Uma cadeira de rodas continua atraindo olhares. Ou muletas com duas pernas rígidas balançando-se a cada salto. No entanto, a incapacidade às vezes pode ser muito invisível. Estamos falando, é claro, de mulheres, muitas delas encerradas em casa durante anos, privadas de relações, de sexo, de maternidade... Também de qualquer forma de participação na vida pública, mas quando a conseguem os homens estão dois passos à frente. Essas mulheres têm uma dupla agenda para combater sua dupla discriminação: romper a barreira que as condena enquanto mulheres deficientes e lutar pelo espaço público ocupado majoritariamente por seus companheiros.
Trata-se, portanto, de recuperar o papel feminino completo, negado pela sociedade, às vezes selado por um bisturi, e, uma vez ali, alcançar a igualdade com os homens. Ou melhor, as duas coisas de uma vez, não há tempo a perder.
Não há números, mas as especialistas sabem que quando uma mulher sofre uma incapacidade, por exemplo, por um acidente de trânsito, o divórcio as vezes chega antes de sua saída do hospital. "Se não há filhos, entende-se que nunca haverá. Quando há, às vezes a mãe distribui a indenização recebida do seguro para não ir a julgamento e poder ficar com eles, porque alguns juízes não entendem que uma mulher deficiente possa cuidar dos filhos."
Maite Gallego não dá detalhes, nem nomes, mas conhece bem esse mundo sórdido de que fala, por isso faz seu relato com final feliz para esta reportagem. Porque depois de anos de luta começam a aparecer alguns raios de luz.
A cadeira de rodas que ela conduz não acabou com seu casamento, que se enriqueceu depois de sobreviver à deficiência com a chegada de uma menina da China. As atribulações do processo de adoção ela contará depois. A vida que Maite Gallego leva é um exemplo do que buscam as mulheres com incapacidade com a aprovação do segundo manifesto dos Direitos das Mulheres e Meninas Deficientes da União Europeia, uma ferramenta que deve servir aos políticos para passar da teoria aos fatos.
Esse manifesto surge na Espanha, "onde se avançou muito nas políticas transversais de gênero", explica Ana Peláez, presidente da Comissão da Mulher do Cermi, a grande plataforma espanhola das organizações de deficientes. O manifesto, portanto, surge na Espanha mas nasce com o apoio do Lobby Europeu de Mulheres, do qual é membro o Fórum Europeu da Incapacidade, e busca a plena inclusão das mulheres deficientes em um mundo igualitário.
Peláez, que é cega, explica assim parte do problema: "As mulheres deficientes não somos consideradas em nosso papel feminino, é como se fôssemos assexuadas. Parece que nem a sexualidade nem a maternidade fossem para nós, mas tampouco a representação política, sindical ou em nossas próprias organizações".
Efetivamente, as organizações de deficientes estão muito feminilizadas, "cerca de 60% são mulheres", mas também não encontram o teto, por mais que queiram subir. Elas continuam embaixo. Assim, quando a Europa decide tornar acessíveis os meios de transporte às pessoas com deficiência, começa pelos aviões. "Justamente o que os homens usam mais. Por quenão começam pelos ônibus urbanos, que são os que nós usamos majoritariamente? Isso seria fazer as coisas em chave de gênero", queixa-se Peláez.
Acontece também que, quando se desenha um relógio para cegos que vibra, que canta e ao qual só falta dançar, há apenas modelos masculinos e que são caríssimos, assim que serão os cegos e não as cegas os clientes mais prováveis.
E, para ficar em três exemplos, as muletas existentes nos catálogos ortopédicos da seguridade social pesam tanto que, se são ágeis para alguém, será para os homens.
Mas ocorrem coisas ainda piores. "A repressão com estas mulheres foi brutal. Elas foram trancadas em casa por temor a que parissem um filho, enquanto eles eram levados ao prostíbulo. Nas residências de pessoas deficientes não são permitidas as relações sexuais, um direito que existe nas prisões." Sem papas na língua nem muitas considerações com a linguagem, Carme Riu, presidente da associação catalã de Dones no Estándar [algo como "mulheres fora do padrão"], prossegue com seu relato das coisas: "Aos homens deficientes, a família tentava conseguir uma namorada, mesmo que fosse meio boba, para poder formar uma família. A mulher era trancada em casa com sua pensão não contributiva e os irmãos nos diziam que tínhamos mau caráter. E o que acontece quando os pais morrem? Uma garota sozinha com uma pensão que nunca administrou em sua vida..."
