Centenas de jovens imigrantes estão se escondendo de suas famílias na Alemanha, após fugirem da opressão, da violência física e até de ameaças de morte. Assistentes sociais e organizações humanitárias ajudam as mulheres a tirarem novas identidades e construírem vidas independentes para si mesmas, mas o risco de vingança de parentes obcecados com a honra permanece.
Bahar fugiu cedo em uma manhã de inverno, um ano e meio após sua mãe ser assassinada. Ela ajudou seus irmãos mais moços a se prepararem para a escola, depois deu um beijo em suas testas. Seu tio e seus irmãos ainda estavam dormindo. Bahar foi de ponta do pé para fora do apartamento. De meias, desceu as escadas e foi até a porta. Depois, correu por sua vida.
Hoje, Bahar tem 26 anos e gosta de usar salto alto. Ela escolheu um café popular em uma pequena cidade como ponto de encontro. Ela ainda usa uma maquiagem modesta e seu cabelo preto está preso em um coque. Ela sorri insegura e se apresenta usando o nome em seu novo passaporte que, para sua proteção, não pôde ser usado neste artigo.
A família de Bahar veio do Iraque para a Alemanha em 1996. Eles moraram na cidade de Halle an der Saale pelos primeiros dois anos, em um apartamento com uma cozinha suja. Seu pai achava que a maior parte dos empregos estava aquém de sua capacidade; ele batia na mulher e "apagava todos os cigarros na sua pele", diz Bahar. O pai algumas vezes sumia por meses. Bahar suspeita que ele estivesse envolvido em atividades criminosas. "Tudo sempre era pacífico sem ele. Uma vez, fizemos até um piquenique", diz Bahar. Quando fugiu, levou algumas fotos desse dia, mas não aguenta olhar para elas.
Nesses dias felizes, quando ficava sozinha com seus seis filhos, a mãe de Bahar chegou à conclusão que queria se separar de seu marido. Ela buscou informações com Bahar na prefeitura local sobre a lei do divórcio alemã. Quando o pai soube, pegou uma faca e se trancou no quarto com a esposa, em uma noite de verão de 2003. Bahar mostra suas mãos com duas cicatrizes: as evidências de sua tentativa de salvar a mãe.
Com a mãe morta e o pai condenado à prisão perpétua, um tio assumiu o controle de Bahar e seus cinco irmãos. Ele conseguiu passar uma impressão de verdadeira preocupação às autoridades do escritório de assistência social, mas era um engodo. Ele ligava música alta antes de começar a bater nas crianças. Bahar usava maquiagem para esconder os machucados. "Eu não tinha permissão para ler livros e nem podia mais sair na sacada", diz ela. "Só cozinhar, lavar e limpar".
Bahar aguentou sua vida de escrava por um ano e meio. "Depois, sabia que, se não fosse embora, eu ia me matar".
Vida com medo
A Alemanha no século 21, quase 60 anos após a chegada dos primeiros trabalhadores convidados, é um país no qual centenas de imigrantes do sexo feminino como Bahar vivem escondidas de suas famílias. Elas deixaram tudo para trás: sua casa, seus amigos e parentes. Elas se recusam a abandonar a esperança ou desmoronar pela incompatibilidade de seus desejos com as expectativas de suas famílias ou meio social. Elas não querem se conformar com os valores tradicionais das regiões de onde vêm suas famílias. Em vez disso, querem viver como as mulheres ocidentais: livres, independentes e emancipadas.
Todo ano, a Papatya, uma organização de ajuda de Berlim, aceita 60 meninas e jovens que fugiram de suas famílias por causa de conflito cultural e que enfrentam a perspectiva de abdução, casamento forçado ou até a morte. O Rose Shelter em Stuttgart recebe 80 pedidos por ano de mulheres que sofreram dessa forma. A organização de jovens Yasemin documenta cerca de 400 consultas, enquanto o site Sibel recebe mais de 300 ligações com pedidos de ajuda por ano. A organização Peri e.V. alega ter ajudado cerca de 50 garotas e mulheres que fugiram de suas famílias desde 2008.
A lista dos países de origem das imigrantes é longa. Inclui Turquia, Kosovo, Albânia, Paquistão, Afeganistão, Irã e Índia. Há poucos meses, um homem do Sri Lanka jogou água fervendo em sua filha em uma cidade na Alemanha. Ela tinha se recusado a aceitar um casamento forçado.
