Notícias como esta que publico abaixo, sobre o comércio e consumo de drogas que inquietam o espírito. E como Milton Nascimento em sua música "O que foi feito deverá", pergunto:
O que foi feito, amigo,
De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida,
O que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás
Falo assim sem saudade,
Falo assim por saber
Se muito vale o já feito,
Mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso
Conhecer para melhor prosseguir
Falo assim sem tristeza,
Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer
Nós iremos crescer,
Outros outubros virão
Outras manhãs, plenas de sol e de luz
Alertem todos alarmas
Que o homem que eu era voltou
A tribo toda reunida,
Ração dividida ao sol
E nossa vera cruz,
Quando o descanso era luta pelo pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio
E rio qualquer dava pé
E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz
Hoje essa vida só cabe
Na palma da minha paixão
Devera nunca se acabe,
Abelha fazendo o seu mel
No canto que criei,
Nem vá dormir como pedra e esquecer
O que foi feito de nós
Em 29 de novembro, foi localizada a chegada ao porto de Vigo norte da Espanha) do contêiner número MWMU-6422XXX-0, que vinha declarado em manifesto para a empresa XXXXX, SL, domiciliada em Mos (Pontevedra) e como exportadora a empresa XXXXX, Ltda, de Santa Marta (Colômbia). No "bill of boarding" a mercadoria era declarada como "bananas verdes frescas". - Relatório interno sobre a operação 21/2010 da Unidade de Análise de Riscos (UAR) do porto de Vigo. 24 de janeiro de 2011.
"Já sabe por que está aqui? Diga onde está a 'farinha'!"
Na manhã de 18 de dezembro de 2009, a atual testemunha protegida T/001/219/09 se encontrava no interior de um furgão. As mãos amarradas com fita isolante, a cabeça coberta com um capuz, recebia socos, pauladas e chutes no corpo e nos órgãos genitais, segundo seu relato. O rosto, deixaram intacto: "Canta, onde está a coca?"
Despiram-no. Um dos "cinco ou seis" agressores agarrou seus testículos enquanto o obrigava a apalpar o fio de uma navalha, para que sentisse de perto o risco que corria. Perguntaram-lhe sobre um colega de escritório e sobre o chefe da empresa para a qual trabalhava, uma agência de alfândega que tramita a passagem de contêineres de mercadoria no porto de Algeciras, o de maior tráfego da Espanha, no sul. Falaram de um contêiner procedente da Bolívia. Ele lembrou que o havia despachado alguns dias antes e que tinha estrados flutuantes. Pouco mais. Pelo menos foi o que disse.
Responderam-lhe que também estavam pensando em trazer sua filha para lhe perguntar onde estava a "farinha" desse contêiner. Amarraram um cordão ao redor do dedo médio de sua mão esquerda e outro no dedão do pé esquerdo. Colocaram-no de pé, vários seguraram seu corpo e a perna e lhe avisaram: "Não se mexa". Notou como o talho de um machado lhe amputava de uma vez o dedão do pé, desde a primeira falange. O índice ficou pendurado. Continuaram lhe batendo e perguntando sobre o contêiner de origem boliviana. Caiu ao chão. Voltaram a sentá-lo. Depois houve uma conversa na qual falaram de passar fita isolante ao redor de sua cabeça para evitar que saíssem líquidos. Ao disparar contra ele, entende-se. Colocaram uma arma perto da testa, obrigando-o a apalpá-la com a mão. Ouviu quando carregaram a pistola. Suplicou de joelhos que não o matassem. Então o deixaram descansar. Perguntaram sobre o outro contêiner que chegaria da Bolívia. Deram-lhe os dados. Disseram que o despachasse, oferecendo-lhe uma quantia de dinheiro. Ele disse que o faria de graça. Bastava que o libertassem. Foi solto. Em casa contou que teve um acidente. No hospital, que tinha se cortado enquanto podava um pinheiro (era perto do Natal).
