mulheres?
Alexandre Garrido da Silva (UERJ); Joana El-Jaick Andrade (USP)
Na atualidade, tanto os campos da Sociologia quanto o do Direito vêm destacando o
crescente protagonismo dos magistrados e tribunais na garantia e efetivação de direitos fundamentais. Tal participação é por vezes compreendida como resultado de uma estratégia para a superação de um “constitucionalismo simbólico” (Neves, 2007). Neste sentido, a atuação dos juízes seria considerada um elemento social progressista na concretização de ações afirmativas e na proteção e ampliação dos direitos das mulheres.
Embora a luta por mudanças na legislação e na forma de interpretar e aplicar as leis tenham sido, desde cedo, objetivos apontados pelos grupos feministas criados ao longo do século XX, que faziam parte da “segunda onda” do movimento pelos direitos das mulheres, pode-se verificar um crescente desconforto em relação a esta estratégia de luta. Particularmente a partir da década de 60, integrantes do movimento passaram a questionar o papel paternalista desempenhado por agentes do
Estado, ressaltando a necessidade de elevação das mulheres a sujeitos de sua própria história, como atores sociais capazes de adentrar e transitar nas diferentes esferas de poder de forma a promover mudanças efetivas.
Esta vertente do movimento feminista, portanto, mais cética quanto às possibilidades de transformações “pelo alto”, deposita nas bases sociais do movimento as expectativas futuras de sua emancipação. Tais conquistas seriam alcançadas não somente através da pressão resultante da mobilização das mulheres, mas sobretudo em sua batalha cotidiana contra a dominação masculina nos espaços públicos e privados. Ao penetrarem todo o tecido social, modificando por dentro a
correlação de forças em jogo, as lutas das mulheres tornariam possível uma verdadeira “revolução cultural”, pela mudança nas práticas e valores sociais.
Ademais, colocavam em questão a tradicional dicotomia público/privado, problematizando a interpenetração e dependência dos vários domínios sociais e o desempenho das instituições na conservação e reprodução das formas de controle e opressão de gênero. Neste sentido, autores como Robin West (2000), salientam o caráter enviesado do Direito, enxergando as instituições jurídicas como produtos de sociedades patriarcais, sendo, portanto, construídas a partir de um ponto de vistamasculino, refletindo e reproduzindo seus valores sociais. Deste modo, mesmo quando levada em conta a perspectiva de gênero, os aplicadores do Direito tenderiam a desfavorecer as mulheres e a encarar suas demandas e reivindicações como secundárias e de menor importância.
A abordagem da questão das mulheres sob o ponto de vista do Direito moderno estaria sustentado em uma racionalidade formal, impessoal, abstrata e descontextualizada, sendo, portanto incapaz de dar conta das especificidades da condição feminina. A proteção jurídica, representada pelas normas nacionais e internacionais – como a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979) 1 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994)2 –, promoveriam uma “igualdade formal” ilusória,relegando, aos olhos da opinião pública, a dominação de gênero ao âmbito exclusivamente privado.
Por conseguinte, à medida que as mulheres conquistavam direitos políticos e ingressavam na esfera pública como atores sociais organizados, passavam a suscitar o questionamento acerca do próprio alcance das reformas políticas e da possibilidade de reconhecimento de demandas por parte dos governos. Enquanto que para parte significativa das feministas isto implicaria em ganhos expressivos para a causa do movimento pela igualdade de gênero, para uma vertente de cunho mais
radical, vinculada à tradição marxista, as reformas políticas encobririam as bases reais da dominação de gênero. “Feministas materialistas”, como Christine Delphy, alegam que a ênfase em mudanças legislativas pontuais acabaria desviando a luta de seu foco principal, isto é, a dominação econômica. O sistema político-social patriarcal combinaria a opressão de gênero à exploração econômica, subordinando as mulheres aos homens a partir do modo de produção doméstico (Delphy, 2002, p. 7).
Diante deste debate, que envolve significativas implicações teóricas e práticas para a formulação de estratégias de luta das mulheres no mundo contemporâneo, o presente trabalho pretende analisar a atuação recente do Poder Judiciário no Brasil no tocante às questões de gênero, bem como examinar o alcance e pertinência da crítica feminista à Teoria do Direito, no intuito de promover uma reflexão acerca da possibilidade de reforma das instituições jurídicas sob a democracia liberal.
Para tanto, convém destacar os resultados da pesquisa realizada entre os anos de 2005 e 2007 com integrantes do Poder Judiciário Estadual da Comarca do Rio de Janeiro (Cunha, 2005), na qual foi constatado que cerca de 90% dos desembargadores e juízes entrevistados não recorrem freqüentemente aos documentos internacionais que tratam dos direitos das mulheres, mais especificamente a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
O papel desempenhado pelo Judiciário, portanto, não pode ser devidamente compreendido se se desconsiderar a realidade social do qual faz este parte. A sociedade brasileira continua a exibir inegavelmente um caráter patriarcal, autoritário e profundamente desigual, segundo o qual cabe à mulher desempenhar um papel social secundário e subordinado. Os diversos tipos de violência e preconceito – de classe, raça e gênero – e a exclusão social combinam-se de diferentes formas, alimentando-se mutuamente para formar um ambiente social no qual a violência e a violação aos direitos fundamentais são culturalmente legitimadas. Mesmo na esfera familiar, teoricamente regida por relações afetivas, a violência é praticada e reproduzida cotidianamente. Em recente pesquisa realizada pelo DataSenado, referente ao ano de 2007, 15% das mulheres entrevistadas declararam sofrer ou já haver sofrido algum tipo de violência doméstica.
Procurando oferecer uma resposta a esta alarmante situação foi sancionada em 2006 uma legislação específica destinada a coibir a violência doméstica. A Lei 11.340/06, denominada “Lei Maria da Penha”, passa a reconhecer a existência de cinco formas de violência: física, psicológica,sexual, patrimonial e moral (art.7º), trazendo importantes modificações ao Código de Processo Penal, o Código Penal4 e a Lei de Execução Penal, além de dispor sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
A despeito do atual esforço de elaboração legislativa que permite a criação de um
mecanismo institucional capaz de oferecer assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, as necessárias mudanças só deverão ocorrer a partir do desencadeamento de um processo mais amplo de revalorização e reeducação social, de modo que a violência doméstica não mais seja vista como uma questão menor ou de ordem privada. Para que seja efetiva, tal mudança deverá atingir inclusive o próprio Judiciário6, exigindo-lhe a adoção de uma postura menos conservadora.
Como foi visto, as críticas apontadas por correntes feministas desde meados do século passado ainda mostram-se atuais e necessárias, podendo oferecer uma valiosa contribuição para a análise da atuação do Poder Judiciário no tocante ao reconhecimento dos direitos das mulheres, de modo a evitar que se recaia numa visão simplista e parcial do ativismo judicial, baseada em uma imagem idealizada dos juízes.
foto: ilustração: superqueens86.blogspot.com/2006/03/feliz-dia-...
fonte: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST47/Silva-Andrade_47.pdf
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