Bahar fugiu para um abrigo de mulheres, mas ela ainda estava com medo. "Via meu tio em cada esquina", diz ela. Se alguém parecesse suspeito no ônibus, ela saltava na próxima parada, segurando uma lata de spray de pimenta. Bahar mudou-se para quatro lugares diferentes desde que fugiu, e hoje mora em uma cidade pequena. Ela acabou a escola, entrou em um programa de treinamento vocacional e atualmente está tirando sua carteira de motorista.
Mas apesar de sua nova liberdade, Bahar ainda é prisioneira de sua família. Ela tem que mentir para as pessoas, mesmo as próximas a ela, inclusive amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Qualquer um que fique sabendo de seu passado e seu nome verdadeiro pode impor um risco a ela. Bahar não permite que ninguém entre em sua "fortaleza", como ela chama seu apartamento -nem mesmo seu namorado alemão.
"Ele ficou surpreso por meus pais serem tão tolerantes, mas não entendia porque eu nunca os visitava. Ele sentiu que eu estava escondendo algo", diz Bahar, abaixando a cabeça. Quando ela se recusou a se abrir para ele, depois de seis meses juntos, ele terminou o namoro.
A família nem era muito religiosa
Bahar está só com seu segredo, mas Mariam, 28, de origem libanesa, pode compartilhar os seus com seu namorado Thomas, 34. Três anos e meio atrás, eles fugiram juntos da família de Mariam, mas hoje vivem com temor constante de serem descobertos e das consequências disso. "Uma parente minha foi morta pelo marido, porque ela o deixou", diz Mariam. "Minha família achou que era a coisa certa a se fazer".
Ela é uma jovem silenciosa de olhos negros e traços suaves, mas tem manchas vermelhas no pescoço, provavelmente um sinal de sua ansiedade. "Se minha família nos encontrar, estamos mortos", diz ela.
Mariam tinha três anos de idade quando sua família mudou-se do Líbano para a Alemanha. Ela tinha 11 irmãos. A vida das meninas era controlada por regras e proibições. Ela conta que seu pai perdeu sua irmã mais velha no jogo de cartas, quando ela tinha 14 ou 15 anos. "No nosso mundo, eles colocam um anel no seu dedo e uma corrente em volta do seu pescoço e seu futuro está selado", explica Mariam.
Isso não se devia à religião, o islã, pois a família não era muito religiosa. Eles nunca oravam, e ela não era obrigada a usar o véu.
O caso de Mariam mostra que o fato de a família não orar, jejuar ou usar lenço no cabelo não é indicação da liberdade em questões de família. Tradições arcaicas e o jeito patriarcal de pensar retiram das mulheres o livre arbítrio, explica Jan Kizilhan, 46, professor de psicologia e etnologista na cidade de Freiburg, no Sudoeste da Alemanha. De acordo com Kizilhan, as grandes famílias que são mal integradas à sociedade alemã têm uma "compreensão coletiva" sobre o que as mulheres têm permissão para fazer e o que é considerado comportamento desonroso. "Essa compreensão estrutura e regula a vida em comum". Há 15 anos que Kizilhan trabalha como especialista nomeado pela justiça em assassinatos por honra.
As regras de comportamento que ele menciona vêm de uma época quando não havia polícia ou Estado de direito em muitas das regiões de origem dos imigrantes, então os patriarcas criaram suas próprias leis nas aldeias. "Em algumas famílias, essas regras são passadas, sem pensar, de geração em geração", diz Kizilhan, "e a religião é usada de forma errada para legitimá-las".
O número de mortes pode ser subestimado
Se uma mulher viola alguma norma com seu comportamento, ela prejudica a reputação de toda a família, explica o etnologista. A reputação é elementar nessas sociedades, nas quais as mulheres são tratadas como propriedade dos homens. As pessoas não gostam de fazer negócios com um homem que não tem sua mulher sob controle, pois é visto como fraco e inconfiável.
Ele pode compensar pela falha com dinheiro ou castigando a mulher de uma forma visível a todos. "Há cursos claros de ação" para esta maneira de restabelecer a honra, quando foi supostamente violada, explica Kizilhan. Nos casos mais extremos, eles incluem mortes por honra, que Kizilhan considera "um fenômeno social e não religioso".
