17/08/2011

Mitos da população mundial

Um dossiê da demografia mundial.

Epidemias, guerras, caos político, hábitos culturais... muitos fatores orientam a demografia de um país. Porém, em todas as partes, uma das principais características do século XXI será o envelhecimento da população, que pode ser estimado pelo aumento da proporção de idosos: 5,2% em 1950, 
7,6% em 2010 e 16,2% em 2050.



“A humanidade tem uma natalidade desenfreada.” Não, pois há várias décadas as taxas de natalidade diminuem consideravelmente e em todos os lugares, em razão do que se convencionou chamar de “transição demográfica”, período durante o qual a população apresenta diminuição da natalidade e da mortalidade, antes muito elevadas.
“Devemos temer uma verdadeira explosão demográfica.” Podemos nos acalmar: a bomba não vai estourar. O maior fenômeno do século XXI não será o crescimento rápido da população, mas sim seu envelhecimento.
“Viveremos em um planeta esmagado pela superpopulação.” Não novamente, pois a concentração humana em pequenos territórios, induzida pela urbanização, leva ao despovoamento de outras regiões.
“Os fluxos migratórios Sul-Norte vão nos submergir.” É ignorar que as novas lógicas migratórias engendram mobilidades em todos os sentidos, entre as quais importantes migrações Sul-Sul.
Resumindo, “a população mundial” não existe: ela é um agregado sem significado, um somatório de realidades tão diferentes que usá-la significaria misturar alhos com bugalhos. Guiné e Portugal têm praticamente a mesma população (10,8 milhões de habitantes para o primeiro e 10,7 milhões para o segundo). Devemos deduzir daí que esses dois países ocupam uma posição similar na demografia mundial? Talvez não. Se os compararmos, todos os indicadores divergem: a taxa de crescimento natural da Guiné, por exemplo, é positiva (+ 3%), enquanto a de Portugal é negativa (− 0,1%).
Falar de indicadores demográficos da população mundial é apagar as dinâmicas particulares: aquelas de países com taxa de natalidade elevada e baixa expectativa de vida (como o Níger e o Mali) ou de países nos quais a taxa de natalidade é tão baixa que não compensa a taxa de mortalidade (como a Rússia e o Japão). No caso japonês, o aumento considerável da taxa de mortalidade nos anos 2000 não se deve a comportamentos de risco ou a uma deterioração do sistema sanitário, mas exclusivamente ao envelhecimento.
O mundo é composto de populações diversas, com indicadores diferentes e modos de povoamento variados, como é mostrado pelas extraordinárias variações de densidade (de 1.141 habitantes por quilômetro quadrado em Bangladesh a 5,9 no Gabão). Aqui também: considerar apenas as médias agregadas de um exemplo é condenar-se a não enxergar nada.
O século XX foi testemunha de uma evolução sem precedente: o povoamento da terra quadruplicou (de 1,6 bilhão em 1900 para 6,1 bilhões em 2000). Esse crescimento resulta da junção de quatro fenômenos. Desde o fim do século XVIII, certos países do hemisfério Norte começavam a apresentar uma queda da mortalidade (infantil, infantojuvenil e materna) que, no século XIX e depois no XX, espalhou-se nos países do Sul (na Índia, por exemplo, a partir dos anos 1920). As razões: avanços da medicina e da farmacêutica, difusão de comportamentos higiênicos e progresso técnico-agrícola que permitiu uma alimentação mais regular e variada. Em dois séculos, a porcentagem de recém-nascidos mortos antes de completar 1 ano de vida diminuiu 80% “em média” no mundo, mas ela foi dividida por cinquenta nos países mais desenvolvidos. A mortalidade de crianças e de adolescentes diminuiu de maneira ainda mais pronunciada, assim como a mortalidade materna, que trouxe como resultado uma mudança no equilíbrio entre os sexos: o sexo dito “fraco” se tornou demograficamente o mais forte – o que nunca tinha acontecido na história da humanidade.
Além disso, as pessoas idosas vivem mais tempo, em decorrência da melhora, desde os anos 1970, da medicina e das infraestruturas sanitárias. A mecanização de algumas atividades trouxe, entre outros benefícios, melhores condições de trabalho, contribuindo para aumentar a expectativa de vida, que quase dobrou em um século (de 37 anos em 1900 para 69 anos em 2010).