A associação de Riu tira essas mulheres da rua e as ensina a ocupar o espaço público, a usar os meios de transporte, a recuperar sua autoestima, solucionar seu analfabetismo e avançar para o mundo do trabalho quando é possível. "Algumas estavam há quase 40 anos sem pisar na rua." "Nós mulheres devemos andar lado a lado, todas em busca da igualdade. E nós podemos contribuir muito", diz.
A ajuda mais apreciada chega muitas vezes com o exemplo: vendo Maite Gallego passear sua filha com a mão agarrada à cadeira de rodas; a menina procurando as rampas para passar as rodas da mãe, sem traumas, sem complexos. Com naturalidade. Como quando critica, com sua voz de menina, o motorista que deixou o carro estacionado na guia rebaixada. E o senhor lhe respondia, paternalista: "Que gracinha, são só cinco minutos, linda". E a menina soltava: "Outro com a história dos cinco minutos, mamãe".
Mas até que chegou essa naturalidade, Maite teve de escutar as frases indesejáveis, por exemplo, quando decidiram adotar na China e começaram as perguntas dos especialistas para determinar se o casal era idôneo para criar um filho. Os seja, para determinar se o era aquela mulher em cadeira de rodas. E se a menina cair? E se ficar doente? E como lhe daria banho? "Quando me cansei, eu disse: 'E onde está escrito que serei eu quem lhe dará banho?" A casa de Maite é perfeitamente adaptada, e quando foram visitá-la compreenderam e lhes deram o certificado de idoneidade. Depois chegou a menina. "Quando caía, vinha chorando até minha cadeira para que eu lhe fizesse agrados. E nunca me escapava pela rua, porque sabia que não podia fazê-lo; escapava do pai àsvezes. Elas amadurecem logo e se adaptam às circunstâncias. Quando brincava com bonecas, sentava-se em uma cadeirinha, era sua forma de ser a mãe", descreve Gallego.
"A imagem mais negativa da mulher deficiente é a maternidade. Não se assume que ela possa cumprir seu dever de cuidar de menores", acusa Gallego.
"Mas a mulher cuida até quando é deficiente", acrescenta Carme Riu. Essa é a dupla discriminação. Enquanto o resto das mulheres está lutando para que não lhes deem sempre o papel de cuidadoras de crianças, de idosos, de doentes... as que têm incapacidade ainda lutam para que as deixem cuidar de seus filhos.
Os cuidados têmoutra volta do parafuso no mundo da incapacidade, porque para alguém que os necessita não receber esses cuidados já é uma forma de violência, um abandono brutal, talvez uma tortura.
A violência de gênero, nesse âmbito, é uma jaula difícil de escapar. Ana Peláez menciona o caso daquelas mulheres que poderiam contar ao médico da família os maus-tratos que recebem. "Mas para entrar no consultório alguém tem de empurrar sua cadeira de rodas. A intimidade que exige uma confissão assim se perde completamente", salienta.
No campo da saúde, ficam claras muitas das carências que sofrem essas pessoas. Como subir em uma maca de exame ginecológico, aparelhos de mamografia que não estão na altura adequada, espaços para se despir que não têmas dimensões suficientes...
Contudo, são a incapacidade intelectual e/ ou mental que levam a pior parte. "A violência é exercida sempre com o mais frágil, e o perfil mais frágil é o da mulher com deficiência intelectual, solteira e mãe", começa Pilar Cid, da área de Mulher e da Oficina da Vida Independente da Associação Afanias para pessoas com deficiência intelectual. "Não faz muito tempo estavam trancados em hospitais psiquiátricos, e a partir dos anos60 foram conseguindo pouco a pouco o direito à alfabetização, à educação completa, ao trabalho."
Em 2006 foram incluídos os direitos dos deficientes sob o manto da ONU, "masas leis ainda não mudaram totalmente e os costumes continuam mandando", lamenta Cid. E, apesar do que diz a convenção da ONU, costuma-se retirar o filho de uma mulher deficiente intelectual até que demonstre que pode cuidar dele como outras mães, em vez de lhe dar apoio, como diz a ONU.
Em organizações como a Afanias, queixam-se da invisibilidade das mães deficientes. "Não existem. Há guias sobre violência de gênero, trata-se da sexualidade... mas não há subvenções para educar sobre a maternidade. As mães, sinceramente, não existem para o governo", lamenta Pilar Cid.