De acordo com uma estimativa da ONU, ao menos 5.000 meninas e mulheres no mundo todo são assassinadas em nome da honra por ano. Em um estudo encomendado pelo Escritório Federal de Polícia Criminal da Alemanha, criminologistas do Instituto Max Planck de Direito Internacional Criminal identificaram de sete a 10 mortes por honra na Alemanha por ano. Os autores do estudo examinaram 78 casos de 1996 a 2005.
Kizilhan, contudo, que publicou um livro sobre os assassinatos por honra em 2006, acredita que o número é "indubitavelmente maior". Ele é muito crítico do estudo do Max Planck, e diz: "Os pesquisadores não examinaram mortes inexplicáveis e encobertas, nem estudaram os supostos suicídios, acidentes e desaparecidos".
"Eu fujo com você"
O dia em que Mariam, a jovem libanesa, colocou sua vida em perigo foi o dia em que se apaixonou por Thomas, seu chefe na lanchonete onde trabalhava. Ele já tinha notado como os irmãos dela a traziam para o trabalho todos os dias e a pegavam no final da jornada. Ele sentiu que ela sofria em casa. Em algum ponto, ele disse para ela: "Quando chegar o momento, e você quiser, eu fujo com você".
O momento chegou em novembro de 2008, após eles estarem apaixonados secretamente por um ano. O irmão de Mariam se casou e, em troca, o pai da noiva queria que Mariam se casasse com seu filho. Ele tinha visitado a família para selecionar a noiva para o filho e, após examiná-la da cabeça aos pés, inclusive seu comportamento e a forma como se movia, ele escolheu Mariam. Mas ela rejeitou a oferta, incorrendo na ira da família.
Quando Mariam contou para Thomas o que aconteceu, ele pensou por três minutos. Primeiro, encontrou uma vaga para ela em um abrigo de mulheres em outra cidade e depois jogou umas roupas em uma sacola plástica e passou a se esconder na casa de um parente. Naquela mesma tarde, os telefones de Mariam e Thomas tocaram quase ao mesmo tempo.
"Eles me disseram que eu era uma puta e que iam me matar", diz Mariam baixinho enquanto descreve as ligações. O casal se reuniu após quatro semanas. Mariam não conseguia dormir e estava em pânico constante. Para ficar perto dela, Thomas mudou-se para um abrigo para moradores de rua, porque ele não tinha fundos para outras acomodações. Seu melhor amigo levou uma surra porque não soube dizer onde estavam Thomas e Mariam.
A organização de ajuda Terre des Femmes inicialmente forneceu ao casal um quarto em uma casa segura. Depois, um assistente social ofereceu o uso de sua casa de férias na floresta. Eles moraram lá por mais de um ano, com seus pensamentos permeados pela família de Mariam. Eles temiam que qualquer contato com outras pessoas pudesse levar à sua descoberta -e tinham pânico em pensar no que aconteceria com eles então.
Amor proibido
Foi isso que aconteceu há poucos meses com Arzu Özmen, uma mulher de 18 anos de Detmold, no Nordeste da Alemanha. A jovem, da comunidade religiosa Yazidi, foi encontrada nas margens de um campo de golfe no Estado de Schleswig-Holstein, no dia 13 de janeiro. De acordo com o laudo forense, ela foi morta com dois tiros na cabeça. Onze semanas antes, os irmãos de Özmen a levaram do apartamento do seu namorado de 23 anos, Alexander.
A história de amor proibido de Özmen e da tentativa fracassada de fuga é tão trágica quanto típica. A advogada de Özmen ainda se lembra de seu primeiro encontro. Foi no dia 12 de setembro de 2011. "Ela entrou no meu escritório e disse: 'Oi, eu queria mudar de nome'". Ela estava calma, mas foi enfática, disse a advogada, especialista em direito da família que prefere permanecer anônima. "Ela me advertiu de pronto que qualquer um que advogasse em seu nome poderia esperar receber uma visita de sua família". Ficou claro para a advogada que ela teria que fazer uma série de desvios para conseguir uma nova identidade para Özmen -e apagar todos os rastros que pudessem levar à jovem.