A baixa histórica da fecundidade provocou uma desaceleração demográfica clara: a taxa anual média de crescimento passou de uma máxima histórica de mais de 2% no final dos anos 1960 (muitos países se encontravam então em plena transição demográfica) para 1,2% em 2010. Em cinquenta anos, a população mundial aumentou 142%: de 2,5 bilhões em 1950 para 6,1 bilhões em 2000. Segundo a projeção média da ONU, a população deverá se elevar a 9,1 bilhões em 2050. Isso significa, no entanto, falar em excesso? Se esses 9,1 bilhões emigrassem para os Estados Unidos, deixando todo o resto da Terra deserto, a densidade dos Estados Unidos seria ainda inferior àquela da região de Île-de-France atualmente...
Envelhecimento inédito
O envelhecimento será o fenômeno inédito do século XXI. Ele poderá ser medido seja pelo aumento da proporção de pessoas idosas (5,2% em 1950, 7,6% em 2010 e 16,2% em 2050, segundo as previsões da ONU),1 seja pela evolução da idade mediana (24 anos em 1950, 29 anos em 2010 e cerca de 38 anos em 2050).2
Por um lado, o aumento da expectativa de vida amplia o círculo da terceira idade. Por outro, a diminuição da fecundidade reduz o efetivo de jovens; seus efeitos são particularmente importantes nos países em fase de “inverno demográfico”, nos quais a fecundidade está há várias décadas claramente abaixo do nível de renovação das gerações (cerca de 2,1 filhos por mulher em média). No caso desses países, somente uma promoção considerável da fecundidade (e não muito tardia, pois o número de mulheres em idade de procriar diminui sensivelmente) ou dos aportes migratórios de populações jovens e fecundas poderia permitir a manutenção do nível necessário para uma simples renovação das gerações.
Avalia-se o envelhecimento da população medindo a parte crescente das pessoas idosas em relação à população total. Mas é igualmente necessário medir o aumento do número absoluto de pessoas idosas de mais de 65 anos – o que chamamos de “gerontocrescimento”: 130 milhões em 1950, 417 milhões em 2000, podendo atingir 1,486 bilhão em 2050. Essa distinção entre envelhecimento e “gerontocrescimento” permite capturar as evoluções mais contrastadas, de acordo com o país. Em certos casos, esses dois fenômenos não evoluem de maneira idêntica, sob o efeito, por exemplo, de um sistema migratório atrativo para populações jovens e repulsivo para as populações idosas.
A urbanização aparece como um fenômeno importante, posto que em 2008, segundo os números das Nações Unidas (discutidos por modalidades, mas não no geral), os habitantes das cidades ultrapassaram em número a população rural pela primeira vez.3 Este é o grande paradoxo do século XXI: nunca a população mundial foi tão numerosa e nunca foi tão concentrada em espaços tão reduzidos: o mundo se “metropoliza” inexoravelmente sob o efeito de uma espécie de motor em três tempos.
O primeiro tem a ver com a predominância do setor terciário nos espaços urbanos mais populosos, que atraem uma população ativa disponível em razão do crescimento da produtividade agrícola. O segundo vem do desejo dos lares de ter um amplo leque de possibilidades de emprego, em um contexto de diversidade crescente de atividades, de mobilidade profissional desejada ou imposta, ou de pobreza no mundo rural. Enfim, as metrópoles são os territórios mais adequados à implantação de um “espaço-mundo”, facilitando muito as conexões. Além disso, elas dispõem de uma atratividade ligada a seu poder político, o qual depende de seu status institucional (capital regional, nacional, sede de instituições públicas internacionais), e às filiais estrangeiras de firmas transnacionais que se localizam principalmente nas grandes cidades.
