14/03/2012

Após anos de crescimento, Argentina aperta o cinto


Acabou na Argentina o vento que permitiu um crescimento do PIB superior a 7% sob o mandato dos Kirchner. A presidente Cristina Fernández de Kirchner sabia há meses que as condições que deram lugar ao "período de crescimento mais longo de seus 200 anos de história" não poderiam se prolongar por muito mais tempo. Sabia que este ano as previsões mais otimistas ficavam em apenas 4%, sabia que o déficit energético triplicou no último ano, sabia que não havia mais remédio senão reduzir os subsídios que permitem que milhões de argentinos desfrutem de luz, água e gás a preços irrisórios. Estava consciente de que era preciso conter a inflação, que isso significa conter os salários e isso poderia acarretar problemas com os sindicatos. Portanto, no discurso em que assumiu o mandato de presidente em dezembro passado advertiu que uma coisa era o direito de greve e outra a chantagem e a extorsão.
No entanto, na última quarta-feira (14), os professores, que sempre haviam sido grandes aliados do governo, convocaram pela primeira vez em oito anos uma paralisação nacional. O Ministério de Educação se nega a aumentar seu salário-base em mais de 20%. Oferece 2.100 pesos (491 euros) e eles pedem 3 mil (526). Apenas 35 euros de diferença. Mas o problema para o governo é que esse dissídio define a pauta para o resto do país. Se os professores conseguirem 23% de aumento, os pedreiros e os caminhoneiros não vão querer menos. E a inflação vai disparar. No discurso de 3 horas e 15 minutos que Kirchner pronunciou em 1º de março passado, mencionou 40 vezes a palavra "crescimento" e disse sete vezes "cresceu". Mas só uma vez se referiu à inflação. Entretanto, grande parte dos problemas do país tem a ver com o aumento dos preços.
Nesse discurso, a presidente irritou o ânimo dos professores ao declarar que trabalham quatro horas por dia e têm três meses de férias. O professor e dirigente sindical Hugo Yaski afirmou que essa sempre foi a muleta com que a direita os atacava. Previamente, Hugo Moyano, o sindicalista mais influente do país, peronista e ex-grande aliado dos Kirchner, afirmou que o governo estava perdendo o rumo. E que não acreditava na inflação oficial (que não passa de 10%), mas sim na do supermercado (que muitos economistas independentes estimam em torno de 23%). A greve dos professores acabou sendo um êxito na última quarta-feira e o conflito continua. Mas só parece mais uma pedra no caminho, das muitas que Kirchner enfrentou no início de seu segundo mandato.
No dia seguinte à greve, demitiu o secretário dos Transportes, Juan Pablo Schiavi, duas semanas depois do acidente ferroviário em que morreram 51 pessoas e que retratou as condições de insegurança em que viajam os usuários de subúrbios, a classe trabalhadora mais humilde. Também se puseram em suspeita, inclusive em setores ligados à presidente, os contratos milionários com os quais se beneficiaram os irmãos Mario e Claudio Cirigliano, donos da empresa concessionária do trem acidentado. Até o momento a concessão não foi retirada.
Durante o último mês, os jornais "Clarín" e "La Nación" não deixaram de publicar notícias nas quais envolvem o vice-presidente, Amado Boudou, em um caso de lavagem de dinheiro e tráfico de influência com a empresa de impressão de bilhetes Ciccone Calcográfica. A única defesa que o vice-presidente alegou foi tocar guitarra em um palco vestido com uma camiseta onde se podia ler: "Clarín mente". O promotor Carlos Rívolo começou a investigar esta semana a relação de Boudou com a companhia gráfica. A presidente ainda não se pronunciou a respeito.
Além disso, continuam as tensões com a petrolífera espanhola Repsol e sua filial argentina Repsol-YPF, a maior empresa do país. Desde dezembro, o governo decidiu fustigá-la para que aumente a produção. A Repsol deu números onde mostrava que era a empresa que mais investiu na Argentina. Mas o governo exigiu que não distribuísse seus lucros no exterior. Parecia iminente o anúncio da nacionalização. A tensão chegou a tal extremo que o ministro da Indústria espanhol, José Manuel Soria, empreendeu uma viagem relâmpago a Buenos Aires para se reunir no dia 28 de fevereiro com os ministros da Energia e do Planejamento argentinos.
O rei da Espanha também telefonou para Kirchner, segundo disseram a este jornal diversas fontes. Finalmente, em seu discurso de 1º de março, a presidente não anunciou a nacionalização. Mas o assédio à continuou por parte dos governadores peronistas de várias províncias petrolíferas, que ameaçam retirar as concessões. Cada ameaça provoca espasmos nos investidores. Em menos de dois meses o valor da Repsol-YPF na Bolsa passou de US$ 16 bilhões para 10 bilhões. Fontes próximas do governo estimam que a estratégia de Kirchner consista em baratear o preço da companhia até poder comprá-la. Outros analistas consideram que o governo está dando tiros nos próprios pés com esses ataques ao maior contribuinte fiscal do país.
Alberto Fernández, chefe de gabinete no governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e com Cristina Kirchner até julho de 2008, indica que há um erro de diagnóstico na hora de enfrentar os problemas. "Quando nós chegamos, o desemprego era de 25%, a pobreza de 57% e a indigência, isto é, pessoas que não tinham mínimas condições de sobreviver, chegava a 28%. Então pedimos às companhias energéticas, entre elas a Repsol, que contribuíssem para sair dessa situação não aumentando as tarifas. Mas agora o desemprego passou de 25% para 7%, a pobreza de 57% para 30% e a indigência de 28% para 16%. O país cresceu 8% e as tarifas não aumentaram. A Argentina de hoje tem um problema derivado do crescimento, e não da pobreza. Tínhamos uma gripe e encontramos o remédio. Agora temos um sarampo e continuamos com o medicamento da gripe, com o que pioramos gravemente. Diante de um problema econômico, Cristina atua com instinto político, buscando o culpado em vez da causa. Mas o problema de energia não é a Repsol, e sim que não investimos o suficiente em infraestrutura. Se retirarem as concessões da Repsol, de quem será a culpa? De Cristina, evidentemente. Não se poderá culpar mais a Repsol."
Restam apenas 20 dias para 2 de abril, quando se completam 30 anos do início da guerra das Malvinas, e na Argentina (quem diria?) o aniversário ficou relegado a terceiro plano.