O maior problema era a irmã mais velha de Özmen, S., que trabalhava para a prefeitura de Detmold. Seu emprego dava a ela acesso a informações internas. Ela poderia usar o endereço da firma de advocacia para descobrir o destino de Özmen. Para evitar isso, a advogada pediu a um colega em Oberhausen, a cerca de 160 km de distância, que pedisse a certidão de nascimento de Özmen em Detmold.
O advogado de Oberhausen mal submeteu o pedido e S., a irmã, contatou seu escritório pedindo um encontro com Arzu.
Nova identidade
A advogada de Özmen encontrou um cartório de registro civil na região de Vestfália que reconheceu a gravidade da situação. Özmen foi ao cartório e apresentou os documentos enviados de Detmold para a firma de advocacia em Oberhausen. Ela também entrou com queixa criminal contra sua família e submeteu uma declaração de sua advogada, na qual descrevia como era perigosa a situação de Özmen.
"A menina era cidadã alemã. Ela foi naturalizada aos três anos de idade", explica o funcionário do cartório. "Isso significa que poderia mudar o nome retroativamente para se conformar com a lei alemã". O artigo 47 do Ato Introdutório do Código Civil Alemão torna isso possível.
Em sua nova vida, Arzu Özmen queria ser chamada de Emily, Emily Ostermann. Ela mudou de aparência, cortou o cabelo e o pintou de louro.
Para garantir que as autoridades de Detmold não fossem notificadas, o cartório, a pedido de Özmen, acrescentou uma nota de restrição à sua ficha. Sob a lei alemã, isso é possível se o cartório tiver consciência das circunstâncias indicando que o indivíduo em questão pode estar em perigo mortal, se suas informações forem divulgadas. Özmen pegou seus novos documentos poucos dias antes de ser sequestrada.
Özmen encontrou seu destino quando o desejo de ver seu namorado por fim superou seu medo. Para estar com ele, ela saiu do abrigo das mulheres na noite do dia 31 de outubro.Três de seus irmãos foram indiciados por sua morte e estão esperando julgamento. Até agora, não revelaram qual deles matou Arzu.
"Tudo degringolou"
Sobair O., de Hamburgo, foi condenado à prisão perpétua por uma morte de honra. Ele tinha oito anos quando chegou à Alemanha com a família. O casamento dos pais tinha sido parte de um acordo, diz O., que hoje tem 27 anos. Quando o irmão de sua mãe se casou, o irmão da noiva foi dado à mãe de O. em troca.
O. deixou um programa de treinamento em vendas após ficar preso por duas semanas em uma prisão para jovens, porque ele não quis pedir ao seu patrão para aceitá-lo novamente. "Eu não quis ir lá e baixar a cabeça", diz O. "Não fazemos isso". É uma atitude que explica grande parte do que aconteceu depois.
No dia 15 de maio de 2008, O. matou sua irmã de 16 anos, Morsal. Ele a esfaqueou mais de 20 vezes, porque ela queria viver como uma garota alemã. Morsal sangrou até a morte.
O juiz que presidiu o caso em Hamburgo chamou de "morte por pura intolerância", um ato motivado pela honra ferida. Quando ele deu o veredito, a família de O. criou caos no tribunal.
Quando O., hoje na prisão, fala sobre Morsal, seus olhos se enchem de lágrimas. Mas é difícil dizer se ele está chorando por sua irmã morta ou por si mesmo. O que aconteceu? Ele dá de ombros. "Quando saí de casa, tudo degringolou. Subitamente, ela estava saindo com pessoas estranhas".
"Resolva isso!"
De acordo com O., os pais levaram Morsal para morar com uma tia no Afeganistão em março de 2007. "Eles queriam que ela aprendesse como uma mulher deve se comportar", diz ele. De acordo com O., Morsal disse a ele que o pai amarrou um lenço na cabeça dela enquanto ainda estavam no avião. Sua mãe teria dito que a menina teria que se casar e ter cinco filhos antes de voltar para casa.
Morsal foi mantida no Afeganistão durante um ano. "Ela ficava me ligando e me implorando para vir pegá-la. Ela estava triste e ninguém falava alemão com ela", diz O.. Quando soube que Morsal seria casada no Afeganistão, ele brigou por ela e convenceu os pais a trazerem-na de volta para a Alemanha. Sua mãe, aparentemente concordou, mas disse a O. que seria responsabilidade dele garantir "que ela não causasse mais problemas".