A intensidade da concentração urbana difere muito entre diversos países: na Índia, 29% dos habitantes vivem em cidades, 33% no Congo, 73% na Alemanha e 79% nos Estados Unidos. Os fatores de explicação são muito variáveis. A alta taxa brasileira se explica principalmente pela herança da colonização, que fundou cidades encarregadas de assegurar o controle político e econômico do território e de centralizar a exclusividade dos intercâmbios com a metrópole portuguesa. A pequena taxa chinesa se deve em boa parte ao regime comunista, que durante muito tempo fixou seus trabalhadores rurais; nesse contexto, Pequim, com seus 12 milhões de habitantes, é uma capital pouco populosa em relação à importância demográfica do país. Em outros países, os conflitos desenraizaram as populações rurais, acentuando o peso demográfico de cidades como Bogotá, Amã, Calcutá ou Kinshasa.
Os países muito centralizados, como a França ou o Irã, dotaram-se de uma estrutura urbanamacrocéfala, na qual a capital política é dominante em todas as funções: econômica, financeira, universitária e cultural. Outros países, como a Espanha ou a Bolívia, tiveram uma urbanização bicéfala, dominada por duas cidades (Madri e Barcelona; La Paz e Santa Cruz); a Alemanha, por sua vez, está organizada em uma “rede urbana” mais equilibrada, que interliga diversas cidades hierarquizadas de maneira harmoniosa.
Uma paisagem demográfica inédita
Transições demográficas em curso nos diferentes países do Sul, “inverno demográfico” em certos países do Norte, envelhecimento da população, urbanização sem precedentes: eis o que desenha uma paisagem demográfica inédita. Soma-se a questão das circulações migratórias: 214 milhões de pessoas4 residem de modo permanente em um país diferente daquele em que nasceram – um número que não inclui nem refugiados nem deslocados.
Ao contrário do que diz o senso comum, as migrações são regulares e permanentes. E majoritariamente legais: hipermidiatizadas, as migrações clandestinas são estatisticamente ínfimas. A história e a geografia contribuíram para a construção de “pares migratórios” compostos de países. Eles podem se basear em uma proximidade geográfica − Burkina Faso e Costa do Marfim, Colômbia e Venezuela, México e Estados Unidos, Malásia e Cingapura, Itália e Suíça… – ou em uma história comum – Filipinas e Estados Unidos, Argélia e França, Índia e Reino Unido etc. –, enfim, relações herdadas da colonização e perenizadas, de jure ou de facto, depois da descolonização. Como no caso do movimento de urbanização, mesmo se fatores políticos (guerras, conflitos civis, regimes liberticidas) forçam a emigração, são os fatores econômicos que continuam sendo o motor principal.
No século XIX, a pobreza levou muitos espanhóis, suíços e italianos a emigrar para a América Latina. A demografia propriamente dita é um terceiro fator de migração: no século XIX, a França, em razão de uma diminuição muito precoce de sua fecundidade, tornou-se o único país europeu de imigração. No século XXI, a diminuição da população ativa em diferentes países desenvolvidos faz que se atraiam imigrantes sobretudo para cobrir um déficit de mão de obra em determinados setores profissionais.
Entretanto, a polarização entre países de emigração perdeu sua pertinência. As migrações são cada vez mais circulares: o Marrocos, por exemplo, é um país de emigração para a Europa e para a América do Norte; um país de trânsito para os migrantes da África subsaariana cujo destino final é a Europa; e um país de imigração para os migrantes da África subsaariana que acabaram finalizando – sem ter necessariamente planejado – seu percurso migratório.
Do mesmo modo, a Espanha é um país de emigração, sobretudo para as migrações empresariais para países do Norte ou da América Latina; um país de trânsito para os africanos que vão para a França; e um país de imigração do Marrocos, da Romênia ou da América andina. Para além da imagem cartográfica que poderia indicar um saldo migratório (que mascara a intensidade dos fluxos de imigração e de emigração) por país, evidencia-se hoje que a maior parte dos países assume os três papéis.

Artigo de Gérard-François Dumont, Professor da Universidade de Paris-Sorbonne e presidente da revista Population & Avenir
http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=961
foto: clickescolar.com.br

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