Mais de 60% de apoio

Muitos são os problemas que assediam o governo argentino. Mas também é muita a confiança que os eleitores depositaram em outubro passado na chefe de Estado. Ela ganhou com 54% dos votos, muito à frente do segundo candidato, o socialista Hermes Binner, que ficou com 16%. E não seria a primeira vez que Cristina Fernández de Kirchner sai garbosa de crises semelhantes. "Já aconteceu em 2007 e com a mala do venezuelano Antonini Wilson, suspeito de financiar a campanha da presidente. E depois do conflito com o campo Cristina Kirchner também retomou um vigor insuspeitado", recorda a socióloga Graciela Rhömer, diretora de uma das principais empresas de pesquisas do país.
Rhömer indica que a presidência conta com uma popularidade superior a 60%. "Se sua imagem baixar 10 ou 15 pontos, isso não a colocará na zona de risco. Porque há outro elemento importante, que é a inexistência de uma oposição que pudesse capitalizar essa oportunidade". Rhömer não acredita que a questão da Repsol-YPF preocupe os cidadãos comuns, nem sequer os problemas do vice-presidente Boudou. Entretanto, estima que a questão econômica sim, poderia desgastar o governo no futuro imediato. "Na Argentina as questões institucionais e éticas têm incidência na população na medida em que a economia tenha baixas expectativas."
Uma questão chave será a forma como a população será afetada pela retirada dos subsídios ao consumo de luz, água e gás. Até agora, o governo decidiu visar os bairros mais ricos de Buenos Aires, que viram suas faturas duplicadas e triplicadas. Mas o objetivo é estendê-lo nas próximas semanas ao resto da capital e da província. Ao todo, cerca de 12 milhões de pessoas serão afetadas.
No meio de tantos problemas, sempre há quem veja um raio de otimismo. É o caso do ensaísta e diretor da Biblioteca Nacional, Horacio González, que acredita que embora muitos problemas atuais, como a deterioração do sistema ferroviário ou da escola pública, vêm de décadas atrás, este governo saberá aprender com eles. "É um governo não só atravessado por debates, mas promotor de debates", ressalta. 
Reportagem de Francisco Peregil para o jornal espanhol El País
tradução:Luiz Roberto Mendes Gonçalves
foto:Marcos Brindicci/Reuters

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita e pelo comentário!