Demorou mais de um ano para denunciar os fatos à polícia, o que fez em março passado. Sua declaração está entre as diligências de uma operação recente da Unidade de Drogas e Crime Organizado (Udyco na sigla em espanhol) da polícia, e por meio dela foi desarticulado um bando de "paleros" (os que roubam os narcotraficantes). Casper, famoso anteriormente pelo roubo dos quadros das irmãs Koplowiz, e seu grupo criminoso, ao qual as diligências atribuem a brutal agressão, teriam se apossado daquele contêiner pelo qual perguntavam. Mas a droga vinha escondida e não conseguiam localizá-la. Ou talvez outros a tivessem levado antes.
Onde está a coca? Em 2009 aconteceu o que um comando do Grupo de Reação Especial contra o Crime Organizado (Greco) chama de "mudança de paradigma". Naquele ano, a polícia espanhola, em colaboração com a italiana, conseguiu dar dois golpes chaves contra o coração do narcotráfico tradicional na Espanha. Foram batizadas de Operação Tabaiba e Operação Giga, e apreenderam quase 10 toneladas de droga. Decapitaram a principal rede de barqueiros e transportadores galegos, vinculada à Camorra. Confiscaram seus bens e continuam enfraquecendo a estrutura com que lavavam o dinheiro.
Pouco antes, no final de 2008, havia morrido em um acidente de moto uma das jovens promessas do narcotráfico galego, Manuel Abal Feijoo, conhecido por Patoco, o melhor piloto de voadoras da enseada de Arosa desde os anos 1990. Outro golpe do destino. Desde então, a cocaína chega a conta-gotas. Um fluxo constante, em pequenas quantidades. Em 2010, 80% das apreensões de cocaína foram relacionadas ao envio de contêineres, segundo fontes policiais. A droga perdeu velocidade e glamour. Não há mais perseguição de lanchas entre as balsas, nem abordagens em alto-mar. Ou não com a frequência de antes - sempre cai algum veleiro no verão. Os fardos agora viajam em navios mercantes procedentes da América do Sul.
Os chefes colombianos manipulam os meandros da importação através de seus representantes comerciais estabelecidos em Madri. E o preço do produto disparou, pelo menos na Galícia, passando em dois anos de 22 mil para cerca de 37 mil euros o quilo, segundo fontes policiais. Coca há, mas é muito difícil encontrá-la.
Um comandante da UAR no porto de Vigo relata como ele e seus companheiros estiveram "uma semana cheirando a banana", depois de passar dois meses entrando e saindo de um contêiner com bananas colombianas. "Demos 40 voltas e não a encontrávamos. Mas sabíamos que havia cocaína. As escutas o confirmavam."
A empresa importadora havia sido fundada em 2007 e tinha por objetivo social o ensino. Sua atividade econômica fora praticamente nula. E nunca antes havia realizado importações. Cheirava estranho. Passaram a carga pelo escâner do porto. Perfuraram os paletes, esquadrinharam cada fenda. Nada. Sem droga não há delito. Então jogaram suas cartas: avisaram a importadora que iam destruir a carga, fingindo que havia se estragado por um problema de refrigeração. Nervosos com a notícia, os supostos empresários acabariam cometendo um deslize ao telefone. Em uma conversa grampeada, mencionaram que assim mesmo poderiam recuperar "as paletas", e isso foi suficiente: a cocaína apareceu dentro de finas barras inseridas nas tábuas dos paletes.
Nas dependências da alfândega ainda guardam uma tábua. "Obra de um artesão", diz o chefe da UAR mostrando uma. Vinham 60 quilos da droga. Um detalhe, se comparado com os grandes golpes em alto-mar de outros tempos. "Mas hoje não há barcos." Talvez se tratasse do teste uma nova rota, ou só uma pequena parte da enxurrada.
"Os contêineres demoram a vida toda", diz o inspetor chefe, José Antonio Rodríguez San Román, da seção de cocaína e derivados da Brigada Central de Entorpecentes. Uma via rentável em tempos de transição e seca. Entre os traficantes, costumam usar um lema: "Se há galegos, há barcos". Também funciona ao contrário. Já não há barcos, mas a droga tem de seguir seu curso. Entrar no circuito europeu, com mais de 4 milhões de consumidores, o dobro de dez anos atrás. Um mercado negro que beira os 23 bilhões de euros e do qual a Espanha é o "principal ponto de acesso", segundo o último Relatório Mundial de Drogas da ONU. Mas também o que realiza mais apreensões, cerca de 60% do total europeu.