"Às vezes as asfixiamos de tanto carinho, de superproteção, definitivamente, é que não são consideradas pessoas completas, é difícil vê-las com os mesmos direitos que os demais. Nos países nórdicos são dadas muitas subvenções desde que nascem, mas não saem de casa, ficam em uma gaiola de ouro", afirma Cid.
Outra gaiola pode ser o mundo rural, onde as mulheres têm menos visibilidade que os homens e onde as condições de mobilidade são piores: caminhos sem asfalto, casas com grandes escadas. Por outro lado, uma simples depressão já é um assunto tabu nos povoados, assim que um problema mental grave constitui um terrível estigma. A dupla discriminação aqui pode ser tripla, por ser mulheres, pela deficiência e por estarem em um mundo mais fechado, onde a penetração das conquistas igualitárias não calou tanto. "O problema de fundo no mundo rural é o das mulheres em geral, porque os papéis que desempenham ainda estão muito marcados pela inércia de sempre", explica Jesús Casas, diretor-geral da Desenvolvimento Sustentável do Meio Rural. "Por isso essa dupla discriminação pode ser mais acentuada que no mundo urbano", acrescenta. "É um grande paradoxo: as mulheres são a parte estrutural dos povoados e no entanto são as menos visíveis".
De sexualidade e esterilização
Com a conquista do direito ao trabalho para as pessoas com deficiência intelectual chegou o dinheiro... e a independência. Mas para as mulheres uma vida sexual livre poderia significar uma gravidez, e isso era uma palavra proibida. "Às vezes, de posições progressistas, para que pudessem desfrutar de sua sexualidade, se reivindicava a esterilização. Além disso, é simples, porque o familiar pode pedir a incapacitação, transformar a mulher em uma menina eterna e decidir um ligamento de trompas assim, sem mais", explica Pilar Cid.
Em uma sociedade que não compreende e rejeita sistematicamente os problemas que têm sua origem no cérebro, os caminhos sempre estão cheios de obstáculos.
Concepción ainda conserva humor para rir de sua sorte. Sua deficiência intelectual é quase imperceptível: um mecanismo endemoniado no cérebro que a impede de fazer os deveres do colégio: somar, diminuir, multiplicar, ler com desenvoltura... mas que não a impede de desempenhar as tarefas cotidianas da vida. Nem de criar seu filho, também de pai deficiente intelectual, que não tem problema algum. Ambos trabalham na Afanias e se empenharam para se casar e aumentar a família. Mas o parto e a primeira criança foram complicados. "Além disso, sofro de enxaqueca e os anticoncepcionais me faziam muito mal. Não queria ter mais filhos, então decidi fazer uma ligadura de trompas."
Mas o médico, ao entregar seu relatório no qual figurava sua deficiência, decidiu que ela não se submeteria à operação sem um tutor que a autorizasse. E então pensaram que seu marido deveria pedir uma vasectomia: nenhum problema, ninguém perguntou, a fizeram e pronto.
O desembaraço com que Concepción fala de sua vida ao lado do marido, "educado com caprichos e sem saber nada de casa", de como enfrenta a educação de seu filho, "com as mesmas incertezas de qualquer mãe", afastam todas as dúvidas que qualquer médico pudesse ter sobre sua maternidade ou sua decisão de se esterilizar. Mas aquele médico só viu o papel com seus 35% de incapacidade intelectual.
Um manifesto para a igualdade
Algumas pinceladas do Manifesto dos Direitos das Mulheres e Meninas Deficientes da União Europeia:
"Devem ter o direito a ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito em um mercado e um entorno laboral abertos, inclusivos e acessíveis..."
"Todos os serviços de atendimento a mulheres (especialmente nos âmbitos da saúde, maternidade, violência contra a mulher e cuidados à infância) devem ser plenamente acessíveis."
"As refugiadas, residentes em territórios em conflito armado ou ocupação, assim como as sobreviventes de desastres naturais, estão expostas a um maior risco de sofrer violência ou abusos... Proporcionar serviços baseados nas necessidades individuais das mulheres e meninas deficientes em situações de risco e emergência humanitária."
"Devem poder exercer sua capacidade jurídica, tomando suas próprias decisões [...] além de seus direitos a possuir e herdar bens, controlar seus assuntos econômicos e ter acesso em igualdade de condições a empréstimos bancários, hipotecas..."
Reportagem de Carmen Móran para o jornal espanhol El País
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/12/05/mulheres-deficientes-ganham-auto-confianca-e-buscam-novo-patamar-na-sociedade.jhtm
foto:esperanca-garcia.blogspot.com
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