Se você assim como eu ficou estarrecida diante da televisão ouvindo as últimas palavras do cinegrafista da Rede Bandeirantes antes de morrer, leia com atenção o texto abaixo:
O cinegrafista Gelson Domingo (foto acima), de 46 anos, acompanhava uma operação do Bope na favela Antares, na zona oeste do Rio de Janeiro, no último domingo. Foi atingido por um tiro de fuzil, que atravessou seu peito. Ele usava um colete à prova de balas, permitido pelas Forças Armadas. Sua morte está sendo investigada pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil do estado.
A apuração pode demorar tempo.
O repórter Ernani Alves, que o acompanhava, disse não querer descansar enquanto o autor do disparo não estiver preso.Gelson deixa três filhos, dois netos e sua mulher. Deixa também seus dois empregos, na TV Bandeirantes e na TV Brasil.Gelson morreu ao vivo – sem trocadilho – e em tempo real.O vídeo do tiroteio com sua agonia bateu recordes de acessos na internet.A Bandeirantes também deu farta cobertura a respeito.
Em meio à dor e a estupefação geral, cabe a pergunta: por que Gelson morreu? É possível arriscar pelo menos três fatores, que não são excludentes.
São eles:
1. Gelson colocou-se na linha de tiro por ser um repórter ousado.
Sim, é verdade. Gelson demonstrou grande coragem e ousadia ao se colocar em um ângulo que o deixava vulnerável.
O Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro alega que o colete que o cinegrafista portava na ocasião não o protegia de tiros de fuzil.
É possível que tenham razão, mas mesmo que usasse uma proteção mais grossa, o tiro poderia atingir seu rosto.
O mais provável é que Gelson tenha sido pautado para fazer a cobertura.
O mais provável é que Gelson também tenha decidido fazer aquela cobertura.
Cinegrafistas não ganham bem. O caso de Gelson é ilustrativo.Para se manter, ele se virava em dois expedientes, em duas empresas.
Reportagem é uma atividade extremamente tensa. Não existe reportagem tranquila. Se é tranquila, geralmente não é boa.Há uma tensão constante pelo melhor ângulo, pela declaração exclusiva, pelo furo, pela audiência, pelo alcance. Há uma pressão das chefias para que se supere a concorrência a todo custo e de qualquer maneira.
Essa tensão toda acaba sendo introjetada pelos repórteres em um mercado de trabalho extremamente competitivo. É preciso fazer mais, apurar mais, trabalhar mais, captar um detalhe, um grito, um tiro...
Algo semelhante acontece em outras categorias, regidas por um produtivismo exacerbado em busca de maiores ganhos em relações de trabalho cada vez mais precárias.
Nesse ambiente, as metas a serem atingidas por um profissional são progressivamente mais elevadas, como as colocadas diante de profissionais de vendas, bancários, operadores de telecentros etc. O trabalhador é premido pela escolha de trabalhar mais e mais horas, obtendo alguns ganhos, ou estabilizar seu ritmo de atividade e ser ultrapassado por um colega, correndo o risco de ser descartado num ambiente de alta rotatividade.
O sociólogo Ricardo Antunes define essa situação no seu O continente do labor (Boitempo):
“Quer mediante programas de qualidade total e dos sistemas just-in-time e kanban, quer mediante a introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade (de que é exemplo o Programa de Participação nos Lucros e Resultados – PLR), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios neoliberais (...). finalmente o mundo produtivo encontrou uma contextualidade propícia para o deslanche vigoroso de sua reestruturação, do assim chamado enxugamento empresarial e da implementação de mecanismos estruturados em moldes mais flexíveis”.
É possível que Gelson tenha estado onde estava por decisão própria. Mas uma decisão pautada por um impulso produtivista inatingível, de ser o melhor, de se colocar como mais qualificado num mercado estreito e quase irracional.
2. O que Gelson estava fazendo lá?
A grande maioria das coberturas policiais é feita por repórteres que acompanham as tropas policiais. São avisados e pautados pelas autoridades policiais. Um repórter não vai a uma zona de confronto por ter apurado previamente um possível embate entre policias e bandidos.
Jornalistas acompanham forças de segurança aqui assim como jornalistas estadunidenses acompanham as tropas de ocupação no Iraque, Afeganistão e Líbia. São os embedded, embutidos ou embarcados, numa tradução ao pé da letra. Vão para mostrar o que as forças armadas determinam. Não fazem a pauta sozinhos. De certa maneira, funcionam como assessores de imprensa.
No vídeo fatal, Gelson estava atrás de um policial do Bope. Quase filma pela alça de mira do soldado.
Duas vozes se misturam:
“Olha lá, é vagabundo! Olha lá, bota a cabeça inteira! É vagabundo! Ta encurralado! Ta armado! Caralho!”
As direções de redação combinam detalhes de operações com as cúpulas das polícias. O tom da cobertura é o tom das polícias.
Para aqueles que não gostam do termo, lá vai: é a cobertura mais ideologizada que existe. Não está se mostrando “a vida como ela é”. Está se mostrando um pedaço recortado da vida, como alguém quer mostrar. O pedaço em que quem está do outro lado é “vagabundo”.
A ação é realizada no meio de uma favela. Não no meio de um bairro da zona sul. Ninguém chama um morador da zona sul de “vagabundo” assim, sem mais.
“Vagabundo” é o pé de chinelo, o pobre, exibido como troféu, agarrado pelos cabelos ou pelo pescoço diante das câmeras. Um espetáculo!
Não se sabe se os exibidos nesse caso da favela Antares eram de fato traficantes. São jovens moradores pobres de um lugar pobre. Já são suspeitos. Um dos quatro moradores do local mortos na operação não tinha antecedentes criminais. Cabe tudo no genérico “vagabundo”.
A chefia de reportagem deve ter pautado Gelson para ir até lá. A polícia deve ter pautado a redação.
3. Quem deixou Gelson ficar na linha de tiro?
Quem tem treinamento e conhecimento para situações de enfrentamento armado são as forças de segurança. Quem tem armamento para situações de enfrentamento é a polícia. No vídeo fica claro: Gelson se coloca atrás do policial que está atrás de um poste, mas à sua direita. Para captar a cena, teve de se expor.
Como as forças de segurança do Estado permitem que um leigo esteja no fronte de batalha sem essa mais aquela?
Gelson, mulher, três filhos, dois netos e dois empregos recebeu treinamento para isso?
Caso não, por que?
As coberturas das guerras de ocupação promovidas pelos Estados Unidos são feitas para nos dar a impressão de que tudo não passa de um grande videogame. Os jogos de guerra que existem no mercado são assim: profusão de tiros, sangue, explosões e muita cor. Mas é tudo inofensivo. O jogador do lado de cá da tela está protegido, com seu controle remoto, em sua poltrona na sala de sua casa ou numa lan house.
De vez em quando há um efeito 3D e tudo parece real.
No caso de Gelson, foi mais que isso.
Como no filme “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen, a cena sai da tela e vem para o mundo real.
O game over aconteceu quando a bala saiu da tela e veio para o que se chama mundo real. Enquanto estava lá na favela, o tiroteio era apenas um videogame para entreter boa parte dos telespectadores.
Era só coisa de “vagabundo”, personagens do jogo.
(De conversas com Adelina França e Igor Fuser)
Texto de Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5292&boletim_id=1048&componente_id=16784
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