Mas os dados não se encaixam. Em 2010, os Corpos e Forças de Segurança do Estado apreenderam 25,2 toneladas de cocaína, a metade de cinco anos atrás. O padrão se repetiu em toda a Europa, e ninguém entende muito bem o que acontece. Algo está escapando. "O trabalho de inteligência criminal revela que o fluxo poderia ter caído, mas não parou", segundo um relatório. "Isto aumenta a possibilidade de que os traficantes tenham modificado suas técnicas."
Todos parecem se perguntar o mesmo: onde está a coca? No escritório do inspetor chefe San Román há um mapa da África pendurado na parede. Vários países da costa ocidental foram contornados à mão, para não esquecê-los. Ele diz: "Os números só refletem o que é apreendido. Não o que entrou. As apreensões diminuíram porque se trabalhou bem e também porque eles procuraram outras rotas: os países do Leste e algumas repúblicas...", ele emite um som nasal enquanto procura a palavra exata, "...permeáveis da África".
Em algum momento entre 2003 e 2004 os narcotraficantes colombianos experimentaram novos caminhos para a Europa. Para evitar o traçado direto até a Galícia e o envio tradicional com escala nos Açores ou nas Canárias, abriram a "autopista 10", que percorre o paralelo 10 da América até a África, o trajeto mais curto para se atravessar o oceano. Com saída do Caribe e da Venezuela, onde "chegaram a apagar as luzes do porto", segundo um comandante do Greco, formando um corredor escuro para os barcos saírem.
Uma vez na África, tudo se torna uma questão monetária. Nas palavras de um chefe da Udyco: "Lá, quem paga tem caminho livre". A corrupção e a conivência dos governos com o narcotráfico e o terrorismo - "os dois se entrelaçam" -, transformaram-se em duas das principais preocupações na luta contra o crime organizado. A cocaína destrói o que encontra em sua passagem. Há pouco tempo, vários comandantes policiais participaram em Madri de jornadas sobre o crime organizado com 20 colegas da África ocidental. Existe cooperação, mas a falta de meios a dificulta: "É impossível chegar a alguma coisa com alguns desses países".
Um relatório confidencial sobre Guiné Bissau, escrito em maio de 2011 pela embaixada espanhola, indica: "Não existe uma fonte oficial que possa oferecer dados ou estatísticas sobre contrabando. As dependências policiais não têm luz elétrica. Seus funcionários estão em greve pela falta de pagamento de salários. O exército controla de fato o país. Existem comunicados de imprensa que citam operações, mas ninguém tem certeza de sua veracidade. O trabalho em campo é impossível. Os contêineres chegam ao porto, controlado pelo exército, e também aos aeroportos e pistas privadas situadas nas ilhas do país: das 88, só 20 são habitadas".
Alguns policiais acreditam que a África acumulou droga para manter o preço estável e satisfazer a demanda europeia. Como um imenso esconderijo. Embora a estocagem custe dinheiro e o produto "vá perdendo qualidade". Segundo a polícia, a cocaína estaria evitando contêineres ou embarcações. Há evidências de que aproveitaram a rota do haxixe, cruzando o Marrocos. O relatório confidencial acrescenta outra hipótese: "Há voos que vão para Lisboa cheios de passageiros que viajam com grande quantidade de malas". Mas faltam peças no quebra-cabeça. "A rota africana nunca termina de explodir", diz um comandante da luta contra o narcotráfico. "Está muito usada", diz outro. Em um relatório recente da Soca (a agência britânica contra o crime organizado) recebido pela Udyco em Madri, afirma-se que a África estaria "em baixa". É o que conta uma das pessoas com acesso à inteligência: "Está ocorrendo uma diversificação de rotas".