Uma vez de volta na Alemanha, Morsal retomou a vida da forma que gostava. Algumas vezes não voltava para casa por dias, e roubava dinheiro dele e dos pais, segundo O.. "Minha mãe costumava me ligar duas ou três vezes por dia e gritar: Onde está Morsal? Resolva isso! Todo mundo está falando de nós. Vocês estão ficando como os alemães".
O. abaixa a voz, quase para um sussurro. "Sabíamos que ela tinha um namorado, mas em nossa sociedade, uma garota não pode fazer isso."
"Eu não tinha o direito de matá-la"
E depois tinha as fofocas dos conhecidos, que diziam que Morsal estava se prostituindo. Essas acusações se provaram desastrosas -para Morsal, para O. e para toda a família. O. pediu a um primo para que fizesse Morsal encontrá-lo.
Eles se sentaram na calçada, lembra-se O., bebendo Coca-Cola e fumando cigarro. Depois, de acordo com O., o primo perguntou a ela: "É verdade que você está se prostituindo?" "Isso não é da conta de ninguém", teria respondido Morsal.
Só o que O. se lembra é que foi aí que enfiou a mão no bolso. Ele se entregou à polícia no dia seguinte. O. olha para as mãos. "Sim, eu queria proteger a honra da família na época", diz ele. "Hoje eu sei que mesmo que ela tivesse se prostituindo, eu não tinha o direito de matá-la".
No caso de Morsal, a justiça reforçou que os pais, que não foram acusados, carregavam "uma parte da culpa moral". O pai de Morsal foi condenado por maus tratos de um guarda carcerário.
O alto custo de uma nova identidade
Como proteger as imigrantes das morais, regras e perseguição de suas famílias? Johannes M., assistente social de 53 anos, cuida de mais de uma dúzia de imigrantes que fugiram de suas famílias e hoje vivem sob novas identidades. Para sua própria segurança, ele não quer que seu nome seja publicado.
Há algum tempo, M. organizou uma exposição sobre o assunto da proteção às vítimas em uma escola no Estado de Renânia do Norte-Vestfália. "Depois, muitas meninas de famílias imigrantes me procuraram para contar que não aguentavam mais a situação em casa". Toda vez que isso acontece, primeiro ele tenta avaliar o nível de sofrimento ao qual as meninas de fato estão sujeitas e se uma intervenção poderia ajudar ou apenas exacerbar a situação.
Se fugir for a única opção, o assistente social avalia que são necessários três meses para resolver todas as formalidades. "Os fundos são sempre o maior problema", diz M.. Por exemplo, ele salienta, um dia na residência custa cerca de US$260 (R$ 500). "Quase todas as instalações de proteção só aceitam alguém depois do departamento de assistência social aprovar os custos", diz M.. Por esta razão, muitas vezes se exige uma investigação intensiva das autoridades.
Nas principais cidades com grandes populações de imigrantes, como Berlim, as agências de bem- estar agora estão mais atentas ao problema do que nas áreas mais rurais. Mas mesmo na capital alemã, a assistência que as meninas receberão muitas vezes depende da experiência dos assistentes sociais.
Muito fica a cargo das agências. Se uma mulher em busca de proteção ainda não for cidadã alemã, ela pode obter uma nova identidade de forma relativamente fácil no curso da naturalização. Contudo, os Estados alemães não sabem quantas novas identidades são emitidas por país a cada ano.
Depois que a documentação é resolvida, o assistente social Johannes M. monta uma data de fuga. No dia determinado, ele senta no carro, com o motor ligado e espera que a mulher ameaçada chegue correndo. Muitas vezes, ele dirige centenas de quilômetros para levá-las para um lugar relativamente seguro. Ele sabe que a família, especialmente os homens, vão procurar determinadamente pela mulher. Para descobrir o paradeiro da renegada, as pessoas são ameaçadas e compradas, e algumas vezes a família distribui cartazes pelo país.
Aprender novas profissões
Eva K. sabe os extremos que as famílias passam em sua busca quase diária. Como diretora da organização Papatya, no escritório de jovens de Charlottenburg-Wilmersdorf, certa vez viu três homens subitamente invadirem o escritório, agarrarem uma jovem libanesa e a levarem. "Ninguém ousou resistir. Passamos meio ano procurando por ela. Ela nunca reapareceu".
