Após mais de dez anos de discussões e de polêmicas dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a necessidade de se estimular a pesquisa e o desenvolvimento sobre as doenças negligenciadas, as patologias dos países pobres que interessam pouco à indústria farmacêutica por não constituírem um mercado comercial, talvez a solução esteja próxima.
Um grupo de especialistas, nomeado em 2010 pela OMS, acaba de divulgar o resultado de seus trabalhos, colocando no topo das recomendações a adoção de uma convenção internacional obrigatória a esse respeito. Até hoje, uma única convenção-quadro foi criada sob a OMS, a do combate ao fumo, que entrou em vigor em 2005.
Se for adotado, esse tratado internacional poderá obrigar os Estados-membros da OMS a dedicarem pelo menos 0,01% de seu produto interno bruto (PIB) às pesquisas sobre essas doenças. Moléstias como a leishmaniose visceral, a doença do sono, a doença de Chagas ou a elefantíase afetam 1,4 bilhão de pessoas, mas em 2010 só captaram US$ 3,2 bilhões (R$ 6,14 bilhões).
Esse financiamento poderá passar para US$ 6 bilhões, graças a um fundo comum, administrado pela OMS, que estabeleceria as prioridades em função das necessidades de saúde pública. O modelo dominante, que deixa aos laboratórios farmacêuticos a escolha de desenvolver ou não novos medicamentos, seria seriamente abalado por isso.
“É preciso agir diante da incapacidade dos sistemas de incentivo existentes de gerar trabalhos de pesquisa e desenvolvimento suficientes no setor privado e público para atender às necessidades dos países em desenvolvimento”, diz o relatório de 230 páginas publicado no dia 5 de abril, mas que começa a ser discutido, visando a 65ª Assembleia Mundial da Saúde que será realizada em Genebra entre 21 e 26 de maio.
Na última sexta-feira (4), muitos especialistas estiveram reunidos em Genebra em torno de Joseph Stiglitz, durante um seminário dedicado à questão. O Prêmio Nobel de Economia comemorou “a chance de uma grande mudança”, que daria nascimento a um sistema eficaz de inovação, do qual os países mais pobres não seriam mais excluídos.
O professor norueguês John-Arne Rottingen, que preside o grupo de especialistas da OMS, acredita que o “trem está andando” para um novo modelo que permitiria não mais repercutir os custos da pesquisa nos preços dos medicamentos.
Os laboratórios farmacêuticos sempre explicaram que para financiar a pesquisa sobre novas moléculas, processos muito caros, somente o sistema de patentes (que impede sua cópia durante 20 anos) era viável. Mas esse sistema eleva o preço dos produtos farmacêuticos, tornando-os inacessíveis aos países em desenvolvimento.
O relatório também recomenda as “comunidades de patentes”, que permitem uma gestão coletiva dos direitos de propriedade intelectual, para fazer com que o preço dos medicamentos diminua.
Para muitas ONGs e atores da saúde pública que defendem essas soluções, “essa virada é incrível”, como explica Patrick Durisch, da Declaração de Berna. Todos se lembram dos trabalhos do grupo anterior de especialistas da OMS, dirigido pela australiana Mary Moran, que havia provocado polêmica. No fim de 2009, documentos postados no WikiLeaks revelavam que a Federação Internacional dos Fabricantes de Medicamentos (IFPMA) teve acesso em primeira mão a um esboço e conseguiu levar a melhor. O relatório final não manteve nenhuma das propostas que revisavam o sistema de propriedade intelectual tal qual é defendido pelos grupos farmacêuticos.
Vinte e um novos especialistas foram encarregados de retomar a “batata quente”. Algumas ONGs se preocuparam na época com a nomeação de um dos especialistas, o suíço Paul Herrling, diretor de pesquisa da Novartis. O novo grupo, na verdade, tem mostrado uma transparência inédita, tendo organizado de abril de 2011 a março de 2012 cinco reuniões amplamente abertas a discussão.
Resta saber se essas recomendações serão seguidas, e em que ritmo. Rottingen convida os Estados-membros da OMS a se pronunciarem o mais breve possível, durante a 65ª Assembleia Mundial da Saúde. “Não queremos continuar em um status quo, pois todos concordam que a situação atual não é viável”, ele explica.
No entanto, alguns países estão tentando ganhar tempo. A Suíça, que defende sua indústria farmacêutica, propõe adiar em um ano qualquer decisão, a fim de “estudar seriamente as propostas”.
Reportagem de Agathe Duparc para o jornal francês Le Monde
foto:maurilioferreiralima.com.br
Tradutor: Lana Lim
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