O desenho espanhol se transfere para o quadro europeu. O último relatório da Europol (abril de 2011) contém várias palavras-chaves. As duas primeiras são "diversificação" e "contêineres", nessa ordem. "A Espanha continua sendo um importante armazém e um centro de distribuição secundária", afirma. Mas menciona o aparecimento de dois novos cenários para o leste. Nos Bálcãs se detectou a presença do narcotráfico mexicano. A Moldávia se transformou em um centro de abastecimento. À Bulgária chegam carregamentos procedentes da América Latina, passando pela África ocidental e a Turquia. E o mar Negro já é uma realidade como ponto de trânsito. O outro buraco fica mais ao norte: foram detectados contêineres com cocaína nos países Bálticos, apesar de quase não haver consumidores lá. Um território virgem e inexplorado, muito próximo ao mercado russo.
"O padrão de inteligência não está claro", reconhece a Europol. A droga dispara em todas as direções. Em pequenas quantidades, oculta entre frutas, misturadas com tecidos, diluídas em vinho. Aproveitando as "oportunidades pelo desenvolvimento da logística comercial e a infraestrutura do transporte", diz o relatório.
"Primeiro enviam um contêiner de teste. Um ou cinco. Sempre se supõe que vão perder algo", explica um chefe de Entorpecentes. A droga na origem não passa de 2 mil euros por quilo. Antes de tocar terra espanhola beira os 5 mil. Depois de purificada, seu preço se multiplica por sete. E outra vez por três no processo de mistura. Se a perdem, também não é o fim do mundo. Logo chegará mais. "É uma forma de diversificar riscos", repetem os chefes policiais. Quem abre a rota se compromete a repetir se a coca não chegar. "Em Algeciras, em Valência, em Vigo... chegam a pagar 300 mil euros para fazer vista grossa no porto", diz Carlos R. Cadiñanos, chefe do grupo de drogas da Unidade Central Operacional (UCO) da Guarda Civil. Pode ser um diretor do terminal de cargas, como o do porto de Barcelona, José Mestre, detido no verão passado pela Udyco e libertado em julho passado. Ou um sargento da Guarda Civil, como o chefe do destacamento do porto de Marín (Pontevedra), detido em julho de 2009. Segundo o comandante policial que dirigiu a operação, "ele sofreu um infarto na prisão".
Há outra opção mais limpa, o "gancho cego", na qual a importadora desconhece que estão usando seus contêineres para levar a droga. Os funcionários da alfândega do porto de Vigo sorriem com ironia: "Um porto, por definição, é um lugar corrupto. Temos câmeras, mas... elas quebram". A droga continua chegando aos poucos, e gerando um curioso excedente de frutas.
Certa manhã de abril, alguns agentes descarregaram caixas de abacaxis no pátio da Udyco. Em seu escritório, um dos comissários dava de presente uma fruta a quem lhe pedisse. Estavam maduras, ninguém sabia o que fazer com elas. Nem sequer seus importadores, uma empresa cujos primeiros e únicos passos no negócio tropical se reduziram à recepção de três contêineres com 3 mil caixas de abacaxis em Valência. O último trazia 215 quilos de cocaína. Seus passos eram seguidos pelo Greco de Alicante de seu pequeno escritório em lugar nenhum. Esperando culminar a Operação Histórico durante a transferência vigiada da droga para uma nave industrial. Alerta caso houvesse tiros.
Na última hora haviam cruzado com um assunto feio. Um conhecido grupo de "paleros", sob as ordens de um tal Casper, tinha sido detectado vigiando o mesmo navio. Ninguém sabia onde obtiveram a informação. Segundo as escutas realizadas, eles mencionaram como fonte "um santo" (um delator). As diligências afirmam que esse "santo" poderia ser um empregado da alfândega.
Reportagem de Guillermo Abril e Daniel Borasteros para o jornal espanhol El País
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/08/14/policia-encontra-menos-cocaina-na-espanha-mas-pais-continua-na-dianteira-em-consumo.jhtm
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
foto:descubrasobreasdrogas.blogspot.com
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