É uma carga cruel viver com uma nova identidade, sem amigos ou família. "Elas são todas meninas muito obedientes, que tentam agradar a todos", diz K. "Muitas vezes ficam confusas com o fato de não conseguirem aguentar aquela vida". Elas também ficam atormentadas ao tomaremconsciência que o senso de honra dos pais é maior do que o amor por suas filhas. Uma em cada duas das mulheres foi forçada a se casar, diz K, enquanto uma em cada cinco testemunhou mortes por honra de seus parentes.
Muitas das que escaparam têm dificuldades com sua nova liberdade. "Afinal, foram criadas em sistemas que deliberadamente as mantinha dependentes", diz K.. Após passar algum tempo na Papatya, muitas vezes as mulheres se mudam para repúblicas ou residências femininas. "Muitas têm que aprender coisas da vida, como lidar com dinheiro", diz a assistente social.
O grau de opressão pelo qual as meninas ou mulheres viviam antes de fugirem depende de dois fatores: o grau em que a família era integrada na cultura ocidental e quantos irmãos as vigiavam. Em muitos casos, o papel dos irmãos é garantir "que as irmãs não façam nada que possa prejudicar a honra da família".
Pressão sobre os homens
Em sua pesquisa, Jan Kizilhan, psicólogo de Freiburg, observou uma tremenda "pressão social sobre pais e filhos". Para um estudo chamado "Socialização e crenças nas chamadas mortes por honra", ele entrevistou 21 homens de ascendência turca que tinham sido presos por mortes por honra na Alemanha. A conclusão de Kizilhan é que pouquíssimos deles exibem os traços típicos de assassinos ou de criminosos violentos. Muitos, diz ele, são pressionados pelos pais, mães ou pela comunidade. Homens como pouca educação que foram vítimas de violência eles mesmos têm maior tendência a se tornarem assassinos, diz Kizhilhan. E se o fanatismo também for um fator no ambiente social, o risco de morte por honra é particularmente alta.
Em 1994, a Corte Federal de Justiça alemã determinou que as mortes por honra seriam classificadas como homicídios por "motivos de base". De acordo com a corte, os conceitos legais e morais alemães devem ser aplicados e não os de um grupo étnico que não reconhece as normas alemãs.
O estudo do Instituto Max Planck para o Escritório Federal de Investigação Criminal demonstra que um grande número de juízes não concorda com a decisão da corte. De acordo com o estudo, o motivo de honra é considerado uma circunstância mitigadora em 25% dos casos. Em cerca de 40% dos casos, a justiça nem lidou com a questão se a honra constituía um motivo de base.
Gunter Widmaier, advogado criminal na cidade de Karlsruhe, onde a Corte Federal de Justiça se localiza, vê esse comportamento como evidência de trepidação por parte de alguns juízes de "chamar uma espada de espada, porque querem evitar recursos". O resultado insatisfatório, diz Widmaier, é que a realidade por trás de muitos crimes não é reconhecida, e como resultado é subestimada a amplitude de certos fenômenos sociais.
O fim da tolerância enganada?
Isso torna ainda mais notável um veredito pronunciado pela corte distrital de Kleve em dezembro de 2009, no caso do assassinato de Gülsüm S.. A mulher de origem curda de 20 anos de idade apanhou até a morte de seu irmão com galhos. O rosto dela ficou tão dilacerado que ficou quase não identificável. A corte chegou a um veredito único: condenou tanto o irmão de Gülsüm quanto o pai de homicídio, apesar de o pai não estar diretamente envolvido no crime.
Será que o veredito de Kleve marca o fim dos anos de tolerância enganada por parte do judiciário alemão? O professor de psicologia Kizilhan espera que a decisão pelo menos envie uma mensagem nesse sentido porque, em sua opinião, está claro que mais atos de violência serão cometidos em nome da honra na Alemanha "nos próximos 10 a 15 anos". "Estamos lidando com uma batalha de gerações de imigrantes que continua invisível para quem é de fora", diz Kizilhan. As segunda e terceira gerações ainda estão usando os valores antigos para manter o controle. "Ao mesmo tempo, cada vez mais o sexo feminino está se rebelando".
Kizilhan está atrelando suas esperanças na prevenção. Ele acredita que a polícia deve vigiar de perto as famílias com histórico de violência e opressão. "Se as autoridades deixarem claro para o patriarca que o estão vigiando, ele vai evitar bater na mulher ou na filha e terá muito menos chance de matá-las".
