdenosdois.com
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