Outros especialistas querem que a estrutura mude. Por exemplo, cursar o maternal pode se tornar obrigatório para imigrantes, para que os filhos e filhas se familiarizem com a forma liberal do Ocidente desde cedo. Outra sugestão é a das prefeituras empregarem mais imigrantes, que então poderiam melhorar sua competência cultural nos governo locais.
Bilkay Öney, ministra da integração no Estado do sudoeste de Baden-Württemberg, também gostaria de ajudar as mulheres que foram trazidas de outros países para a Alemanha para casamentos forçados. Essas mulheres, diz Öney, dos sociais democratas e que também é de ascendência turca, devem ter seu status reconhecido em menos tempo que o período atual de espera, de três anos. De outra forma, explica, elas não têm como se libertarem de uma situação violenta. "Se a família acredita que mancharam a honra se separando dos maridos, muitas vezes não podem mais voltar" aos seus países de origem.
A solução mais apropriada, diz Yasemin Karakaoglu, professor de educação intercultural da Universidade do Bremen, seria a dupla cidadania. "Isso não promoveria apenas a integração", argumenta. "Também teria um impacto positivo em programas de assistência e apoio para meninas e mulheres. Depois de uma abdução, por exemplo, criaria uma base legal para poder trazer as vítimas de volta à Alemanha".
As vantagens da dupla cidadania são evidentes no Reino Unido, onde as mulheres podem procurar a "Unidade de Casamento Forçado" em busca de ajuda. A unidade é composta de funcionários do ministério de relações exteriores assim como de organizações sociais. Se uma jovem com passaporte britânico for levada para outro país, a unidade notifica a embaixada britânica do país. Esta, então, busca a mulher e, com a ajuda de pessoal de segurança, assegura que volte ao Reino Unido.
Confiança para sair sozinha
Mariam e Thomas muitas vezes falam sobre qual dos dois abdicou de mais coisas pelo outro. Eles se casaram na semana passada e querem começar sua própria família. Mariam fala sobre o "verdadeiro lar" que agora eles têm, um apartamento de dois quartos em alguma parte da Alemanha. A mobília é de segunda mão, eles pintaram as paredes com cores quentes e colocaram um nome comum na campainha. Nem mesmo os pais de Thomas sabem onde está.
Mariam hoje tem confiança suficiente para ir à padaria sozinha. "Poder ir e vir livremente é o maior luxo para mim", diz ela. Ela está terminando um programa de treinamento de administração de negócios.
Ela foi forçada a confrontar sua família mais uma vez. Seguindo o conselho do advogado, ela entrou com uma queixa contra a irmã, depois que esta a ameaçou por telefone. Como a corte não quis ameaçar sua segurança, Mariam tomou parte do processo via videoconferência. Seu rosto ansioso foi visto em três telas no tribunal, em uma cena que parecia um julgamento da máfia.
A ré revoltada alegou que só estava aconselhando a irmã, enquanto seu marido ridicularizava o processo do banco de visitas.
"Sinto ódio"
Quando a corte questionou as irmãs mais velhas de Mariam, elas contaram que foram casadas com primos. "É normal para nós", disseram. Elas fizeram um retrato de uma família amorosa "perfeita", na qual todos os membros podiam fazer o que quisessem.
"Por que então sua irmã passou por tanta dificuldade, se não tinha nada a temer?", perguntou o juiz. Os membros da família não tiveram uma resposta, e pela primeira vez houve silêncio no tribunal.
A decisão da corte acendeu uma luz de esperança para Mariam. Sua irmã foi condenada a seis meses de prisão por coerção, ou dois anos em condicional. "Se alguma coisa acontecer com a minha cliente agora, as circunstâncias serão mais óbvias. Foi um passo importante", disse a advogada de Mariam em uma declaração no dia.
Algumas vezes, os olhos de Mariam se enchem de lágrimas quando pensa em sua irmã menor. Ela se arrepende de tê-la deixado sozinha. E quando pensa nos pais? Mariam reflete por um momento. "Sinto ódio", diz ela. "E saudades".
Reportagem de Antje Windmann para o jornal alemão der Spiegel
Tradutor: Deborah Weinberg
foto:ascendidamente.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!